terça-feira, 14 de setembro de 2010

DOUTOR, EU NÃO QUERO SER NOIA

DOUTOR, EU NÃO QUERO SER NOIA





O recrudescimento da violência urbana nas cidades de médio e grande porte é uma realidade inescondível. O fenômeno da epidemia do crack entre a população infanto-juvenil pode servir de divisor de águas para determinar cronologicamente a violência, antes e depois do advento do crack.
O crack, segundo o médico Dráuzio Varela, nasceu no interior dos cárceres paulistas há cerca de vinte anos, e foi o PCC, ironicamente, que conseguiu acabar com a droga no interior dos cárceres porque subvertia a hierarquia da famosa organização criminosa. Ocorre, entretanto, que a droga foi para as ruas e aí se disseminou como se fosse uma erva daninha. Na verdade, trata-se de uma droga que veio para destruir a juventude deste país.
Ela é produzida pelo refugo da cocaína, precisamente pela mistura da merla com o bicarbonato de sódio. No momento em que é levada ao forno, ela provoca estalidos, daí talvez o nome “crack”. A potencialidade lesiva do crack é extraordinária e o seu consumo atrai jovens de todas as idades, principalmente, pelo prazer exacerbado que causa nos primeiros tragos e pelo baixo preço de comercialização, levando o jovem ao consumo compulsivo e reiterado, e ao vício já nos primeiros contatos com a droga. Segundo especialista, ele ataca diretamente o sistema nervoso central, pois o efeito é quase que imediato e dura não mais do que 10 minutos, deixando o indivíduo num clima de elevada sensação de euforia, para depois experimentar a sensação de depressão, e em face dessa particularidade, sentir a necessidade de consumir cada vez mais. O indivíduo, com efeito, fica agressivo e irrequieto. O traficante, por sua vez, se utiliza desses jovens, oriundos de famílias pobres, para o seu comércio. O jovem começa, inicialmente, a vender a droga, depois passa também a ser usuário, quando então não repassa para o traficante o valor correspondente ao produto da venda. Nesse momento, é acionado o direito penal não-escrito: O julgamento é rápido e o aviãozinho é eliminado, impiedosamente, a mando do traficante.
Neste cenário, diariamente, são ceifadas muitas vidas de jovens em todo o Brasil. Em Itabuna, do início do ano até a presente data, já morreram cerca de 120 jovens, na faixa de 15 a 21 anos, a maioria do sexo masculino, pobre, de baixa escolaridade, de cor negra e com envolvimento com drogas, principalmente crack. Vale dizer que, na cidade de Itabuna, morre um jovem nessa faixa etária a cada dois ou três dias, em média, caracterizando-se uma verdadeira epidemia.
Alguns setores da cidade, possivelmente estimulados pela mídia policialesca, que fomenta ainda mais o clima de insegurança na cidade, acreditam que a alternativa é a prisão, tanto para os traficantes quanto para os usuários. Outros entendem que como se trata de “farrapos humanos”, a solução seria esperar o tempo passar e aguardar o extermínio desses jovens desvalidos e envolvidos com o crack. Não resta dúvida de que a medida adequada para o traficante será a prisão, mas nada adianta ele ser julgado e trancafiado numa prisão, se ele continua a dar as ordens de dentro da prisão para seus comandados através do celular.
Em nossa atividade judicante, tivemos a oportunidade de interrogar um jovem traficante de 17 anos, que disse que recebe ordens de um determinado indivíduo que está preso no Presídio de Itabuna que, por sua vez, recebe ordens do chefão que está trancafiado no Presídio Lemos de Brito, em Salvador. O jovem traficante disse, com todas as letras, que recebe ordens para derrubar alguém ou passar “mercadoria”, e que o aluguel de sua casa é pago com o dinheiro do tráfico. Este sujeito, evidentemente, deve ser internado e afastado do convívio social, em face de sua manifesta nocividade, mas indaga-se: o que fazer com o viciado, ou seja, com o noia? “Noia” é uma palavra utilizada no mundo do crime para se referir ao craqueiro, ao viciado em crack. Certamente, a repressão, a prisão pela prisão, não é a melhor solução. Ele precisa de tratamento e o Estado não sabe ainda lidar com ele.
Em outra oportunidade, interrogamos um jovem de apenas 12 anos de idade, senhor de uma inteligência invejável. Com pouco mais de 11 anos já havia puxado um carro em São Paulo, e agora estava ali, na frente do juiz, do promotor e de seu advogado, para ser interrogado sobre a receptação de um celular. Ele estava sendo acusado de ter comprado um celular roubado por R$ 10,00 (dez reais) de uma pessoa. Passamos a ouvi-lo: “Doutor, eu não comprei por R$ 10,00, mas sim por R$ 20,00. Eu dei dez e depois daria o restante; eu só comprei o celular porque eu sabia que ele era noia”. Indagamos: o que é noia? Ele respondeu: “Noia é o viciado em crack. Ele fica a maior parte do tempo olhando para o chão. Doutor, o noia, para sustentar o vício, começa a vender tudo que tem em casa, depois começa a pegar as coisas dos outros na rua e até mata as pessoas para conseguir a grana para comprar o crack; eu não sabia que o celular era roubado. Doutor, eu já fumei cocaína, e atualmente só uso maconha socialmente, Deus me livre, Doutor, eu não quero nunca ser noia”. Encerrado o interrogatório, ficamos todos – juiz, promotor, advogados e serventuários – estarrecidos e perplexos. O que fazer, de que forma o Estado deve dar a sua resposta a esse fenômeno que está ceifando a vida de nossos jovens?
Evidentemente que a resposta não é tão simples como pode parecer a alguns, pois o problema do consumo da droga entre os jovens é grave e multifacetário. Na verdade, é preciso oferecer aos jovens que estão mergulhados nesse “umbral” uma nova perspectiva de vida. Em alguns casos é crucial que o jovem seja retirado imediatamente do seu habitat, senão será mais uma vítima a ser executada pelo traficante. Na maioria dos casos, iremos nos deparar com jovens viciados – noias – que precisam ser tratados por uma equipe multidisciplinar, para que possam, talvez, se afastar do vício do crack. O adolescente traficante deveria receber um tratamento mais rigoroso da lei, como a ampliação do prazo do internamento e a separação dos demais adolescentes, entre outras medidas.
Essas são apenas algumas alternativas, mas creio que o Estado não pode mais permanecer inerte diante dessa epidemia que destrói diariamente a vida de nossos jovens. É chegada a hora de o Estado criar estratégias e, de forma racional, enfrentar a problemática, elaborando uma política de Estado para combater a epidemia do crack. Não podemos mais fechar os olhos e tratar os nossos jovens como verdadeiros farrapos humanos. Não podemos mais perder tantas vidas! Não podemos mais ignorar a existência dos noias!



Marcos Bandeira – juiz da infância e juventude de Itabuna e professor de Direito da UESC.





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