O MINISTÉRIO
PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, por intermédio de seu ilustre representante à
época, titular da Vara da Infância e Juventude desta Comarca, ajuizou AÇÃO
CIVIL PÚBLICA contra o ESTADO DA BAHIA, pessoa jurídica de direito
público interno, com fulcro nos arts. 129, II e III, e 226 da Constituição
Federal de 1988, c/c os arts. 94, 121 e 148, IV, da Lei nº 8.069/90, e art. 461
do Código de Processo Civil, estribada nos seguintes fundamentos fáticos e
jurídicos a seguir expostos:
I - LEGITIMIDADE
O Órgão Ministerial realça a sua
legitimidade para propor a presente actio, valendo-se de repertórios
jurisprudenciais e dos arts. 127 e 129, III, da CF, e dos arts. 208, VIII, e §
1º, da Lei nº 8.069/90, asseverando que é atribuição do Parquet ajuizar
ação civil pública para tutelar interesses individuais e coletivos de
adolescentes em conflito com a lei, sempre que se constatar lesão ou ameaça de
lesão a interesses individuais e coletivos afetos a crianças e adolescentes, em
razão de omissão estatal. Acresce, ademais, que o Ministério Público é o
legítimo protetor do direito assegurado a adolescentes acusados da prática de
ato infracional de receberem tratamento especializado e adequado às suas
necessidades pedagógicas, nos moldes previstos da Lei nº 8.069/90 e normativa
internacional, e de forma completamente diferenciada em relação àquele
destinado aos imputáveis;
II - COMPETÊNCIA
O
titular da ação enfatiza a competência absoluta da Vara da Infância e Juventude
da Comarca de Itabuna para processar e conhecer do presente feito, nos termos
do disposto nos arts. 5º, 148, IV, e
208, VIII, e § 1º, e 209, da Lei nº 8.069/90, pois se trata de ação civil que
versa sobre direito coletivo, difuso e indisponível, portanto, direitos
transinviduais afetos a interesses de crianças e adolescentes, e que estão
sendo violados em face da omissão do Estado, nos termos do art. 98, I, do ECA;
III - DOS FATOS
Aduz o
Ministério Público em sua exordial que o Estado da Bahia, apesar de possuir uma
grande extensão territorial, dispõe apenas de três unidades destinadas ao
cumprimento de medida socioeducativa privativa de liberdade (internação), todas
elas localizadas na região nordeste do Estado, precisamente na Comarca de
Salvador, onde existem duas unidades, e uma outra em Feira de Santana. A
distância entre as unidades não supera a distância de 100 Km, o que é
insignificante em face da grande extensão territorial do Estado da Bahia.
Argumenta a autora da ação que essa situação tem ocasionado enormes danos aos
adolescentes residentes no interior do Estado, em localidades distantes da
região metropolitana, pois a longa distância impossibilita o contato do
adolescente com seus familiares, quebrando-se os vínculos familiares, e, por
via de consequência, violando gravemente
os direitos assegurados nos incisos V e VI do art. 94 do ECA, bem como no art.
227, caput e inc. V da CF, asseverando, assim, a
insustentabilidade do sistema para execução de medida socioeducativa de
internação nos moldes em que se encontra atualmente, pois além da violação
grave dos direitos do adolescentes assegurados em lei, como v.g. o
disposto nos incisos VI e VII do art. 124 do ECA, o modelo atual em
funcionamento no Estado da Bahia compromete seriamente a reeducação do
adolescente em conflito com a lei.
Assevera,
ainda, para reforçar o seu posicionamento, que a maioria esmagadora das
famílias dos adolescentes que são encaminhados para cumprir medidas
socioeducativa de internação em Salvador é de origem pobre e não dispõe de
recursos para se deslocar até unidade de internação para visitar os
adolescentes que lá se encontram abrigados cumprindo a medida socioeducativa
privativa de liberdade, o que contribui ainda mais para dificultar o
restabelecimento dos vínculos familiares e a própria ressocialização do jovem
infrator.
Como se
não bastasse, a falta de unidade de internação provisória em Itabuna ocasiona
problemas sérios na instrução processual, pois de conformidade com o disposto
no § 2º do art. 185 do ECA, o prazo máximo que é permitido ao adolescente
permanecer em repartição policial, em seção isolada dos adultos, aguardando a
sua remoção para uma unidade de internação é de cinco (5) dias, prazo por
demais exíguo para a tomada de qualquer medida, o que tem ensejado
frequentemente o relaxamento da apreensão de adolescente em flagrante por
excesso de prazo, valendo enfatizar que os adolescentes desta Comarca cumprem
medida de internação provisória em Salvador, distante mais de 400 Km.
Aduz,
ainda, que a longa distância da Comarca de Itabuna para as unidades de
internação acarreta mais uma violação aos direitos constitucionalmente
assegurados aos adolescentes acusados da prática de algum ato infracional, que
é o de participar da audiência de instrução, o que é inviabilizado pela
dificuldade de transporte, ferindo, assim, o princípio da ampla defesa, nos
termos do art. 5º, LV, da CF, e 111, II, do ECA. Assevera, ainda, que os custos
gerados pelos constantes deslocamentos de adolescentes da Comarca de Itabuna
para as unidades de Internação são exorbitantes, incluindo combustível, lanches
para os adolescente e diárias para os agentes que fazem o transporte, os quais
são obrigados a realizar uma grande operação e a percorrer quase 900 Km (inda e
retorno à Comarca).
Salienta,
finalmente, que o Relatório Final do Programa Medida Justa do Conselho Nacional
de Justiça realizado no Estado da Bahia e datado de 08/11/2010 foi concludente
em constatar “o desarranjo na estruturação e distribuição das unidades
destinadas ao cumprimento de medidas socioeducativas com privação de liberdade,
o que torna deficiente o sistema para execução da internação”, recomendando a
construção de unidades de internação no interior do Estado em regiões
previamente escolhidas, como forma de superar a gigantesca distância entre o
local onde são internados os adolescentes em conflito com a lei e o local de
suas residências, propiciando assim as condições para a preservação dos
vínculos familiares do adolescente que cumpre medida de internação e sua
consequente ressocialização.
O autor
em sua exordial relaciona vários dispositivos legais – CF e ECA – violados em
face da omissão ilícita do Estado da Bahia, destacando, sobretudo, o princípio
reitor da CF, a dignidade da pessoa humana, estabelecido no inc. III do art. 1º
da Carta Magna, bem como a doutrina da proteção integral insculpida no art. 227
da CF e art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, em face da
inexistência nesta Comarca de unidade de internação para adolescentes a quem se
atribui a prática de atos infracionais.
Argumenta,
em síntese, que os denominados direitos de segunda geração – direitos
econômicos, sociais e culturais -, que se encontram inseridos no Título II,
art. 6º da CF de 1988 não mais devem ser interpretados como meras normas
programáticas, numa perspectiva positivista. Destarte, no âmbito da
judicialização das políticas públicas,
cita as lições de Joaquim J. Gomes Canotilho para sustentar a
normatividade das normas constitucionais, no sentido de obrigar o Poder
Executivo do Estado da Bahia no campo das políticas públicas de criar e manter
unidade de internação na Comarca de Itabuna para adolescentes infratores, como
forma de cumprir o princípio da prioridade absoluta assegurado aos direitos
infanto-juvenis no art. 227 da CF, não havendo que se falar em invasão no poder
discricionário da Administração, pois a escolha pelo não fazer consiste em
omissão ilícita do Estado da Bahia.
Requereu,
por conseguinte, a antecipação da tutela, no sentido de que a demandada, no
prazo de trinta (30) dias providenciasse local adequado aos adolescentes
internados nesta Comarca, com fixação de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil
reais), em caso de descumprimento do preceito, tudo isso, após a audiência do
representante judicial da demandada. Requereu, ainda, a citação do Estado da
Bahia, na pessoa de seu representante legal, para integrar o polo passivo desta
relação processual e oferecer resposta à demanda no prazo legal. Finalmente,
requereu a procedência do pedido com a condenação do Estado da Bahia a instalar
uma unidade de internação para cumprimento de medida socioeducativa de
internação, bem como internação provisória, para adolescentes autores de atos
infracionais graves e que necessitem serem submetidos por um período de suas
vidas a estas medidas de meio fechado, visando sua reeducação, observando-se o
quanto disposto nos arts. 94 e 124 do
ECA, sob pena de imposição de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais), em
caso de descumprimento da decisão judicial.
Atribuiu-se
à causa o valor de R$ 1.000,00, todavia, requereu a dispensa do adiantamento de
custas, emolumentos, honorários, nos termos do art. 18 da lei nº 7.437/85.
A
exordial veio acompanhada dos documentos de fls. 26/40. Acostaram aos autos os
documentos de fls. 42/43, ofícios encaminhados por autoridades da Secretaria de
Segurança Pública do Estado da Bahia, informando que não mais realizariam o
transporte de adolescente infratores de Itabuna para unidades socioeducativas.
Este
Juízo determinou a intimação da demandada para se manifestar sobre o pedido de
tutela antecipada, ensejando que assim o fizesse, conforme petitório de fls.49,
oportunidade na qual se manifestou pela denegação da liminar. O Ministério
Público tomando conhecimento da manifestação da demandada fez juntar aos autos
a petição de fls. 64/65 para argumentar que a vedação prevista no § 2º do art.
7º não incide sobre a hipótese vertente, pugnando, destarte, pela concessão da
tutela antecipada. A demandada ainda fez juntar aos autos os documentos de
fls.68/ 138. Este Juízo mediante decisão fundamentada às fls.139/140 indeferiu
o pedido de tutela antecipada, determinando, ainda, a citação da requerida. A
demandada fez juntar aos autos também o plano plurianual às fls. 146/147.
Após
ingentes dificuldades que culminaram com a procrastinação do presente feito, finalmente
foi citada a demandada, através do seu procurador geral (fls. 264-verso),
ensejando assim que oferecesse contestação à pretensão deduzida em Juízo pelo
Ministério Público às fls. 312/329.
A
demandada, com efeito, em sede de preliminar suscita a ilegitimidade ad causam passiva, argumentando que, nos termos das Leis nº
3.509/76 e 6.074/91 cabe a FUNDAC – Fundação da Criança e do Adolescente – a
execução da política pública de atendimento à criança e ao adolescente
envolvido em ato infracional, sendo, portanto, a demandada parte ilegítima para
figurar no polo passivo desta relação processual. O ilustre procurador suscita
também a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, sob o
fundamento de violação ao disposto no art. 2º da CF, que consagra o princípio
da separação e harmonia entre os poderes, bem como aos arts. 165 e 167, I, que
tratam das normas orçamentárias, asseverando que “a procedência da ação
representaria grave interferência na política de segurança pública do Estado,
impondo restrições à gestão e execução da política pública executada pela
FUNDAC”. Acresce, ademais, que não cabe ao Poder Judiciário adentrar no juízo
de conveniência e oportunidade, no sentido de decidir como gerenciar recursos
alocados no orçamento legislativo para execução da política de atenção à
criança e ao adolescente.
Todavia,
o ilustre Procurador em sua peça contestatória admite que já existe uma
previsão de construção de um unidade de internação para adolescentes na Comarca
de Itabuna, cujo valor previsto de R$ 2.049.000,00 (dois milhões e quarenta e
nove mil reais) é insuficiente para a realização da obra que está programada
para 2015, enfatizando que não se pode exigir que o Estado sacrifique outros
setores como saúde e educação para priorizar o cumprimento de medida
socioeducativas, não podendo, portanto, o Poder Executivo ser substituído neste
mister pelo Poder Judiciário, ilustrando o seu posicionamento com vários
repertórios jurisprudenciais.
No mérito, o ilustre Procurador em sua peça contestatória argumenta que
a capacidade do Poder Público de prover todos os anseios e necessidades da
população é limitada, e que o administrador busca cumprir os seus deveres
legais e morais sempre privilegiando o interesse público, salientando a
inexistência de meios físicos para atender a pretensão do Parquet. Faz
ligeira menção à construção pretoriana da corte alemã da reserva do
financeiramente possível, para afirmar que as decisões judiciais devem observar
o critério da razoabilidade, principalmente quando as limitações de ordem
econômica podem comprometer a implementação dos direitos sociais. Valendo do
ensinamento do grande jurista Canotilho, assevera que a plena realização dos
direitos sociais, econômicos e culturais deve ser examinada segundo os
parâmetros da reserva do possível.
Aduz que
já se encontra em andamento a construção de duas unidades de internação para
atendimento de adolescente em situação de internação definitiva e internação
provisória nos Municípios de Feira de Santana e Camaçari, de conformidade com o
SINASE e o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo da Bahia, negando assim
a pecha de omissão do Estado na execução das medidas socioeducativas de
internação atribuída pelo Ministério Público, acrescentando que tais obras
estão sendo realizadas com o apoio financeiro do Governo Federal. Aduz que não
há omissão do Estado e que não há qualquer justificativa para priorizar o
Município de Itabuna em detrimento de outros para os quais já foram
direcionadas ações administrativas e verbas, nem tampouco sacrificar recursos
que atualmente estão destinados à esfera da saúde, educação, transporte e
outras.
Finalmente
argumenta o ilustre Procurador que não se pode impor ao Estado a realização de
qualquer obra ou a assunção de qualquer despesa sem contrapartida de receita,
ou melhor, sem previsão na lei orçamentária, nos termos previstos no art. 167,
I, da CF, salientando que a presente ação civil pública não é meio hábil para
compelir a Administração Pública a realizar obras ou modificar a gestão de seus
órgãos.
A demandada,
após sustentar a inexistência dos requisitos para a concessão da tutela
antecipada, defende a tese da existência “in casu” do denominado “periculum
in mora inverso”, reforçando ainda mais a posição da denegação da tutela
antecipada pleiteada pelo autor da ação.
Requer,
por conseguinte, a extinção do processo em efeito de julgamento de mérito, ou
se assim não entender este Juízo, que seja julgada improcedente a presente
ação. A demandada fez acostar aos autos os documentos de fls.330/387 (Plano Estadual
de Atendimento Socioeducativo 2011/2015).
A FUNDAC
tomou conhecimento do feito e atravessou petição nos autos na forma de
contestação (fls. 390/424), juntando aos autos e os documentos de fls. 425/460,
adotando a mesma linha de defesa da demandada, pugnando, destarte, pela
denegação da tutela antecipada e pela improcedência do pedido deduzido em
Juízo, todavia, é parte manifestamente ilegítima ad causam, pois se
trata de mero ente executor da política de atendimento socioeducativo no Estado
da Bahia, razão pela qual, desde já, determino o desentranhamento da petição de
fls. 390/424, permanecendo nos autos, no entanto, os documentos de fls.
425/460, em face de constituir importante substrato para a instrução
probatária. Poder-se-ia até admitir a intervenção da FUNDAC como mero
assistente da parte demandada, todavia, não foi nessa condição que se habilitou
nos autos.
O ilustre Parquet instado a se
manifestar sobre a contestação da demandada e a petição juntada aos autos pela
FUNDAC sustenta a revelia da demandada, pois somente ofereceu contestação após
o transcurso de 125 dias de sua cientificação pessoal, sendo absolutamente
intempestiva a peça oferecida pela defesa.
Impugna fundamentadamente as preliminares levantadas pela demandada, e
no mérito discorre longamente sobre a reserva do possível, alegada na peça
contestatória, asseverando que essa justificativa cede diante da flagrante
violação de direito fundamental, principalmente, quando a Administração Pública
não garante o mínimo existencial. Tece considerações sobre a situação caótica a
que são submetidos os adolescentes a quem se atribui a prática de ato
infracional em Itabuna, e a total inércia do Estado, que não obstante tenha
expandido as unidades prisionais na Bahia para custodiar os presos imputáveis,
inclusive contemplando Itabuna, não dispensa o mesmo tratamento com relação aos
direitos dos adolescente em conflito com a lei, chegando ao ponto de o Estado
Desativar a SEMI – Seção do Menor Infrator -, para instalar uma Delegacia
Especializada de Homicídios em Itabuna, quando se sabe que grande percentual de
homicídios na cidade é praticado contra ou por adolescentes. Ressalta que o
Estado da Bahia desprezou o princípio constitucional da prioridade absoluta
conferida aos direitos fundamentais de criança e adolescentes, salientando que
no ano de 2011, o Estado da Bahia gastou 122,3 milhões com propaganda e
publicidade, e que bastaria a demandada contingenciar apenas cerca de 10% (dez
por cento) do que gastou em 2011 com propaganda para obter os recursos
necessários à instalação da unidade de internamento em Itabuna.
No que
toca a contestação apresentada pela FUNDAC aduz que a mesma não é parte no
processo, devendo, portanto, sua defesa ser desprezada, pois muito embora seja
o órgão responsável pela execução de política socioeducativa em nosso Estado,
não é dotado de competência decisória e capacidade orçamentária e financeira
para atender ao pleito ministerial. Todavia, pugna para que os documentos
apresentados pelo referido ente permaneçam nos autos.
Pugna,
destarte, pelo julgamento antecipado da lide, reforçando a sua posição inicial
já conhecida. Requerendo ainda, caso este Juízo entenda pela necessidade de
instrução, que seja reconsiderada a decisão que indeferiu a antecipação da
tutela, sugerindo a fixação do prazo de 180 (cento e oitenta) dias para a
inauguração da unidade em Itabuna. Foram acostados aos autos os documentos de
fls. 483/592.
Acostou-se aos autos os documentos de fls. 600/604 com reportagens
noticiando o índice à vulnerabilidade juvenil à violência em Itabuna,
abrindo-se oportunidade às partes a fim de que se manifestassem acerca dos
mesmos em razão do princípio do contraditório.
Vieram-me
os autos conclusos.
É O
RELATÓRIO.
DA
FUNDAMENTAÇÃO E DECISÃO.
A
questão deduzida em Juízo cinge-se a matéria unicamente de direito, cujas
provas documentais carreadas para os autos são suficientes para o deslinde da
lide, não havendo necessidade de dilação probatória e nem de produção de
qualquer outra prova para tal mister, razão pela qual, nos termos do disposto
no art. 330, I, do CPC, passarei a conhecer diretamente do pedido deduzido em
Juízo, antes, porém, impõe-se examinar as preliminares e questões prévias
suscitadas nos autos.
I - DA
INTEMPESTIVIDADE DA PEÇA CONTESTATÓRIA – DECRETAÇÃO DE REVELIA DA DEMANDADA:
O
ilustre Parquet em sua réplica à contestação sustenta que o prazo para a
Fazenda Pública contestar é de 60 dias, nos termos dos arts. 188 c/c o art. 297
do CPC, salientando que a demandada foi citada em 14/06/2012 e somente apresentou
contestação em 17/10/2012, extrapolando, assim, o prazo legal. Com a devia
venia, não assiste razão ao ilustre representante do Ministério Público,
pois o prazo “in casu” só começou a fluir a partir do dia 11/09/2012,
nos termos do disposto no art. 241, I, do CPC, considerando que a demandada foi
devidamente citada através de carta precatória. A rigor, mesmo que se tratasse
de demandada revel, não se aplicaria no presente caso os efeitos do art. 319,
porquanto se trata de direitos indisponíveis, a teor do que dispõe o art.
320,II, do CPC.
II - DA
PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE AD CAUSAM PASSIVA:
Aduz a
demandada que o Estado da Bahia é parte ilegítima para figurar no polo passivo
desta relação processual, pois de conformidade com os termos das Leis nº 3.509/76
e 6.074/91, a FUNDAC é o ente público que tem por finalidade executar, no
âmbito estadual, a política de atendimento à criança e ao adolescente envolvido
em ato infracional, salientando que em caso de ser provida a demanda caberia ao
referido ente a execução da obra pretendida pelo Ministério Público. Infere-se
à evidência que a presente preliminar suscitada não resiste ao mais tênue
exame, pois a ação foi proposta precisamente contra o ente – Estado da Bahia -,
pessoa jurídica de direito público interno que tem poderes e atribuições para
praticar o ato – obrigação de fazer – ordenado pelo Poder Judiciário, caso a
ação seja julgada procedente.
Consoante
grassa na doutrina pátria as condições da ação – legitimidade de parte,
interesse processual e possibilidade jurídica do pedido – são requisitos
exigidos por lei para que se possa exigir um provimento jurisdicional de
mérito. No caso específico da legitimidade ad causam passiva consiste
ela na pertinência subjetiva que deve existir entre os sujeitos da relação
jurídica de material e os polos ativos e passivos da relação processual. Ora,
no caso em comento, a pretensão de direito material deduzida em Juízo, caso
seja julgada procedente, só poderá ser cumprida pelo Estado da Bahia, com todas
as suas prerrogativas de pessoa jurídica de direito público, mercê de sua
autonomia orçamentária e financeira, pois a FUNDAC é um mero ente executor da
política pública de atendimento a adolescente em conflito com a lei, sem
autonomia e atribuições suficientes para cumprir o “decisum”. Nesse
sentido, o professor e jurista José Orlando Rocha de Carvalho em sua excelente
obra “ Teoria dos Pressupostos e dos Requisitos Processuais[1] explicita:
“Em tese, pois, somente
aquela pessoa que está vinculada à relação de Direito Material e que seja, supostamente,
o titular daquele direito
subjetivo que está postulando em Juízo, é que está legitimada à propositura da demanda
e, em situação inversa, aquele que figure na sujeição passiva da relação
material será, também, o que deva sofrer a ação dele. Tem-se aí, por
conseguinte, a definição da legitimação ativa e passiva para a causa”
Como se infere, o Estado da
Bahia, no presente caso, é parte legítima para se sujeitar as consequência
de uma decisão judicial a ser proferida
na seara da judicialização das políticas públicas, caso o pedido seja julgado
procedente, pois ele é o ordenador da execução das políticas públicas e
responsável pela concretização dos direitos sociais afetos as competências
individuais de cada órgão do Estado, razão pela qual, afasto a preliminar de
ilegitimidade ad causam passiva suscitada pela demandada.
III - DA
IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO:
Também
não merecer melhor sorte a presente preliminar suscitada pela parte demandada,
pois não existe no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma vedação, seja
expressa ou implícita, sobre “res in judicium deducta”, mesmo porque
como argumentou o ilustre Parquet em sua promoção de fls. 466, “assim
toda e qualquer causa, desde que envolva lesão ou ameaça de direito, pode e
deve ser julgada e processada pelo Poder Judiciário, independentemente de quem
esteja no pólo passivo” , ilação que extrai do princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional insculpida no art. 5º, XXXV, da CF de
1988, pelo qual é conferido ao Poder Judiciário, em face de omissão do Poder
Executivo, o poder-dever de compelir a Administração Pública a efetivar ações
afirmativas no campo do direitos sociais, precisamente na linha dos direitos
difusos, coletivos e individuais homogêneos, como forma de concretizar direitos
fundamentais e implementar políticas públicas assegurados em lei e na
Constituição Federal, sem qualquer violação ao princípio democrático das
separação dos poderes. Na verdade, essa espécie de ação já vem se multiplicando
no País e já mereceu a apreciação do STF por diversas vezes, conforme se
verifica pelo aresto colacionados aos
autos pelo Ministério Público (fls. 467), senão vejamos:
“Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional.
Legitimidade do Ministério Público. Ação civil pública. Implementação de
Políticas Públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos
poderes. Não ocorrência. Precedentes. Esta Corte já firmou a orientação de que
o Ministério Público detém legitimidade para requerer , em Juízo, a
implementação de políticas públicas por parte do Poder Executivo, de molde a
assegurar a concretização de direitos difusos, coleitivos e individuais
homogêneos garantidos pela Constituição Federal, como é o caso do acesso à
saúde. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a
Administração Pública adote medidas
assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais,
sem que isso configure violação do
princípio de separação de poderes”( AI 809018 – AGR relator: Ministro Dias
Toffoli, Primeira Turma, julgado em 25/09/2012, processo eletrônico DJE 199
divulg 09/10/2012, publicado 10/10/2012).
Valendo-me, mais uma vez,
da lição do professor e jurista José Orlando de Carvalho, vê-se que não há
qualquer impedimento para que a pretensão de direito material deduzida em Juízo
seja acolhida pelo Poder Judiciário. Diz o ilustre jurista na obra já citada[2]:
“Possibilidade
jurídica, portanto, diz respeito e pedido que não seja vedado explícita ou
implicitamente pelo Direito.
O Direito ,
ressalte-se, não se contém apenas na letra da lei, pois representa uma dimensão
mais abrangente e, por isso, a possibilidade jurídica adquire o contorno de ser
, sempre, a regra, a possibilidade. Logo, a não previsão expressa de um direito
subjetivo em lei não inibe a possibilidade jurídica de se pleiteá-lo. A
impossibilidade jurídica manifesta-se,sim, no inverso, ou seja, a na previsão
de que determinada situação jurídica não pode ser obtida seja por determinação
expressa, seja por decorrência lógica do sistema que o inadmite”
Desta forma, e pelas razões ora
invocadas, afasto também a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido
sustentada pela demandada em sua peça contestatória.
IV - DA
ILEGITIMIDADE AD CAUSAM PASSIVA da FUNDAC:
Verifica-se também que a
FUNDAC é parte manifestamente ilegítima ad causam para figurar no polo
passivo desta relação processual, pois se trata de mero ente executor da
política de atendimento socioeducativo no Estado da Bahia, sem qualquer
autonomia financeira e orçamentária para atender ao pleito deduzido em Juízo,
como bem afirmou o Ministério Público, razão pela qual determino o
desentranhamento da petição de fls. 390/424, permanecendo nos autos, no
entanto, os documentos de fls 425/460, em face de constituir importante
substrato para a instrução probatória. Poder-se-ia até admitir a intervenção da
FUNDAC como mero assistente da parte
demandada, todavia, não foi nessa condição que se habilitou nos autos, pelo que
determino o seu afastamento desta relação processual.
V - DO MERITUM CAUSAE:
Ultrapassadas as
preliminares suscitadas nos autos, passo a conhecer diretamente do pedido
deduzido em Juízo.
Trata-se
de uma Ação Civil Pública deflagrada pelo Ministério Público Estadual contra o
Estado da Bahia, no sentido de condená-lo a obrigação de fazer uma unidade de
internação definitiva e provisória destinada a custodiar adolescentes que
cumprem medida socioeducativa de internamento.
Antes de adentrar nas questões de
judicialização de políticas públicas, da reserva do possível, do mínimo
existencial, da análise pelo Judiciário da discricionariedade da administração
pública e dos princípios pertinentes no presente caso que serão analisados
adiante, torna-se curial responder a uma indagação feita pelo ilustre
procurador do Estado em sua contestação, quando, após asseverar que a questão
dos menores infratores de Itabuna e região afigura-se um terrível erro de
perspectiva, questiona “como um provimento judicial para obrigar o Estado da
Bahia a construir uma unidade de internamento para menores infratores em
Itabuna, quando, por exemplo, em Vitória da Conquista, Juazeiro, Barreiras ou
outros municípios do Estado subsiste o mesmo problema?" A pergunta, de
forma mais simples, pode ser formulada
da seguinte forma: "Por que a Comarca de Itabuna se credencia como
legítima para receber uma unidade de internação para adolescentes em conflito
com a lei?" A resposta pode ser inicialmente obtida pela leitura do Plano
Estadual de Atendimento Socioeducativo 2011/2015 do Estado da Bahia,
precisamente às fls. 343, que a aponta a Comarca de Itabuna como a cidade de
maior vulnerabilidade para jovens com idades de 12 a 29 anos de idade. Vejamos
parte do texto de fls. 343 dos autos:
“Em pesquisa divulgada
pelo Fórum Brasileiro da Segurança Pública e o Ministério da Justiça (2009), o
índice de vulnerabilidade juvenil e a violência (IVJV) é considerado muito
alto, acima de 0,5%. Das dez situações mais críticas figura em 1º lugar o
município de Itabuna, que tem mais de 100 mil habitantes, onde os adolescentes
e jovens com idade de 12 a 29 anos estão mais vulneráveis à violência”
Nesse diapasão, por se
tratar de ser uma cidade violenta e de alta vulnerabilidade para crianças,
adolescentes e jovens, é que Itabuna, depois de Salvador, é a Comarca que mais
encaminha adolescente para cumprir medida socioeducativa de internação em
Salvador, conforme se pode constatar pela leitura do Plano de Atendimento
Socioeducativo do Estado da Bahia 2011/2015 às fls. 351 dos autos e pela
certidão de fl. 604 que noticia a quantidade de decisões aplicando medidas de
internação provisória e definitiva nos anos de 2010, 2011 e 2012. Como se não
bastassem esses dados estatísticos iniciais torna-se imperioso frisar que a
violência na Comarca de Itabuna é contínua e crescente ao longo desses quatros
anos, muito embora 2010 tenha sido certamente (não dispomos de dados oficiais)
o ano mais violento com mais de 160 jovens assassinados, dos quais 44
respondiam a processos na Vara da Infância e Juventude desta Comarca, conforme
certidão de fls. 604. Em 2011, reportagem da Revista VEJA do mês de abril, aponta Itabuna como o
2º município mais violento do País, apresentando uma média de 111,8 homicídios
por cada 100 mil habitantes, só perdendo o primeiro posto para Marabá no Pará.
Nesse mesmo ano, 11 adolescentes que respondiam a processo na Vara da Infância
e Juventude de Itabuna morreram assassinados, conforme se constata pela
certidão anexada aos autos. Para se ter uma idéia da gravidade da situação, Rio
de Janeiro apresentou um índice de 34%, e a média nacional não chegou a 30%.
Recente pesquisa realizada em 2012 recoloca o município de Itabuna em primeiro
lugar no Brasil, como a cidade mais violenta para jovens de 12 a 18 anos,
apresentando um percentual de 10,59, quando a média baiana é de 7,86. Diante
desses números gigantescos, que dimensionam a gravidade da situação de
violência em Itabuna creio que está mais do que justificável a necessidade
inadiável de se instalar na Comarca de Itabuna uma unidade de internação
definitiva e provisória para adolescentes em conflito com a Lei.
Ressalte-se
que a Comarca de Itabuna é atualmente entrância final, ou seja, possui a mesma
categoria da Comarca de Salvador e juntamente com Salvador, Feira de Santana,
Vitória da Conquista e Ilhéus, é uma das poucas Comarcas da Bahia, onde existe
Vara Especializada da Infância e Juventude. Trata-se de uma cidade polo da
região sul da Bahia, com mais de 220 mil habitantes, cuja unidade de
internação, caso instalada, vai servir a mais de 20 municípios, incluindo
Ilhéus, Canavieiras, Camacan, Pau Brasil, Itajuípe, Buerarema, Coaraci,
Itacaré, Uruçuca, Ubaitaba, Aurelino Leal, Una, dentre outros, atingindo uma
população de mais de um milhão e quinhentas mil pessoas. Se pelos dados
estatísticos da violência, e pela posição geográfica o projeto de implantação
da unidade de internamento em Itabuna já se justifica, o critério econômico e
da racionalidade também reforça a tese, pois Itabuna e todos os municípios da
região sul da Bahia – que mais encaminham adolescentes para cumprir medida de
internação em Salvador – deixarão de fazê-lo, economizando as despesas de
deslocamento, como diárias, combustível, lanches para os adolescentes,
inclusive evitando o desvio de função dos agentes da polícia civil que são
obrigados a transportar os adolescentes infratores para a capital do Estado e
Feira de Santana. Ressalte-se que o problema da superlotação das unidades de
internamento de Salvador seria resolvido, pois deixaria de receber todo esse
contingente de adolescentes infratores da região sul do Estado, racionalizando
assim o sistema de internação na Bahia.
Indaga-se: diante desse quadro como não falar de inércia
e omissão do Estado da Bahia na política pública de atendimento ao adolescente
infrator na Comarca de Itabuna? Esse desprezo e essa indiferença do Estado da
Bahia para com o município de Itabuna não estariam violando direitos
fundamentais assegurados aos adolescentes infratores pela Constituição Federal
e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente? O Estado da Bahia na escolha de
sua política pública estaria observando a doutrina da proteção integral e o
princípio da prioridade absoluta assegurados aos adolescentes nos arts. 227 da
CF e 4ª do ECA? Sem dúvida alguma, o Estado da Bahia foi omisso e vem violando
ao longo do tempo direitos fundamentais garantidos por lei e pela CF aos
adolescentes em conflito com a lei, especialmente, aquele contra quem é
aplicada a medida socioeducativa de internação provisória e definitiva. Reza o
art. 227 da CF, o seguinte “ in verbis”:
“ É dever da família,
da sociedade e do Estado , assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”
Dessa
forma, tendo como núcleo a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes,
nasce a doutrina da Proteção Integral insculpida na CF e consagrada no Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA - como um novo paradigma, conformando num
mesmo diploma os denominados direitos civis e os direitos sociais do segmento
infanto-juvenil – crianças, pessoas de 0 a 12 anos incompletos, e adolescentes,
pessoas de 12 a 18 anos incompletos, e não se limitando apenas com a
normatização de uma categoria ou classe – os menores - , como vinha
ocorrendo com o diploma anterior, no âmbito da doutrina da situação irregular
disciplinada pela Lei nº. 8.069/90, criando, assim, o princípio da
responsabilidade solidária do Estado, da sociedade e da família. A
responsabilidade pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente não
está mais centralizada na figura do juiz, que passa a ser mais um dos diversos
atores no sistema de garantias de Direito, embora importantíssimo, diria-se até
imprescindível para a efetiva proteção dos direitos assegurados no ECA e na
Constituição Federal. Segundo o escólio de Martha Toledo, a implementação de
políticas públicas e a tutela jurisdicional consubstanciam em dois mecanismos
jurídicos para que se alcance a efetiva proteção desses direitos. Preleciona a
ilustre jurista :
"Na esfera da tutela jurisdicional, essa participação,
embora não expressa e completamente pormenorizada, dá-se na medida em que a
Constituição não apenas criou poderosos instrumentos de defesa judicial dos
direitos fundamentais [...], como possibilitou a legitimação da sociedade civil
organizada para a provocação da tutela jurisdicional em defesa dos direitos de
crianças e adolescentes" (Na Constituição Federal, artigo 129, § 1º,
concretizado pela Lei de Ação Civil Pública e pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente).
No caso em comento, a situação do adolescente em conflito com a
lei na Comarca de Itabuna, conforme relatado nos autos pelo Ministério Público
é extremamente grave, pois diante do quadro de extrema violência incidente
sobre o segmento infanto-juvenil, que lidera o ranking de cidade mais violenta
do País para adolescentes de 12 a 18 anos de idade, ainda não mereceu qualquer investimento por
parte do Estado da Bahia, que se mostrou ao longo do tempo, inerte, omisso e
indiferente. As unidades de semiliberdade e internação, consoante o disposto no
art. 4º, III, da Lei nº 12.594/2012, é de responsabilidade do Estado, todavia
até a presente data, e não obstante a gravidade verificada pelos dados da
violência, não existe em Itabuna nenhuma unidade, seja de semiliberade, seja de
internação. Como se não bastasse, e apesar da violência crescente e assustadora
da delinquência juvenil em Itabuna nos últimos quatro anos, o Estado da Bahia,
através da Secretaria de Segurança Pública, indiferentemente, extinguiu a SEMI
– Seção do Menor Infrator -, para priorizar a instalação de uma Delegacia
Especializada de Homicídios. Ora, a Comarca de Itabuna dispõe de uma Vara
Especializada da Infância e Juventude e como tal necessitava de uma Delegacia
Especializada para o adolescente em conflito com a lei, com pessoas
qualificadas e com perfil que criassem as condições para prestar uma tutela
diferenciada aos adolescentes em conflito com a lei, oferecendo um serviço de
qualidade a esse segmento considerável de nossa sociedade, entretanto, o que se
observa é que o mínimo que existia – SEMI – foi desativado, jogando
literalmente os adolescentes às feras, isto é, a qualquer delegado de polícia
sem preparação específica para atender aos adolescentes a quem se atribui a
prática de ato infracional, com a consequente
violação dos direitos assegurados na CF e no ECA. O Adolescente que é
apreendido pela Polícia acusado do cometimento de ato infracional praticado com
violência ou grave ameaça é ouvido pela autoridade policial e em seguida
encaminhado ao Ministério Público, que, depois, diante das provas coligidas
pela autoridade policial, pode oferecer Representação acompanhada na maioria
dos casos de pedido de internação provisória. O juiz da Infância e Juventude,
dentro do prazo de 05 dias, deve realizar audiência, ouvir o representado e
seus pais ou responsável, e deliberar sobre a decretação da internação
provisória. Caso seja decretada a internação provisória é encaminhado um ofício
com as guias de execução provisória à autoridade policial para providenciar a
remoção do representado até a unidade do CASE em Salvador. O prazo máximo que é
permitido ao adolescente permanecer numa seção da delegacia aguardando a sua
remoção para uma unidade de cumprimento de medida socioeducativa é de 5 dias,
conforme estabelece o art. 185, §2º, do ECA. Normalmente, em face das questões
burocráticas e dificuldades do deslocamento, o representado só é encaminhado
para Salvador quando decorridos 10, 15, ou mais dias de seu encarceramento
inicial, violando assim esse e outros
dispositivos do ECA.
Todavia, os policiais civis não são obrigados a realizar este
transporte, tanto que já fora interrompido várias vezes, criando enormes
dificuldades para a instrução do processo. Vale ressaltar que sistematicamente
são violados direitos assegurados ao adolescente, como o direito de participar
das audiências de instrução, já que uma vez custodiados em Salvador ficam
impossibilitados de compareceram a audiência por falta de transporte para tal
fim. O Transporte de adolescentes para Salvador mais uma vez está na iminência
de ser interrompido, o que poderá causar um caos na instrução e julgamento dos
processos envolvendo adolescentes, com todos os prejuízos daí decorrentes.
Todas essas dificuldades, sem dúvida alguma, seriam resolvidas e superadas com
a instalação nesta Comarca de uma unidade de internamento que comportasse
também internamento provisório, contemplando toda a região sul da Bahia.
Como falar em
observância do princípio da prioridade absoluta assegurado aos direitos de
criança e adolescentes pela CF e pelo ECA diante do total desprezo e omissão
aos direitos dos adolescentes em conflito com a lei pelo Estado da Bahia?
No caso em
comento não calha o argumento trazido à lume pelo ilustre Procurador de que
eventual provimento jurisdicional favorável ao autor representaria indevida
invasão do Judiciário nas escolhas discricionárias da Administração Pública.
Este fundamento que sempre foi utilizado pela Administração Pública nas
contestações das ações civis públicas ou nos mandados de segurança para que se
mantivesse o controle do Judiciário somente em relação ao aspecto da legalidade
do ato vinculado, e assim permitisse à Administração Pública permanecer longe
do alcance do Poder Judiciário, mesmo que omitindo e violando direitos
metaindividuais, há muito foi superado pelo fenômeno da judicialização da
política, pelo qual é permitido ao juiz, como guardião das promessas do
constituinte, aferir as escolhas – ato
discricionário – do administrador público, no sentido de verificar se elas se
adequam às normas legais e se atendem ao interesse público, e, principalmente,
analisar no caso concreto se direitos fundamentais estão sendo violados ou
ameaçados de violação em face de eventual omissão da Administração Pública.
Nesse sentido é lapidar a lição de Galdino Augusto Coelho Brandão, senão
vejamos:
“Esta nova postura que se espera do Poder Judiciário nada
mais será do que exercitar seu papel de controlar o cumprimento da Carta Magna
pelos demais Poderes do Estado, fazendo com que seja dada efetividade às normas
constitucionais. Isto implicará fazer com que sejam trazidas para apreciação
pelo Judiciário as questões políticas, inclusive de repercussão nacional,
porque , ao proferir a decisão em uma ação civil pública, o juiz estará
analisando as opções governamentais e determinando que estas venham a se
adequar às normas legais. É o fenômeno denominado pelo doutrina de
judicialização da política”
Logo adiante arremata categoricamente:
“O Judiciário deverá agir com firmeza, respondendo
adequadamente e à altura dos anseios da sociedade, pois são os anseios sociais,
corporificados em uma democracia participativa, que encontram-se
traduzidos na proteção dos direitos
metaindividuais defendidos por intermédio da ação civil pública. Estamos diante
do momento atual pelo qual passa a sociedade brasileira, onde o povo busca
participação, além da política, no exercício do poder. Esta nova realidade de
participação será através do adequado controle da legalidade dos atos estatais,
visando, precipuamente, o respeito e a eficácia aos direitos fundamentais
constitucionalmente previstos”.
Não obstante, no caso em comento torna-se desnecessário
imiscuir-se no âmago da discricionariedade da Administração Pública, porquanto
o Estado da Bahia no âmbito do Atendimento Socioeducativo ao adolescente em
conflito com a lei já fez a sua escolha, isto é, já elegeu a sua política
pública do atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei no
Estado com a regionalização das unidades de internação no interior do Estado
com a previsão da construção de uma unidade de internação definitiva e
provisória no município de Itabuna, conforme consta do Plano Estadual de
Atendimento Socioeducativo – 2011/2015 (fls. 330/387) – elaborado e discutido
pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CECA BAHIA -,
órgão deliberativo e formulador de políticas públicas com relação ao
atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei, conforme
previsão dos incisos I e II, e §§ 1º e
2º do inc. X, todos do art. 4º da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012,
também conhecida como Lei do SINASE, c/c o art. 88, II, da Lei nº 8.069/90 –
Estatuto da Criança e do Adolescente. Vale ressaltar que o SINASE – Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo - que, consoante o conceito legal
extraído do § 1º do art. 1º da Lei nº
12.594/2012, “É o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que
envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão,
os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos,
políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com
a lei”, além de indicar o órgão legitimado
para formular políticas públicas com relação ao atendimento socioeducativo aos
adolescentes em conflito com a lei no Estado, estabelece também a competência
do Estado para a criação, desenvolvimento e manutenção de unidade de internação
no Estado, senão vejamos:
Lei nº
12.594, de 18 de janeiro de 2012:
Art. 4º -
Compete aos Estados:
I –
formular, instituir, coordenar e manter Sistema Estadual de Atendimento
Socioeducativo, respeitadas as diretrizes fixadas pela União;
II –
elaborar o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo em conformidade com o
Plano Nacional;
III – criar,
desenvolver e manter programas para a execução das medidas socioeducativas de
semiliberdade e internação;
(....) –
omissis;
X –
cofinanciar , com os demais entes federados , a execução de programas e ações
destinados ao atendimento inicial de adolescente apreendido para apuração de
ato infracional, bem como aqueles destinados a adolescente a quem foi aplicada
medida socioeducativa privativa de liberdade.
§ 1º - Ao Conselho Estadual dos Direitos da Criança
e do Adolescente competem nas funções deliberativas e de controle do Sistema
Estadual de Atendimento Socioeducativo, nos termos previstos no inciso II do
art. 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 ( Estatuto da Criança e do
Adolescente), bem como outras definidas na legislação estadual ou distrital.
§ 2º - O
Plano de que trata o inciso II do caput deste artigo será submetido à
deliberação do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.
§ 3º - Competem
ao órgão a ser designado no Plano de que trata o inciso II do caput deste artigo as funções executiva e de gestão
do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo. (grifos dom magistrado)
Com efeito, a política pública discutida e aprovada no Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CECA DA BAHIA – consistente
na previsão da construção de uma unidade de internação definitiva e provisória
destinada a adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional no
município de Itabuna vincula o Poder Executivo Estadual, no sentido de
compeli-lo a concretizar a política pública escolhida efetivando os direitos
sociais pleiteados. Nesse sentido é lapidar a lição do jurista Murillo José
Digiácomo:
“(...) uma resolução do Conselho de Direitos da Criança e do
Adolescente, que consiste na materialização de uma deliberação do órgão, tomada
em pleno exercício de sua competência constitucional específica, VINCULA
(OBRIGA) o administrador público, que não terá condições de discutir seu mérito,
sua oportunidade e/ou conveniência, cabendo-lhe apenas tomar as medidas
administrativas necessárias a seu cumprimento ( e também em caráter prioritário, ex vi do disposto no art. 4º,
parágrafo único, alínea “c”, in fine, da Lei
nº 8.069/90 c/c art. 227 , caput, da Constituição Federal, a começar
pela adequação do orçamento público às demandas de recursos que em razão
daquela decisão porventura surgirem”
Os juristas Wilson Donizeti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino
reforçam essa assertiva, como se pode observar pelo seguinte trecho extraído de
sua obra:
“Na medida em que a Constituição exigiu a estruturação de
órgãos descentralizados, com a participação popular, para a formulação e
controle das políticas públicas, uma vez criados por lei este órgãos, suas
decisões serão verdadeiras manifestações estatais, “de mérito”, “ opções de
políticas criativas” adotadas por um órgão público visando o interesse
público”.
Patrícia Silveira Tavares é mais explícita e contundente, quando
afirma:
“(...) uma
vez realizada a deliberação pelo Conselho dos Direitos da Criança e do
Adolescente – e estando o ato em conformidade com os requisitos e pressupostos
dos atos administrativos em geral, e ainda, com as regras procedimentos
constantes da legislação de regência – não resta outra alternativa à Chefia do
Poder Executivo, senão acatar e respeitar a
vontade do colegiado, sendo-lhe vedada, portanto, a criação de qualquer
espécie de embaraço à sua execução, sob pena de responder administrativamente
ou criminalmente tal ato”.
Seguindo essa
linha de entendimento, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou caso
semelhante, muito embora na esfera municipal,
na Ap. Cível de nº 057.700/7-0, no dia 11.01.2001, tendo como relator o
Des. Nigro Conceição, cuja ementa é a seguinte:
“Obrigação de fazer – implantação de programa para
atendimento de crianças e adolescentes viciados no uso de entorpecentes e
inclusão de previsão orçamentária respectiva, com adoção de providências
administrativas cabíveis – sentença de improcedência, sob o argumento de que o
Município já vem oferecendo este programa – inadmissibilidade – Necessidade de
observância de resolução baixada pelo Conselho Municipal de Direitos da
Criança e do Adolescente – Programa
oferecido que, em última análise, não atende aos casos crônicos, por não prever
tratamento mais acurado, com internação, se necessária – Dever do Poder Público
em dar cumprimento às normas programáticas previstas na Constituição Federal e
efetividade dessas normas – Implantação
de programa e inclusão de previsão orçamentária determinada, assim como
adoção de todas as providências indispensáveis à sua efetivação –
desacolhimento da argumentação de
intromissão indevido do Judiciário na esfera de atuação do Executivo –
Necessidade, no entanto, de que seja ficado prazo para cumprimento de todos os
pedidos – Recurso provido”.
VI - DA
VIOLAÇÃO DO DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ADOLESCENTES PRIVADOS DA LIBERDADE NA
COMARCA DE ITABUNA:
A situação a quem são
expostos os adolescentes apreendidos e acusados da prática de algum ato
infracional grave na Comarca de Itabuna é degradante, humilhante, violando
frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana insculpido no art. 3º de
nossa Carta Magna, além de vários dispositivos da Convenção Internacional dos
Direitos Humanos dos jovens privados de Liberdade, da qual o Brasil é
signatário, principalmente no toca a inexistência de tratamento especial e
adequado à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, em face da
ausência de delegado e equipe especializados e condição degradante a que são
submetidos, quando são obrigados a esperar numa repartição do Complexo Policial
de Itabuna à sua remoção para unidade de internação em Salvador, ficando
privados de se acomodarem em cama com lençóis, agasalho para suportar o frio,
vestuário, alimentação adequada, e, algumas vezes ficam privados de receber
visitas, em face da ausência de pessoas capacitadas para custodiá-lo nesse
período. Na verdade, como será demonstrado, vários dispositivos da CF, do ECA e
da Lei do SINASE são sistematicamente violados pelo tratamento dispensado pelo
Estado da Bahia ao adolescente em conflito com a lei. Com efeito, os
adolescente apreendidos em Itabuna ficam alijados, quando são apreendidos, de
vários direitos assegurados no ECA, como se pode observar:
Art. 123. A internação
deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto
daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de
idade, compleição física e gravidade de infração.
Parágrafo Único. Durante o período da internação, inclusive provisória,
serão obrigatórias atividades pedagógicas.
Como se sabe, a Comarca de
Itabuna, embora dotada de uma Vara Especializada da Infância e Juventude, não
dispõe de uma unidade de atendimento com esses requisitos mínimos, nem tampouco
de uma Delegacia Especializada para atender adolescentes infratores,
sujeitando-os a toda espécie de constrangimento, quando são obrigados a
aguardar a sua remoção para Salvador (distante mais de 400 Km) em espaço
inadequado, fétido e desprovido das condições mínimas para abrigar, ainda que
temporariamente, o adolescente apreendido. Ademais, a distância acaba afetando
os vínculos familiares e comunitários do adolescente internado, comprometendo
assim, a sua própria ressocialização.
Por sua vez, o art. 124 assim dispõe:
Art. 124 . São direitos do adolescente privado de liberdade, entre
outros, os seguintes:
I – entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério
Público;
II – peticionar diretamente a qualquer autoridade;
III – avistar-se reservadamente com seu defensor;
IV – ser informado de sua situação processual sempre que solicitada;
V – ser tratado com respeito e dignidade;
VI – permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao
domicílio de seus pais ou responsável;
VII – receber visitas, ao menos semanalmente;
VIII – corresponder-se com seus familiares e amigos;
IX – ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal;
X – habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade;
XI – receber escolarização e profissionalização;
XII – realizar atividades culturais, esportivas e de lazer;
XIII – ter acesso aos meios de comunicação social;
IV – receber assistência religiosa, segundo sua crença, e desde que
assim o deseje;
XV - manter a posse de seus
pessoais e dispor de local seguro para guardá-lo, recebendo comprovante
daqueles porventura depositados em poder da entidade;
XVI – omissis
(...) - omissis ( grifo nosso)
Como se
depreende, vários dispositivos estão sendo violados na Comarca de Itabuna
quando se trata de atendimento socioeducativo a adolescente em conflito com a
lei, a começar pela impossibilidade de permanecer internado na mesma localidade
onde residem seus pais ou responsáveis, ou em alguma entidade mais próxima,
conforme previsão do inc. VI do art. 124 do ECA. A distância de mais de 400 Km
constitui um grande obstáculo para a efetiva ressocialização do jovem infrator,
que acaba quebrando os seus vínculos familiares e comunitários, contrariando
assim também o disposto no art. 35, IX, da Lei nº 12.594/2012. Sem embargo de
eventual ajuda financeira da FUNDAC às famílias que desejam visitar seus filhos
na unidade de internamento em Salvador, torna-se inviável cumprir o disposto no
inc. VII do referido artigo, porquanto além do cansaço físico, há outras
despesas no referido deslocamento além dos custos de passagem, que inviabiliza
a visitação semanal, mesmo porque o perfil dos adolescentes internados em
Salvador é oriundo de classe pobre, alguns vivendo em situação de extrema
miséria.
Por outro lado, os adolescentes que
são encaminhados para a Comarca de Salvador, como bem ponderou o Parquet em
sua exordial, ficam impedidos de comparecerem à audiência de instrução e
julgamento, em face da ausência de transporte para tal propósito, ensejando,
assim, a violação dos princípios constitucionais à ampla defesa e do
contraditório, estabelecidos no inciso LV do art. 5º da CF de 1988, bem como no
art. 35, I da Lei nº 12.594/2012, porquanto agindo assim, o Estado está dispensando
tratamento mais gravoso ao adolescente em relação ao imputável, que dispõe
nesta Comarca de Presídio adequado para abrigar presos provisórios e condenados
definitivamente pela Justiça.
Sem dúvida alguma o Estado da Bahia
passou ao largo da doutrina de proteção integral estabelecida no art. 227 da CF
e reproduzida no art. 4º do ECA, ferindo vários direitos fundamentais
assegurados aos adolescentes em conflito
com a lei, principalmente, no que se refere a seu dever de assegurar,
com absoluta prioridade, o direto à dignidade, à convivência familiar e
comunitária, e o de livrá-lo do tratamento degradante e cruel que é dispensado
ao adolescente apreendido nesta Comarca, até a sua remoção para uma unidade de
internamento em Salvador.
VII - DA
JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. DO ATIVISMO JUDICIAL. DA RESERVA DO
POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL DOS DIREITOS SOCIAIS E FUNDAMENTAIS DE
ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE:
Ainda que não fosse feita a
escolha da política pública de uma unidade de internação destinada a
adolescente em conflito com a lei na Comarca de Itabuna, o substrato fático
constante dos autos, principalmente no que se refere aos dados estarrecedores
da violência juvenil na Comarca de Itabuna e o tratamento desumano e cruel
dispensado aos adolescentes apreendido nesta Comarca pelo Estado da Bahia, com
espaços inadequados, fétidos e insalubres – iminência de ser interditado -, com
a violação sistemáticos de vários direitos e garantias assegurados pela
Constituição Federal e pelo ECA, já justificaria o controle judicial dessa
política pública, no sentido de compelir a Administração Pública Estadual a
criar, desenvolver e manter uma unidade de internação definitiva e provisória
de adolescentes em conflito com a lei,
como lhe compete, nos termos do art. 4º, III, da Lei nº 12.594/2012,
porquanto a discricionariedade administrativa não é absoluta no âmbito do
neoconstitucionalismo, pois a política pública, como direito de 2ª geração têm
um caráter finalístico, que é a concretização dos princípios e regras
constitucionais, no sentido de atender de forma difusa ou coletiva os direitos sociais, econômicos e culturais
de determinada sociedade, no caso em tela, os direitos assegurados na
Constituição Federal e no ECA aos adolescentes privados de liberdade. Com
efeito, o neoconstitucionalismo, dentro da filosofia pós-positivista, demarca a
passagem do estado liberal positivista, onde a lei era a única fonte de
legitimação do Direito, para a construção de um Estado Democrático e
Constitucional de Direito, no qual é reconhecida a supremacia da Constituição e
a força vinculante e normativa de seus princípios, regras e valores, podendo,
portanto, controlar judicialmente as políticas públicas, sem que se fale em
violação ao princípio de separação dos poderes. O autor José Sérgio da Silva
Cristovam em seu excelente artigo sobre
“Breves Considerações sobre o Conceito de Políticas Públicas e seu Controle
Jurisdicional" explicita, com maestria:
“A supremacia da Constituição é o traço marcante do Estado constitucional
. A própria teoria da soberania do
Estado deve ser deslocada para a idéia de soberania da Constituição. O Estado
somente alcança legitimidade , na medida em que garante as liberdades
fundamentais e implementa os direitos fundamentais sociais, numa clara
redefinição do conceito de soberania. Soberania é a Constituição. O Estado é
apenas instrumento de efetivação dos ditames constitucionais.
Partindo desses parâmetros, não parece que o controle jurisdicional de
políticas públicas afronta o princípio constitucional de separação de poderes.
Antes o torna efetivo, vez que por meio da justicialidade de políticas públicas
se busca garantir a implementação de direitos fundamentais positivos”.
Destarte,
superada a fase positivista da separação linear e estática das funções dos
poderes criada por Monstesquie, urge reconfigurar o papel do Judiciário, como
instância legitimadora da efetividade das políticas públicas. Vejamos o
conceito de José Sérgio da Silva Cristóvam na obra já citada, sobre Políticas
Públicas:
“ As políticas públicas
podem ser entendidas como o conjunto de planos e programas de ação
governamental voltados à intervenção no domínio social, por meio dos quais são
traçadas as diretrizes e metas a serem fomentadas pelo Estado, sobretudo na
implementação dos objetivos e direitos fundamentais dispostos na Constituição”.
Nesse
contexto, é hoje pacífico que o legislador e o administrador público não são
completamente livres para fazer suas escolhas, mormente quando o conteúdo
desses programas governamentais ou sua omissão possa violar direitos
fundamentais, exigindo-se uma nova postura do Judiciário – intervencionista -,
com a figura de um novo juiz sincronizado com o direito aberto, cuja decisão
livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso
concreto numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional,
sendo, verdadeiramente, o garantidor das promessas do constituinte. Nesse sentido, merecer transcrição o seguinte
aresto que se amolda perfeitamente ao caso sub judice, senão vejamos:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
ECA. OBRIGAÇÃO DE O ESTADO-MEMBRO CRIAR, INSTALAR E MANTER PROGRAMAS DESTINADOS
AO CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIO-EDUCATIVAS DE INTERNAÇÃO E SEMILIBERDADE
DESTINADOS A ADOLESCENTES INFRATORES. INCLUSÃO NECESSÁRIA NO ORÇAMENTO. TEM O
ESTADO O DEVER DE ADOTAS AS PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS A IMPLANTAÇÃO. A
DISCRICIONARIEDADE, BEM COMO O JUÍZO DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
SUBMETEREM-SE A REGRA DA PRIORIDADE ABSOLUTA INSCULPIDA NO ART. 4º DO ECA E NO
ART. 227 DA CFB. RECURSO DESPROVIDO, POR MAIORIA. ( TJRS, 7ª C.CÍVEL, AP. CÍVEL
Nº 597097906, REL.SÉRGIO FERNANDES DE VASCONCELOS CHAVES, J. 22.04.98)
Como é
cediço, essa espécie de decisão judicial – controle judicial sobre políticas
pública – tem se multiplicado no Brasil, e já constitui posicionamento pacífico
do STF, conforme se pode observar do RE 63463, da lavra do Relator Min. Joaquim
Barbosa, bem como da ementa resumida extraída do Agravo de Instrumento de nº
809018, cujo relator foi o Min. Dias Tóffoli, lavrada nos seguintes termos:
“ O poder Judiciário,
em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote
medidas assecuratórias de direitos constitucinalmente reconhecidos como
essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de
poderes”
Dessa
forma, está legitimada a intervenção do Poder Judiciário para compelir o Estado
da Bahia a implementar políticas públicas, consistente na criação,
desenvolvimento e manutenção de uma unidade de internamento definitivo e
provisório para adolescentes infratores na Comarca de Itabuna, sem que se fale
em violação ao princípio da separação dos poderes, principalmente, em face da
situação excepcional e extremamente grave de Itabuna, considerada a cidade mais
violenta do país para jovens de 12 a 18 anos, cujo atendimento dispensado ao
adolescente em conflito com a lei é precário e deficiente, em face da
inexistência de uma unidade de internamento nesta Comarca, sendo por isso
mesmo, a Comarca que mais encaminha adolescente infratores para cumprir medida
socioeducativa de internação na capital do Estado.
O argumento da “reserva do possível”
não constitui óbice ao acolhimento do pleito, pois nem sempre a escassez de
recursos ou a limitação orçamentária pode servir de justificativa genérica para
a omissão estatal e o desrespeito à concretização de direitos sociais
fundamentais. A demandada se limitou a afirmar a escassez de recurso, sem
comprovar especificamente essa limitação do orçamento. O orçamento não pode ser
considerado um mero instrumento contábil, formal de previsão de receitas e
despesas. O acadêmico da UESC, Pedro Andrade Santos, em sua excelente
monografia intitulada “Judicialização da Política e Efetivação da Constituição:
um estudo acerca do controle judicial de políticas públicas", explicita:
“Hodiernamente, concebe-se o orçamento como orçamento-programa, uma vez
que destinado ao planejamento das ações governamentais e definição de planos de
governos e atuação estatal, destinados ao desenvolvimento social e econômico. A
Constituição, portanto, vincula a elaboração e execução das leis orçamentárias,
exigindo estejam direcionadas a implementação dos direitos fundamentais
sociais”.
A teoria
da reserva do possível não pode servir como justificativa para negar à
pretensão ministerial quando se está diante de uma omissão estatal que não
assegura o mínimo existencial no que toca aos direitos dos adolescentes em
conflito com a lei e privados da liberdade na Comarca de Itabuna. Como bem
disse o ilustre Parquet, “ente público apenas terá um juízo de
conveniência e oportunidade na implementação de determinadas políticas públicas
quando já tiver garantido o mínimo aceitável”, o que, seguramente, não é o caso
dos autos, pois a ausência de política
pública do atendimento socioeducativo do Estado da Bahia com relação ao
adolescente em conflito com a lei privado de liberdade é incontroversa. Não
obstante a violência assustadora verificada na Comarca de Itabuna,
principalmente no que concerne a delinquência juvenil, não há qualquer
investimento do Estado na Comarca de Itabuna, nem mesmo uma unidade de
semiliberdade, como também é de sua competência . Como sustentar a teoria da
reserva do possível e a concretização do princípio da prioridade absoluta
conferida aos adolescentes em conflito com a lei no presente caso, nos termos
do art. 227 da CF, se o Estado da Bahia
no exercício de 2011 gastou R$ 122.300.000,00 (cento e vinte e dois
milhões e trezentos mil reais) com propaganda e publicidade, mas não dispõe de pouco
mais de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais) para construir uma unidade de
internamento para adolescentes infratores na Comarca de Itabuna, considerada a
mais violenta do país para adolescentes entre doze a dezoito anos de idade?
Como justificar diante dos números a escassez de recursos e orçamento limitado
para a construção da unidade de internamento provisório e definitivo para
adolescentes infratores na Comarca de Itabuna? Na verdade, a referida unidade
serviria para custodiar os adolescentes de toda a região sul do Estado da
Bahia, diminuindo assim, consideravelmente, o contingente de adolescente
infratores que são encaminhados para a capital do Estado, resolvendo assim, o
problema da superlotação no CASE. O problema do transporte dos adolescentes
também seria sanado, pois o acordo celebrado entre as autoridades da FUNDAC, da
Secretaria de Segurança Pública, do Ministério Público e da Coordenadoria da
Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia já findou e os problemas
já começaram a acontecer em algumas Comarcas com a recusa sistemática dos
agentes da polícia civil em fazer o transporte, sob a alegação de desvio de
função. Na verdade, o Estado da Bahia está retrocedendo na esfera da política
pública de atendimento socioeducativo, pois nem sequer o mínimo existencial
está assegurado ao adolescente em conflito com a lei em Itabuna. Nesse sentido,
merece transcrição o seguinte aresto do TJMG, que guarda pertinência com o caso
em tela:
“EMENTA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER.
LIMINAR. IMPLANTAÇÃO DO SERVIÇO DE ACOLHIMENTO DE MENORES. DISCRICIONARIEDADE E
SEPARAÇÃO DOS PODERES. MÍNIMO EXISTENCIAL E PROIBIÇÃO DO RETROCESSO NA SEARA
DOS DIREITOS SOCIAIS. LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. O acolhimento institucional, como eficiente instrumento de concretização
dos direitos da criança e do adolescente, é medida indiscutivelmente afeta à
política social pública que, por enfática exigência da vigente Constituição
Federal, goza de absoluta prioridade, razão pela qual a omissão do Poder
Executivo em sua prestação está sujeita ao controle do Poder Judiciário, cuja
interferência , em casos tais, não ofende o princípio da separação dos poderes e nem mesmo o dia reserva do
possível, aos quais se sobrepõem os princípios constitucionais do mínimo
existencial e da proibição do retrocesso na seara dos direitos sociais, como já
vaticinou a Suprema Corte Constitucional (Ag no RE com Ag nº 639337/SP, 2ª
T/STF, rel. Ministro Celso de Mello). Agravo de Instrumento Cível nº
1.078.10.002965-9/001. Rel. dês. Peixoto Henriques j. 10/01/2012, p.
03/02/2012.
É
precisamente o caso dos autos. O Estado da Bahia não apenas deixou de priorizar
o atendimento socioeducativo para adolescente em conflito com a lei na Comarca
de Itabuna, mas sobretudo de garantir um mínimo existencial – uma delegacia
especializada, um setor especializado com delegado designado exclusivamente
para o atendimento socioeducativo de adolescentes acusados da prática de ato
infracional, um local adequado para custodiar adolescentes apreendidos com
pessoas capacitadas para cuidar dos mesmos, transporte adequado para
transportar adolescentes para Salvador no prazo estabelecido em lei e para
trazê-los para as audiências de instrução realizadas nesta Comarca, regular visitação dos familiares, vestuário,
alimentação adequada e produtos de higiene e asseio pessoal à disposição dos
adolescentes, dentre outros direitos fundamentais assegurados pela Constituição
Federal e pelo ECA. Sem dúvida, é manifesto o desprezo do Estado da Bahia e
omissão total com relação ao atendimento socioeducativo prestado nesta Comarca.
Dessa
forma, e em face de todas as questões examinadas e as razões expendidas, é de
rigor o julgamento procedente do pedido contra o Estado da Bahia, que é o ente
responsável pela articulação dos demais sistemas que serão acionados para a
consecução do atendimento socioeducativo a ser dispensado ao adolescente em
conflito com a lei na Comarca de Itabuna, como o sistema segurança pública,
saúde, educação, assistência social, dentre outros, no sentido de materializar
a política pública consistente na criação, desenvolvimento e manutenção de uma
unidade internamento provisório e
definitivo (adolescentes julgados e condenados definitivamente) na
Comarca de Itabuna, nos termos estabelecidos no art. 4º, III da Lei nº
12.594/2012.
O decisum numa ação civil
pública de obrigação de fazer, em face seu caráter de tutela transindividual,
embora se revista de caráter condenatório e até mesmo cominatório, difere da
sentenças tradicionais prolatada nos processos relativos a direitos
individuais, porquanto o manto coberto pela sentença deverá chegar ao resultado
prático equivalente a adimplemento, nos termos do disposto nos arts. 267 e 461
do CPC c/c o art. 213 da Lei nº 8.069/90, valendo dizer que todas as
providências subrogatórias serão direcionadas ao executado, no sentido de seja
cumprida fielmente a decisão e evitada imediatamente a violação de direitos
fundamentais assegurados aos adolescentes em conflito com a lei. Nesse sentido
merece transcrição do texto de Galdino Augusto Coelho Brandão extraído da obra
já mencionada nestes autos, vazada nos seguintes termos:
“Na lei de ação Civil Pública o juiz foi dotado de uma gama maior de
poderes, como, por exemplo, a possibilidade de conceder mandado liminar sem
ouvir a parte contrária(salvo se a situação fática se enquadrar na hipótese da
malfadada Lei nº 8.437/92). Julgar extra petita nas obrigações de fazer e não
fazer, aplicando astrientes, mesmo que o autor não as tenha pedido; determinar
providências sub-rogatórias, mediante ordens impostas ao devedor ou a terceiros
para chegar a um resultado prático equivalente a adimplemento, regra esta que a
reforma do CPC incluiu nos arts. 273 e 461( arts. 11 e 12 da LACP); art. 213 da
Lei nº 8.069/90; arts. 83 e 84 da Lei nº 8.078/90).
Em sede de direitos metaindividuais, a atuação do Poder Judiciário será
mais ampla do que a existente nos processos que cuidam de direitos individuais,
pois,em virtude da natureza especial deste direitos, que se espraiam por toda a
sociedade ou atingem um grupo muitas vezes indeterminado de pessoas, suas
conseqüências serão mais amplas”.
É
curial, entretanto, que se atentem “in casu” que a eventual obrigação de
fazer imposta ao Estado não se cumprirá no prazo inicialmente requerido pelo
Ministério Público em sua exordial, por demais exíguo, em face das exigências
legais com questões de ordem orçamentária, fiscal e financeira, envolvendo os
processos licitatórios e os contratos administrativos que deverão ser
celebrados, nos termos do que prescrevem as leis 8.666/93 e 9.433/2005, além de
outros diplomas legais pertinentes, o que evidentemente levará algum tempo para
se concretizar, valendo ressaltar que a previsão para a construção da unidade
de internamento para menores infratores na Comarca de Itabuna já consta do
Plano Plurianual, conforme reconheceu o próprio Procurador. Todavia, nada
impede que algumas providências imediatas sejam tomadas pela demandada, no
sentido de erigir um mínimo de estrutura física e humana, capaz de efetivar
transitoriamente o atendimento socioeducativo para adolescentes apreendidos
nesta Comarca até que seja construída a unidade de internamento provisório e
definitivo para adolescentes infratores, considerando que o atual espaço
destinado à apreensão de adolescente em conflito com a lei na Comarca de
Itabuna é insalubre e inadequado para custodiá-los à luz das diretrizes
estabelecidas pelo ECA e pela Lei do SINASE, conforme se verifica pelo termo de
inspeção acostado aos autos.
Posto
isso, julgo parcialmente procedente o pedido, para condenar o Estado da Bahia a
inserir no próximo orçamento anual, após o trânsito em julgado desta
sentença, dotação específica e
suficiente para a construção de uma unidade de internação na Comarca de
Itabuna, destinada a adolescente infratores, encaminhados para cumprir
internamento provisório ou internamento decorrente de sentença condenatória
definitiva, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) em caso de
descumprimento do preceito. Determino também, a título de tutela parcial e antecipada,
nos termos do art. 273 do CPC, que
também o demandado adote as providências cabíveis, em caráter urgência,
pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, no sentido de disponibilizar um espaço
adequado, com salubridade e boas condições de higiene, para abrigar
temporariamente adolescentes infratores apreendidos, devendo para tanto
designar delegado especial e exclusivo com agentes públicos para prestar
atendimento socioeducativo a adolescentes a quem se atribui a prática de ato
infracional, além de providenciar transporte adequado para transportar
adolescentes para as unidades de internamento e semiliberdade situadas no
Estado da Bahia e seu retorno para participar das audiências de instrução e
julgamento, tudo no sentido de evitar a sistemática violação de direitos
fundamentais assegurados pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente, sob pena de imposição de multa diária, no valor de R$ 10.000,00
(dez mil reais), nos termos do art. 461 do CPC.
Sem custas e sem condenação em honorários
advocatícios, na forma de lei.
Decorrido o prazo recursal, sem
recurso voluntário, encaminhem os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça da
Bahia, para fins de reexame obrigatório, nos termos do art. 471 do CPC.
P.R.I.