sábado, 20 de novembro de 2010

A DANÇA DOS JOGOS E DOS VALORES

A DANÇA DOS JOGOS E DOS VALORES





A vida sempre nos ensinou a relação que existe entre o sujeito e o objeto desejado. Esta relação faz brotar o interesse, que pode ser intenso ou não, dependendo do sentimento ou da paixão despertada pelo objeto buscado. Segundo alguns estudiosos, a ética não pode ser confundida com a moral, pois a primeira é uma parte da filosofia que tem a função de estabelecer concepções acerca do ser humano e de seu destino, estatuindo valores e princípios que orientam pessoas e sociedades, enquanto a moral é prática concreta das pessoas que se expressam por costumes, hábitos e valores culturalmente consagrados na e pela sociedade. Não podemos conceber a ética e a moral sem liberdade, ação e valores, pois só a partir do momento em que o ser humano tem a liberdade de consultar os seus valores, e age livremente, desta ou daquela forma, é que podemos avaliar se a sua conduta está ou não em conformidade com os valores estabelecidos pela ética.

A existência humana está apoiada na razão (logos) e na paixão ou sentimento (pathos). Segundo Ricardo Cunha, “a ética, para ganhar um mínimo de consenso, deve brotar da base última da existência humana. Esta não reside na razão, como sempre pretendeu o Ocidente. Na raiz de tudo não está a razão (logos), mas a paixão (pathos). Pela paixão captamos o valor das coisas. E o valor é o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos do que são e os faz apetecíveis. Só quando nos apaixonamos vivemos valores. E é por valores que nos movemos e somos”.

O assunto é por demais abrangente e instigante para comportar neste artigo, por essa razão me limitarei a falar de valores, recortando três aspectos do nosso cotidiano para demonstrar a incoerência de determinados valores.

É muito comum percebermos numerosas filas de pessoas nas casas lotéricas, principalmente quando o premio da mega sena está acumulado. São milhares de pessoas, boa parte delas, pessoas pobres, simples e que depositam esperança em ganhar aquele prêmio para mudar sua vida. A esperança nasce durante o dia, mas morre inapelavelmente ao anoitecer, com a notícia já desgastada de que não houve nenhum ganhador e que o prêmio foi acumulado, ou, o que é pior, apenas um apostador de São Paulo ganhou a mega-sena sozinho. Na verdade, este jogo de azar, oficializado, foi feito para não ser ganho, ou melhor, para iludir a boa-fé de milhares de pessoas que retiram um “dinheirinho suado” do seu orçamento já minguado para fazer uma “fezinha” e assim ter a oportunidade de transformar sua vida dura. O que se infere é que o governo estimula a própria desigualdade social, o que vai de encontro à Constituição Federal – art. 3º, inc. III -. Ora, a partir do momento em que são de um só ganhador 15 ou 20 milhões de reais, ele sairá da classe D e passará a integrar a classe A, aumentando ainda mais o fosso da desigualdade social, que coloca o Brasil próximo de países como Guiné –Bissal. Todavia, os ganhadores da quina, quadra e terno, que receberão insignificantes reais, permanecerão nas suas originais classes sociais, e pouco ou quase nada conseguirão fazer com os trocados que ganharam. Indaga-se: por que num país tão desigual e cheio de contrastes, o bolo não é melhor dividido? Poderia premiar melhor quem ganhasse a quina ou a quadra, ou mesmo acabar com a sena. Com certeza, um número maior de pessoas, principalmente pobres, poderiam ser beneficiadas. Por que isso não acontece? É uma questão de valor, aliás de “valores pecuniários”. O governo não está muito preocupado em diminuir a desigualdade social ou melhorar a vida das pessoas, mas está preocupado com uma arrecadação cada vez maior. Veja o jogo do bicho, que é uma contravenção à luz do ordenamento jurídico, mas que emprega milhares de pessoas e propicia que um número cada vez maior de pessoas pobres ganhe o prêmio. Ele, o jogo, é proibido, mas, ao mesmo tempo, é permitido, pois está presente em cada esquina da cidade e seus resultados são divulgados por AMs e FMs, permissionárias da administração pública. Qual é o problema do jogo do bicho? Arrecadação. Se for legalizado, e o governo conseguir retirar a sua fatia, ele, além de moral (prática reiterada de hábitos e costumes verificados em determinada sociedade) – que já é – passará a ser legal.

Uma outra situação que mexe com milhares de brasileiros: o futebol. Veja a incoerência dos valores. A equipe que joga em casa e empata terá o mesmo número de pontos da equipe visitante. Ora, os valores são diferentes. A equipe que empata em casa, com o apoio de sua torcida, normalmente experimenta uma sensação de frustração por não ter obtido a vitória sobre a equipe visitante em seus próprio domínios. Já a equipe que empata fora dos seus domínios, normalmente comemora, pois conseguiu empatar fora de casa. Lógico que os valores deveriam ser diferentes. A equipe que empata em casa deveria obter 1 ponto, e a equipe que empata fora, 2 pontos. Da mesma forma, a equipe que vence em casa obteria 3 pontos e a equipe que vence fora de casa deveria merecer 4 pontos. Creio que, assim, os valores seriam mais coerentes nas partidas de futebol e se estabeleceria uma maior igualdade entre as equipes concorrentes.

Finalmente, na área criminal experimentamos algumas reminiscências do modelo autoritário de Estado e do caráter patrimonialista das leis, que procuravam emprestar mais valor ao “ter” do que ao “ser”. O princípio da dignidade da pessoa, que, na visão kantiana, coloca o homem como um fim em sim mesmo, ainda não havia despertado o interesse dos legisladores brasileiros. Veja a incoerência do nosso Código Penal: uma pessoa pobre que furta uma lata de leite em pó no supermercado para alimentar seu filho, pode ser presa em flagrante e ser condenada a uma pena privativa de liberdade de até 4 anos de prisão, enquanto o sujeito que ofende a sua honra e dignidade, cometendo o crime de injúria, por exemplo, não será preso em flagrante e nem será condenado a pena privativa de liberdade, pois poderá ser agraciado com uma pena alternativa, como, por exemplo, ofertar uma cesta básica a uma pessoa carente.

Precisamos encontrar a justa medida dos valores, estabelecendo um maior diálogo entre o logos e o pathos, no sentido de reorientar melhor os rumos de nossa caminhada terrena, voltados para o cultivo dos valores da igualdade, justiça, solidariedade e da própria dignidade da pessoa humana. Só assim poderemos pensar numa sociedade mais justa e igualitária.



Autor: MARCOS BANDEIRA

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