domingo, 27 de setembro de 2009

Sentenças: Despronúncia

Sentenças

Despronúncia

publicada em 14-05-2005


Ementa:

RELEITURA DO PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO SOCIETATIS" NA PRONÚNCIA, À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - AUSÊNCIA DE INDICIOS SUFICIENTES DA AUTORIA DELITIVA


Vistos etc.....


“ERRARE HUMANUM EST, SED IN ERRORE PERSERVERARE DEMENTIS”

Na verdade, a dúvida sempre me acompanhou neste processo, que foi lastreado num inquérito policial deficiente e cheio de falhas na colheita de provas idôneas para apontar os autores materiais e intelectuais – se é que estes existiram – neste crime hediondo que teve grande repercussão nesta Cidade. Hoje, após larga experiência no Tribunal do Júri e depois de debruçar-me sobre a verdadeira essência – natureza jurídica – da pronúncia, cheguei à conclusão de que não é qualquer dúvida que enseja o encaminhamento do réu para o julgamento popular em nome do princípio “in dúbio pro societate”. Há necessidade de uma nova interpretação da pronúncia à luz dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, sob pena de se cometer inominável injustiça. A pronúncia, como Juízo de admissibilidade de acusação, além de definir o fato a ser imputado ao réu – incluindo aí as qualificadoras – para propiciar ao órgão acusador em plenário uma acusação “enxuta”, extirpando os eventuais excessos, serve precipuamente como norma garantística para evitar que alguém seja encaminhado para o tribunal popular – onde impera o princípio da motivação ou convicção íntima – e condenado sem o apoio de provas suficientes que indique a existência de indícios sérios de autoria. O eminente jurista Vicente Greco Filho (GRECO FILHO, Vicente. Questões polêmicas sobre a Pronúncia. In: TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri: Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, p. 117-126, 1999) assim se expressa:

“... a função do juiz togado na fase da pronúncia é a de evitar que alguém que não mereça ser condenado possa sê-lo em virtude do julgamento soberano, em decisão, quiçá, de vingança pessoal ou social...Usando expressões populares, pode-se dizer que compete ao juiz evitar que um inocente seja jogado “às feras”, correndo o risco de ser condenado...No procedimento do Júri, em virtude da soberania e do julgamento por convicção íntima sem fundamentação, a garantia da liberdade somente pode estar na decisão de pronúncia.

A questão que sempre me afligiu e que me trouxe muitas dúvidas é se eu fosse julgar este processo como juiz singular, com base nos elementos probatórios que foram produzidos nos autos, eu teria possibilidades, ainda que mínimas, para condenar os pronunciados Maria Luzia Martins Ferraz Brito e João Batista Martins Ferraz? Se houvesse condenação esta decisão seria justa? Na verdade, analisando hoje a questão com maior serenidade e percuciência, entendo que a resposta negativa se impõe à primeira indagação, pois, na verdade os indícios – conforme consta da pronúncia – são frágeis e confesso que me vali da vala comum propiciada pelo princípio “in dúbio pro societate” para encaminhar os referidos réus para julgamento pelo Tribunal do Júri.

Na hipótese em tela ao perlustrar detidamente os autos, depreende-se que os indícios que liga a ré Maria Luzia Martins Ferraz Brito ao fato delituoso são de natureza subjetiva , configurados pelos motivos que teria Maria Luzia para matar seu ex-marido no momento em que percebeu que tinha sido trocada por outra. Esses impulsos emocionais de uma mulher traída e que teriam sido exteriorizados aos amigos íntimos da vítima - Francisco Brasília e Sargento Camilo -, este último uma espécie de testemunha-detetive com potencial interesse na causa e que vem aparecendo em vários processos julgados por este Juízo como se fosse agente investigador da polícia judiciária do Estado – na verdade trata-se de um policial militar aposentado -, como aconteceu nos processos deflagrados contra Rastafari e Miro do Porco, já julgados por este Vara, onde os réus afirmaram que vinham sendo perseguidos pelo Sargento Camilo. Esses indícios baseados, principalmente, nos depoimentos dessas duas testemunhas, como se observa, são de motivação – Maria Luzia teria em tese motivos para matar a vítima -, todavia, inexistem indícios sérios e objetivos de ajuste, contratação, intermediação, pagamento e outras circunstâncias que pudessem estabelecer o liame entre Maria Luzia Martins Ferraz Brito e os supostos autores materiais do crime. A bem da verdade, como argumentou o ilustre defensor dos réus, o liame que supostamente vincularia os autores materiais à denunciada Maria Luzia foi destruído com a impronúncia dos denunciados Marinalva Costa de Souza e Aderval de Jesus Moura, supostos intermediários entre a autora intelectual e o autor material. Na verdade, não se sabe com segurança quem foi o autor material e inexiste qualquer fato que ligue Maria Luzia ao suposto autor material. Os indícios em relação à denunciada permanecerem no campo da subjetividade, possibilidade, propiciada pelo princípio “In dubio pro societate” – pois a principal suspeita recaia sobre a mulher que teria interesse em matar seu ex-marido por vingança, ódio ou ciúme. Indaga-se: mas será que essa probabilidade seria suficiente como indício para encaminhar a denunciada Maria Luzia para o Tribunal do Júri? Hoje, após debruçar-me sobre a questão e proceder uma nova leitura da pronúncia à luz dos princípios constitucionais, mormente o princípio da presunção da inocência insculpido no art. 5º, LVII da CF, entendo que os indícios constante dos autos não são suficientes para pronunciar Maria Luzia. Com efeito, vê-se que a prova coligida nos autos inquisitoriais é estéril, dúbia e se me afigura insuficiente para formar um juízo razoável da existência de indícios sérios de autoria intelectual em relação à denunciada Maria Luzia. As dúvidas sobre a participação da denunciada Maria Luzia neste fato delituoso são enormes, pois as provas colhidas são nebulosas, vagas, inconcludentes, ou seja, insuficientes para apontar categoricamente a existência de indícios sérios. O magistrado do Tribunal do Júri da Campinas, José Henrique Rodrigues Torres(Torres, José Henrique Rodrigues. Quesitação: a importância da narrativa do fato na imputação inicial, na pronúncia, no libelo e nos quesitos. In: TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do Júri:Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: p. 211-257, 1999) é mais contundente e explicita:

“Para prolatar a pronúncia, embora a decisão não seja de mérito, mas sim de exame da viabilidade da acusação, deve o juiz aferir a suficiência das provas e indícios...O juiz não pode afirmar que tem dúvidas, mas que, mesmo assim, pronuncia o réu porque deve prevalecer nesse momento o interesse da sociedade. Ledo engano. A sociedade não tem nenhum interesse em julgar alguém sem que estejam plenamente assegurados todos os seus direitos legais e constitucionais. O interesse da sociedade, que o juiz também deve observar, está na prevalência dos dogmas constitucionais no cumprimento da lei, especialmente no que diz respeito às exigências do art. 408 do Código de Processo Penal, que, repito, somente admite a pronúncia quando houver convencimento pleno do juiz a respeito da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor....O critério para a avaliação das provas não pode ser tão subjetivo a ponto de se permitir a prevalência da dúvida. Ter dúvidas é não estar convencido de nada. E isso é inadmissível para a segurança do exercício da função jurisdicional no estado de direito democrático. O critério que deve prevalecer é, exclusivamente, o da suficiência ou não do conjunto probatório...Não se pode invocar a dúvida para embasar um julgamento, olvidando-se de que um dogma constitucional existe fundamentação para todas as decisões judiciais”.

O jurista Mirabette, em sua conhecida obra “Código de Processo Penal Interpretado – São Paulo: 5ª ed., Atlas, 1997” preleciona categoricamente:

“Embora para a pronúncia baste a suspeita jurídica derivada de um concurso de indícios, devem estes ser idôneos, convincentes e não vagos, duvidosos, de modo que a impronúncia se impõe quando de modo algum possibilitariam o acolhimento da acusação pelo júri”.

Nesse mesmo sentido os Tribunais Pátrios vêm palmilhando, senão vejamos:

“ Não pode ser mantida a pronúncia se completamente estéril a prova da autoria do delito, a qual de modo algum ensejaria o acolhimento da acusação pelo Júri( RT 558/313)

“Para a pronúncia não são suficientes indícios duvidosos, vagos ou incertos sem conexão com o fato e sua autoria ( RT 534/416).

O depoimento de Arlindo Camilo de Souza o desqualifica como testemunha, pois além de amigo íntimo da vítima passou a investigar o fato delituoso, demonstrando potencial interesse na causa, conforme se observa pelo seguinte depoimento:

“ .. que o depoente depois de algumas investigações chegou a conclusão que D. Luzia estava por detrás de tudo e que os telefonemas estavam partindo da própria casa da vítima; que contou esse fato a vítima...”(grifo nosso)

Ora, o Sr. Camilo é testemunha ou investigador? Quem mais além dele, Francisco e a vítima sabiam que as ligações partiam da casa de D. Luzia? Existe uma outra prova idônea comprovando essa alegação? A testemunha José Vieira de Souza infirma essa assertiva em Juízo e inexiste comprovação da procedência dessas ligações.

Na verdade, o inquérito é de uma pobreza franciscana no que se refere a colheita de provas suficientes para indicar os autores deste crime hediondo, fazendo brotar dúvidas e suspeitas a respeito de eventual participação de uma mulher traída, cujos indícios se prende à sua possível motivação para cometer o delito contra seu ex-marido – por causa do ciúme ou vingança – com base em depoimentos de Arlindo Camilo e Francisco Brasília, amigos íntimos da vítima, sendo que o primeiro além de amigo íntimo, era investigador do caso. Ora, esse quadro probatório não é suficiente para encaminhar a ré para o tribunal do júri, principalmente, quando se sabe que os jurados para condenar ou absolver não precisam fundamentar suas decisões, já que aí prepondera o princípio da motivação íntima de suas decisões.

O eminente causídico Bel. Carlos Burgos ilustra à sua linha argumentativa com lições do mestre Frederico Marques e do Jurista João Mendes, para salientar que a simples possibilidade de autoria não deve ser confundida com indício suficiente de autoria. Evidentemente que o rancor de uma mulher traída é uma motivação plausível para o cometimento de um crime, mas desde que conjugados com elementos objetivos, idôneos, que sejam capazes de erigir um Juízo razoável de suspeita capaz de viabilizar uma acusação perante o Tribunal do Júri.

A prova contra o Denunciado João Batista também não é concludente porquanto a testemunha Edvaldo Ramos da Silva afirmou apenas na fase inquisitorial que o referido denunciado tinha sido visto numa Brasília de cor bege , antes do fato, ao lado de outras pessoas que não chegaram a ser reconhecidas, mas que no momento em que ocorreu o fato não se encontrava na Brasília. A indagação que se faz é a seguinte: o veículo foi realmente identificado? Será que era o mesmo veículo? Qual a placa do veículo? De que forma João Batista participou do fato delituoso? Na verdade, a testemunha Edvaldo Ramos da Silva não foi ouvida em Juízo sob o crivo do contraditório, fato que no meu modo de pensar inviabiliza a acusação, pois a prova era meramente oriunda da investigação policial e não foi contraditada na fase judicial, não servindo de lastro isoladamente para sustentar uma decisão de pronúncia .

Desta forma, entendo que o texto da lei não deve conter expressões ou disposições inúteis, e se é dado ao juiz pronunciante a possibilidade de exercer o juízo de retratação através da despronúncia é porque o legislador entendeu que ao magistrado pronunciante deve ser dado a oportunidade de se corrigir eventual “error in judicando” provocado muitas vezes por uma interpretação açodada ou baseada em falsas premissas, o que se deu no caso em comento, em que este magistrado pronunciou os referidos denunciados com base exclusivamente no princípio “ in dubio pro societate”, quando na verdade, após uma análise acurada, restou patenteado que os indícios são insuficientes para encaminhar os réus para o júri popular.

Posto isso, com fundamento no Parágrafo Único do art. 589 do CPP, DESPRONUNCIO os denunciados MARIA LUZIA MARTINS FERRAZ e JOÃO BATISTA FERRAZ BRITO, todos devidamente qualificados nos autos, em face da insuficiência de indícios de autoria para sustentar a pronúncia prolatada por este Juízo, mantendo-se no mais a impronúncia dos denunciados ADERVAL DE JESUS MOURA E MARINALVA COSTA DE SOUZA pelos seus próprios fundamentos.

P.R.I.

Itabuna-BA, 29 de outubro de 2002

BEL. MARCOS ANTONIO SANTOS BANDEIRA
JUIZ DE DIREITO

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