segunda-feira, 28 de julho de 2014

ARIANO SUASSUNA: uma lição de vida

ARIANO SUASSUNA: uma lição de vida




            A vida fica mais suave e bela na prosa inimitável do agora saudoso Ariano Suassuna. Nascido em João Pessoa, na Paraíba, em 16 de junho de 1927, perdeu o pai nas lutas políticas que antecederam a revolução de trinta, ainda quando contava com apenas 3 anos de idade. Esse fato obrigou a família Suassuna a mudar-se para Recife em 1942. Na capital pernambucana, Ariano bacharelou-se em Direito e seguiu seu destino encontrando-se com a sua inescondível vocação: a literatura.
            Na verdade, passei a conhecer Ariano Suassuna através de sua obra intitulada “O Auto da Compadecida” que virou filme e encantou a todos, crianças, jovens e adultos. A trama envolvendo João Grilo e Chicó, o coronel Antonio Moraes, o cangaceiro Severino, o padre João e o bispo, é de uma riqueza espetacular, pela qual o autor, como exímio contador de causos, mostra naturalmente o contexto do interior nordestino brasileiro, desvelando hábitos e costumes do homem do interior, como a arrogância e prepotência do coronel Antonio Moraes que mandava na cidadezinha através do poder do dinheiro e da intimidação, a questão da fé, do medo e da ambição humana, a fragilidade do padre João e do bispo e as astúcias e as mentiras de João Grilo e Chicó,  sempre acompanhado do ingrediente do humor refinado e inteligente, levando a todos que assistiram ao prazer de rir desmedidamente. O enterro do cachorro encomendado pelo padre em latim mostra o poder do dinheiro e a vulnerabilidade do pregador. Depois li o seu romance intitulado “A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-vai”, que foi contemplado com o Prêmio Nacional de ficção do Instituto Nacional do Livro em 1972. A sua biografia é muito longa e muitos já discorreram sobre a sua longa produção e os cargos públicos que ocupou durante sua vida.
            Na verdade, a minha admiração por Ariano Suassuna aumentou extraordinariamente quando o conheci pessoalmente no XIX Congresso Nacional de Magistrados patrocinado pela Associação dos Magistrados Brasileiros, realizado em Curitiba em novembro de 2006. Ele foi convidado para ministrar uma aula-espetáculo para cerca de 1.500 magistrados. Uma plateia seleta e falante o aguardava ansiosamente. Assim que ele apareceu, meio envergado, andar lento, deixando à mostra o pesado fardo dos longos anos vividos, foi aplaudido efusivamente pelos presentes. Sentou-se lentamente numa cadeira no meio do palco com uma serenidade própria dos sábios. Silêncio no auditório. Na minha mente, todavia, latejava uma pergunta conspiratória: o que esse senhor vai falar para essa plateia tão exigente? Será que dará conta do recado?       Assim que ele começou a falar com aquele seu jeito tão peculiar de ser como verdadeiro contador de estória e autor de frases reflexivas, passou a reinar no ambiente um silêncio sepulcral. Todos, indistintamente, não queriam perder uma frase sequer proferida por aquele senhor, que sozinho no meio do palco, utilizava toda a riqueza da linguagem coloquial, seja através de gestos, inflexões ou expressões faciais, como seu grande instrumento, permeada de orações sábias e estórias marcadas com humor, demonstrando assim uma retórica simplesmente envolvente, dominando assim, em pouco tempo, todas as atenções.
           O espetáculo durou cerca de duas horas, mas a sensação é que tudo foi muito rápido tal a suavidade proporcionada por aquele momento mágico que arrebatava a todos os espectadores, transportando-os de um estado emocional para outro, prendendo assim, a atenção de centenas de pessoas, tamanha a magia que brotava de suas palavras e dos seus gestos encantando a todos.
          Era um defensor intransigente da cultura nordestina e detestava o lixo cultural despejado pelos Estados Unidos no Brasil. Avesso e crítico ferrenho da vulgarização e massificação da cultura industrial brasileira, foi fundador do Movimento Armorial, pelo qual pretendia cultivar e valorizar uma cultura erudita baseada em nossas raízes populares nordestinas, em suas variadas expressões, como música, dança, teatro, artes plásticas, dentre outras. Concretizou parte do seu projeto quando exerceu o cargo de Secretário de Cultura do Recife na década de oitenta e parte dos anos noventa.
          Lembro-me de uma estória que ele contou nessa aula: disse que todo menino quando pretende descobrir sua vocação deve observar bem os sinais: se o menino tem habilidade para fazer as quatro operações matemáticas será certamente um bom engenheiro, entretanto, se ele se interessar em matar calangos ou lagartixa, para depois abrir a barriga com uma faca e ato contínuo costurá-la com um pedaço de fio, certamente será um bom médico. Todavia, quando o menino não souber fazer absolutamente nada, acaba fazendo vestibular para Direito, podendo ser um advogado. E acrescentou: “como eu não sabia fazer absolutamente nada, resolvi fazer Direito, mas não fui muito longe”.
          Assim que se formou em Direito, foi encaminhado para um grande escritório de advocacia em Recife. O advogado, chefe do Escritório, assim que o recebeu encaminhou-lhe uma ação de execução para que ingressasse em Juízo cobrando o valor de uma nota promissória. Ariano, assim que recebeu a petição já revisada pelo advogado-chefe, juntou a procuração e a nota promissória, encaminhou-se ao Fórum e protocolou a petição de execução. O Executado foi citado e ofereceu bens à penhora para garantir a execução, interpondo em seguida os embargos e argumentando que não havia título válido a ser executado, pois no documento acostado aos autos pelo advogado da credora (Ariano) não constava a assinatura do seu cliente. O advogado do devedor-executado, matreiro, tarimbado, acostumado às chicanas judiciais, simplesmente passou uma régua na nota promissória que estava nos autos do processo e rasgou a parte debaixo do título, expurgando a assinatura do seu cliente. A família do credor, assustada, procurou o advogado chefe para saber o que aconteceu. O advogado-chefe tentou tranquilizar a todos, informando que normalmente os advogados guardavam uma cópia fotostática do título para evitar qualquer tramóia da parte ex-adversa. Todavia, Ariano não havia guardado cópia alguma e indagado sobre o motivo pelo qual ele não havia tirado uma cópia, respondeu de chofre: eu sou advogado, não posso pensar como ladrão! Depois desse episódio Ariano, visivelmente decepcionado, abandonou definitivamente a advocacia e partiu de corpo e alma para a literatura, onde verdadeiramente encontrou a sua vocação e sua missão aqui na terra. E assim, ele mesmo se definiu: “Arte para mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte para mim é missão, vocação e festa”.
          Ariano, esse ser humano extraordinário, partiu, deixando o Brasil mais triste neste julho de 2014, mas deixou para sempre o seu legado inesgotável para esta e para as futuras gerações.

Marcos Bandeira, Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude de Itabuna e ex-presidente da Academia de Letras de Itabuna.     
           


domingo, 27 de julho de 2014

ACESSO AOS TRIBUNAIS E ACESSO À JUSTIÇA

Acesso aos Tribunais e acesso à Justiça: Os direitos humanos dos adolescentes a que se atribui a prática de atos infracionais.





João Batista Costa Saraiva[1]




Resumo :

O presente artigo é um convite a adentrarmos no mundo do Direito da Infância e da Juventude para compreender as distinções conceituais e doutrinárias e os ritos processuais exigidos para a aplicação dos direitos aos adolescentes a que se atribui a prática de atos infracionais, para que se efetive a real justiça e os direitos humanos.



Palavras chave: Direitos humanos dos adolescentes. Direito Penal Juvenil. Garantias Constitucionais e ato infracional.


1. Sujeito de direito: o acesso à justiça como direito declarado.

Para que um sistema político se perceba efetivamente democrático faz-se necessário que assegurar direitos seja um anseio efetivo e sincero. Em um tal contexto, o acesso à justiça faz-se um requisito fundamental. Uma condição básica de exercício de direitos humanos.
Em consequência não é bastante que a ordem jurídica proclame direitos, se esta mesma ordem jurídica não assegurar os mecanismos que os garanta e lhes empreste efetividade.
Assim, a primeira consideração a ser feita, é que acesso à Justiça é direito fundamental, expresso no artigo 5º, Inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, a toda cidadania: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Se a cada dia se constata a reflexão de Bobbio de que os direitos não surgem quando necessários e sim quando possíveis[2], em matéria de Direitos da Criança, em particular na temática relativa ao adolescente a que se atribua a prática de um ato infracional, a assertiva do grande mestre italiano se confirma sem qualquer dúvida.
O Estatuto da Criança e do Adolescente remonta a julho de 1990. A Lei 8.069/90 se faz na realidade na versão brasileira da Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, de novembro de 1989, que consagra, como principal instrumento normativo, a Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral dos Direitos da Criança, expressa em diversos outros documentos[3]. 
O Brasil antecipou-se à própria Convenção dos Direitos da Criança, quando promulga a Constituição de 1988, que, em diversos dispositivos, mas especialmente em seus arts. 227 e 228, contempla a síntese dessa Doutrina, provendo a criança à condição de sujeito de direitos.
Ali, em cinco de outubro de 1988, foi derrogado, por não recepcionado pela nova ordem constitucional, o Código de Menores de 1979, e sepultada, do ponto de vista normativo, a velha Doutrina da Situação Irregular na ordem jurídica interna.
Nascia o novo direito, consagrado em seguida no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, desconstruindo a idéia de “menor como objeto do processo” e introduzindo uma mudança paradigmática, “criança e adolescente enquanto sujeito de direito, sujeito do processo, protagonista, cidadão[4]”.

2. Os entraves ao exercício do direito. Princípio do Superior Interesse da Criança e a mitigação da natureza sancionatória da medida socioeducativa.

A condição de sujeito de direitos expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente decorrentemente da Norma Constitucional, pessoa em peculiar condição de desenvolvimento (e não incapaz, como resultava da antiga concepção), passados tantos anos de vigência do Estatuto, ainda carece de uma plena efetivação, em especial no campo da chamada “delinqüência juvenil”.
Em nome de uma suposta autonomia do Direito da Criança (para alguns uma espécie de “gueto” jurídico, herdado do Direito de Menores) a criança, e especialmente o adolescente a que se atribua a prática de um ato infracional, ainda têm dificuldades de uma plena efetivação de seus direitos.
Faz-se operante, com toda sua histórica carga de discricionariedade e arbítrio, o chamado Princípio do Superior Interesse da Criança. Esse foi a pedra angular sobre a qual os defensores da Doutrina da Situação Irregular operacionalizavam o Código de Menores e seus poderes quase ilimitados.
O legislador brasileiro, ao conceber o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, teve o cuidado de não o reproduzir (inobstante referido na própria Convenção). Entretanto, em nome do amor à infância, o princípio do superior interesse sempre foi muito presente no inconsciente (ou consciente) do operador do sistema juvenil, constituindo-se, na forma de sua operacionalização discricionária, em um dos múltiplos fatores de dificuldade de plena efetivação dos primados da doutrina da proteção integral, por conta de seu aparente caráter indeterminado, e por isso discricionário.
A recente reforma introduzida no Estatuto da Criança e do Adolescente por conta da chamada “Lei de Adoção”, Lei 12.010, ressuscitou este Princípio na ordem jurídica interna[5].
Embora resulte evidente do contexto a necessidade de limitação de tal princípio aos direitos afirmados, por conta da manutenção de conceitos como incapacidade do menor em detrimento ao de sujeito de direito, pessoa em peculiar condição de desenvolvimento, o chamado princípio do superior interesse da criança acaba sendo operado no atual sistema como um verdadeiro Cavalo de Tróia[6] da doutrina tutelar. Historicamente tem servido muito mais para fundamentar decisões à margem dos direitos expressamente reconhecidos pela Convenção, adotados por adultos que sabem o que é o melhor para a criança, desprezando muitas vezes a própria vontade do principal interessado[7].
Nessa linha de raciocínio há Tribunais que ainda determinam a internação de adolescentes em conflito com a Lei, em circunstâncias em que a um adulto não se imporia privação de liberdade, sob o pífio argumento de que, não sendo pena, isso lhe será um bem. Em nome do superior interesse, ignoram-se um conjunto de garantias instituídas[8]. Em nome do “amor”, atropela-se a Justiça.
Daí a importância da advertência de especialistas de que se faz insatisfatória a estrita visão do acesso à Justiça como acesso aos tribunais. “Se este é o coroamento do Estado de Direito, é também – e simultaneamente – um direito meramente formal, tantos são os obstáculos antepostos ao acesso da pessoa à ordem jurídica justa”.
Cumpre lembrar aqui a triste experiência do Poder Judiciário alemão durante o regime de Hitler. Quando o nazismo se instalou na Alemanha, a partir de 1933, especialmente dentre as confissões religiosas, aquela que desde o primeiro dia julgou a ideologia nazista incompatível com suas convicções foram os “Testemunhas de Jeová”. Afirmaram expressamente que a saudação heil hitler era contrária à doutrina que professavam. Isso lhes rendeu intensa perseguição, já nos primeiros tempos do regime hitlerista.
Resulta disso, entre outros registros, uma sentença de um Tribunal de Família de Hamburgo, em nome da “boa educação”, que retirou uma criança da guarda de seus pais por estes serem Testemunhas de Jeová[9].
A questão do acesso à Justiça e ao Direito, e a importância de superação dos entraves que emperram o exercício destes direitos, passa pela superação da chamada crise de interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente (onde se inclui o sentido do Princípio do Superior Interesse), de que há tanto tempo nos advertia Emílio Garcia Mendez[10].
A importância de compreender o modelo de responsabilização previsto no Estatuto e a natureza sancionatória da medida socioeducativa; e por consequência, penalizante enquanto reação do Estado ao ato infracional, uma vez que se trata de uma imposição ao sancionado de uma limitação, total ou parcial de sua liberdade, independentemente de sua vontade[11].
Tanto o Supremo Tribunal Federal, quanto o Superior Tribunal de Justiça consolidaram ao longo desses anos de vigência da Lei 8.069 o entendimento sobre o caráter aflitivo das Medidas Socioeducativas, a par da finalidade pedagógica buscada por esta sanção.
Nessa dimensão faz-se antológica, em especial por permanecer atual, decisão lançada pelo então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, em Hábeas Corpus originário do Estado do Paraná.
No caso em questão, Ministério Público e Defesa convergiam na aplicação ao adolescente da medida socioeducativa de internação, a confirmar a tese de que o acesso aos Tribunais nem sempre representa acesso à Justiça.  Tratava-se, pois, de um caso de flagrante ausência de defesa, na medida em que o próprio defensor argumentava ser a internação uma solução para o “bem” do adolescente.
Diante de tal circunstância o Ministro Relator referiu tratar-se de uma revivência excêntrica de infeliz pronunciamento do Carnelutti, quando supôs o processo penal como jurisdição voluntária, na medida em que não existiria lide, eis que a pena seria um bem para o condenado...
Do corpo do Acórdão, extrai-se: “Em fase venturosamente passageira de sua fascinante obra jurídica, Carnelutti nega a existência da lide penal – salvo no tocante à decisão sobre a ilicitude civil do fato delituoso para fins de reparação, que, no sistema italiano, é objeto do mesmo processo – no âmbito da jurisdição voluntária, não, no da contenciosa”.
Referindo a obra do imortal Mestre italiano, que, nesse particular, felizmente se retratou, destaca o eminente Ministro Sepúlveda em seu voto, que, em sua obra traduzida ao espanhol, “Leciones sobre el Proceso Penal” (ESEA, Buenos Aires, 1950, p. 156), Carnelutti chega referir que, no processo penal a finalidade buscada é o bem do acusado e não o mal e que tão pouco existiria conflito de interesse entre o imputado e o Ministério Público, em uma relação similar a que se estabeleceria entre o enfermo e o médico que lhe pretende ministrar a cura[12].
Se no processo penal tal engodo já se viu superado, percebe-se que, em se tratando de responsabilidade juvenil, nos dias que correm, ainda há setores que pretendem reviver aquela tese superada, sob outro rótulo.
Na evolução da jurisprudência do egrégio Superior Tribunal de Justiça, em especial por súmulas editadas ao longo desse período, o óbvio foi definitivamente retirado do anonimato (como diria o grande Lênio Streck), afirmando o caráter aflitivo da medida socioeducativa, nessa medida, penal.
            Assim, permanecem atuais as preocupações lançadas em trabalho anterior[13], tratando das garantias processuais expressas na normativa, as quais poderão transformar-se me meras peças de retórica se não forem operacionalizadas com a devida dimensão de instrumentos de cidadania.

3. Conclusão:

Acesso ao Tribunal e acesso à Justiça. O discurso neomenorista no Brasil. A Instrumentalização de conceitos da Doutrina da Situação Irregular utilizando-se do Estatuto do Adolescente.

Está presente no mundo jurídico brasileiro o debate sobre o próprio sistema de justiça para crianças e adolescentes, com questionamento da natureza sancionatória e nessa dimensão retributiva, da medida socioeducativa. Sob o argumento da autonomia do Direito da Criança, insurgem-se contra a idéia de um Direito Penal Juvenil. Salvo exceções, a maioria destas manifestações tem um nítido caráter corporativo, visando ao suposto asseguramento de espaços de poder, discricionário e, na maioria das vezes autoritário, invocando o princípio do “superior interesse da criança” para justificar atropelos às garantias processuais e constitucionais.
O custo ao Brasil de seu pioneirismo na adoção em sua legislação dos termos da Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança (O Estatuto é de Outubro de 1990) está estampado em algumas concessões no texto de sua lei à Doutrina Tutelar. Se não são concessões expressas, resultam estas de omissões do texto ou de expressões ambíguas, aptas a permitir interpretações indevidas. Bem se diz que se deve cerrar as portas e não deixar frestas, pois por estas podem passar ventos indesejáveis.
No caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), a ausência de regras sobre o processo de execução das medidas socioeducativas; a possibilidade de concerto de remissão perante o Ministério Público sem a presença de Defensor na fase anterior a instauração do processo de apuração da responsabilidade penal juvenil perante o Poder Judiciário; a ambiguidade na definição dos tipos penais que autorizam a privação de liberdade, e outros deslizes da legislação que comprometem o rigor garantista; resultam em “frestas” no sistema por onde se introduz o germe da doutrina tutelar.
A inconstitucionalidade dessas omissões legislativas ou dos dispositivos não garantistas tem sido afirmada pelos Tribunais que analisam o tema sob os fundamentos do Direito Penal, acatando, na maioria das vezes, recursos originários das Defensorias Públicas instaladas nos Estados. É o caso do reconhecimento da prescrição da pretensão acusatória ou da pretensão executória da medida socioeducativa por parte do Estado, não afirmada no Estatuto, mas reconhecida analogicamente em face das regras do Código Penal.
O Superior Tribunal de Justiça, pasmem todos, necessitou lançar uma Súmula afirmando que a tão só confissão do adolescente não é suficiente para imposição da sanção socioeducativa.
A dificuldade para o reconhecimento da implantação, pela Doutrina da Proteção Integral, de um conceito de Direito Penal Juvenil, com sanções e sua respectiva carga retributiva, resulta de um preconceito de natureza hermenêutica, em face a uma cultura menorista presente e atuante em toda América Latina, do que já nos adverte Amaral e Silva em suas lições[14].
A conduta dos que não admitem a ideia de um Direito Penal Juvenil, implica no abandono de conceitos introduzidos pelas normas do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (especialmente no que respeita à responsabilidade com sancionamento de medida socioeducativas e de condição de sujeito de direitos ostentada pelo adolescente) e se faz responsável no Brasil pelas dificuldades que se enfrenta, desde 1990, para a efetivação plena do Estatuto da Criança e do Adolescente, desembocando na chamada dupla crise do Estatuto, referida por Emílio Garcia Mendez: uma crise de implementação e outra, em verdade responsável por aquela, uma crise de interpretação.
Trava-se hoje, no Congresso Brasileiro, um debate em torno do  Estatuto, da sempre equivocada tese de redução da idade penal. É possível, em contraposição a essa tese, avançar no aprimoramento do Estatuto, em vista da experiência acumulada nesses anos, e nessa linha se inclui a instituição do SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Os riscos de retrocesso, entretanto, existem. Resultam, principalmente, de ações corporativas de alguns setores do Poder Judiciário e do Ministério Público, e de parcela de representantes de organismos não governamentais, que de alguma forma, como espaço de poder, tem interesse em manter nebulosa essa questão, na medida em que a ausência de regra permite o exercício ilimitado desse poder. Não é sem razão que a maioria absoluta dos agentes das Defensorias Públicas instaladas no Brasil há tempo perceberam esta questão e afirmam os primados do Direito Penal Juvenil expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente.


Referências Bibliografias

5 de junho de 1936, 28 Zebbralblatt fur Jungendrecht und jungendwohlfahrt, 281, in Rigaux, François, A Lei dos Juízes, São Paulo: Martins Fontes, 2000.

AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. O Mito da Inimputabilidade Penal do adolescente. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, v. 5.Florianópolis:AMC, 1998.

BELOFF, Mary. Los Derechos Del niño en el sistema interamerican. Buenos Aires- Arg: Del Puerto Editores, 2005.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8069 de 13/07/1990.

CORTÉS M., Julio. Acerca del principio del interes superior del Niño. IN Infancia y Derechos Humanos: Discurso, Realidad y Perpectivas. Santiago do Chile: Corporación Opción,Setembro, 2001.

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Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral dos Direitos da Criança. In: VOLPI, Mario et al. Adolescentes privados de liberdade : A Normativa Nacional e Internacional & Reflexões acerca da responsabilidade penal – 2 ed. – São Paulo : Cortez, 1998.

FORRESTER,Viviane.JustiçaAdolescente e AtoInfracionalsocioeducação e responsabilização.São PauloILANUD2006.

MENDEZ, Emílio Garcia. Adolescentes e Responsabilidade Penal: um debate latinoamericano. Porto Alegre:AJURIS/ESMP-RS/FESDEP-RS, 2000.

Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude Regras de Beijing. In: VOLPI, Mario et al. Adolescentes privados de liberdade : A Normativa Nacional e Internacional & Reflexões acerca da responsabilidade penal – 2 ed. – São Paulo : Cortez, 1998.

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Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (Resolução 45/113, de abril de 1991). In: VOLPI, Mario et al. Adolescentes privados de liberdade : A Normativa Nacional e Internacional & Reflexões acerca da responsabilidade penal – 2 ed. – São Paulo : Cortez, 1998.

SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei: da indiferença à proteção integral, uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 3ªed., 2009.

SHECAIRASérgio SalomãoSistema de Garantias e o Direito Penal JuvenilSão PauloRT2008.







[1] Advogado, Consultor em Direitos da Criança e do Adolescente, especialista em Direito da Criança e do Adolescente, professor universitário, autor de diversas obras sobre o tema. Foi Juiz de Direito e Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul.

[2] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.


[3] Por Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral dos Direitos da Criança se compreende não apenas o próprio texto da Convenção, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20.11.1989, e promulgada no Brasil através do Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990; como também as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude, conhecidas como Regras de Beijing (de maio de 1984); as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil, conhecidas como Diretrizes de Riad (de dezembro de 1990), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio, Resolução nº 45/110, de 14.12.1990) e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (Resolução 45/113, de abril de 1991).

[4] Poucos autores, com tanta precisão e concisão, discorreram sobre o câmbio paradigmático introduzido pela Convenção dos Direitos da Criança na ordem jurídica interna como Mary Beloff  in “Los Derechos Del niño en el sistema interamericano” Buenos Aires- Arg: Del Puerto Editores, 2005. Estes argumentos os analiso e transcrevo parcialmente em “Adolescente em Conflito com a Lei: da indiferença à proteção integral, uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 3ªed., 2009, pps. 50 - 71.

[5] Nessa reforma, que resultou na introdução de uma série de alterações no Estatuto, foi dada nova redação ao seu art. 100, introduzindo um parágrafo único, com doze incisos, listando princípios norteadores da aplicação das medidas previstas na Lei, tanto de caráter protetivo, quanto socioeducativo.

[6] A expressão foi cunhada por Miguel Cillero e é objeto de uma análise mais aprofundada em outro estudo (Adolescente em Conflito com a Lei, da indiferença à proteção integral, 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 77 e seguintes).

[7]  Sobre o tema: Cortés M., Julio. Acerca del principio del interes superior del Niño. IN Infancia y Derechos Humanos: Discurso, Realidad y Perpectivas. Santiago do Chile: Corporación Opción,Setembro, 2001, pp. 61/79.  

[8] Faz-se interessantíssimo, na linha de negação da natureza penalizante da sanção, o teor de Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que decidiu pela intempestividade de recurso interposto por adolescente intimado de decisão de internação, quando declinou o desejo de recorrer. Destaco aqui o voto vencido do Des. Rui Portanova, invocando jurisprudência do STJ para conhecimento do recurso, afirmando pelas tantas: “ (...) se o representado deve – obrigatoriamente - ser intimado pessoalmente para dizer se quer ou não quer recorrer, quando ele diz que quer recorrer, então, o recurso não está sujeito a qualquer prazo para ser conhecido. Por igual, não pode deixar de ser conhecido por algum defeito formal, como, por exemplo, falta de razões de apelação. No primeiro caso (intempestividade), o recurso pode ser conhecido como “habeas corpus”. No segundo caso (falta de razões) deve ser nomeado outro defensor para apresentar as razões.  Renovada vênia, o que não parece adequado é que o ECA, em sua sistemática recursal, legitime a parte para o recurso e o Judiciário, por um defeito formal, não aprecie as razões do recorrente...” (AC 70031573819).


[9]5 de junho de 1936, 28 Zebbralblatt fur Jungendrecht und jungendwohlfahrt, 281, in Rigaux, François, A Lei dos Juízes, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 112.


[10] Mendez, Emílio Garcia. Adolescentes e Responsabilidade Penal: um debate latinoamericano. Porto Alegre:AJURIS/ESMP-RS/FESDEP-RS, 2000.


[11] Sobre o tema faz-se imprescindível a consulta a obra de Sérgio Salomão Shecaira: Sistema de Garantias e o Direito Penal Juvenil. São Paulo: RT, 2008. Nesse trabalho, de sua cátedra na Faculdade de Direito da USP, está expressa com clareza a idéia de um Direito Penal Juvenil inserto no Estatuto da Criança e do Adolescente, enquanto instrumento de garantia de direitos e de cidadania.


[12]  Defesa e due process: aplicação das garantias ao processo por atos infracionais atribuídos a adolescente.
                1. Nulidade do processo por ato infracional imputado a adolescentes, no qual o defensor dativo aceita a versão de fato a eles mais desfavorável e pugna por que se aplique aos menores medida de internação, a mais grave admitida pelo Estatuto legal pertinente.
                2. As garantias constitucionais da ampla defesa e do devido processo penal - como corretamente disposto no ECA (art. 106- 111) - não podem ser subtraídas ao adolescente acusado de ato infracional, de cuja sentença podem decorrer graves restrições a direitos individuais, básicos, incluída a privação da liberdade.
                3. A escusa do defensor dativo de que a aplicação da medida sócio-educativa mais grave, que pleiteou, seria um benefício para o adolescente que lhe incumbia defender - além do toque de humor sádico que lhe emprestam as condições reais do internamento do menor infrator no Brasil - é revivescência de excêntrica construção de Carnellutti - a do processo penal como de jurisdição voluntária por ser a pena um bem para o criminoso - da qual o mestre teve tempo para retratar-se e que, de qualquer sorte, à luz da Constituição não passa de uma curiosidade. (STF, RE 285571 / PR, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE)


[13] “As garantias Processuais e o Adolescente  a que se atribua a prática de ato infracional”, in Justiça, Adolescente e Ato Infracional: socioeducação e responsabilização,  São Paulo: ILANUD, 2006, p. 175 e sgs.

[14] Amaral e Silva, Antônio Fernando. O Mito da Inimputabilidade Penal do adolescente. Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, v. 5.Florianópolis:AMC, 1998.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

FUTEBOL BRASILEIRO: a necessidade da construção de um novo paradigma

FUTEBOL BRASILEIRO: a necessidade da construção de um novo paradigma.





            Sem dúvida, o futebol brasileiro, cantado em verso e prosa nos quatros cantos do mundo está em crise. A vergonhosa derrota imposta pela seleção alemã por 7 x 1, numa Copa do Mundo disputada em casa, trouxe à mostra o que já suspeitávamos: não mais praticamos o melhor futebol mundial. Perdemos a essência da arte e da competição do nosso futebol. Sua estrutura está obsoleta: apresentamos uma seleção de futebol de baixo nível técnico e tático para disputar uma Copa do Mundo de excelente nível técnico. A escola alemã mostrou para todos como deve se jogar coletiva e estrategicamente e não calha o argumento simplista de que houve um “apagão” diante da vitória consolidada em pouco menos de sete minutos. O Brasil não teve poder de reação e o sistema tático ficou inalterado.
            Não basta os jogadores cantarem com emoção o Hino Nacional à capela, chorar, entregar-se, receber apoio psicológico, etc. sem realizar o essencial: jogar futebol nas quatro linhas, dentro de um esquema tático consistente e que apresente variações para momentos de dificuldades, e isso, infelizmente, não ocorreu. Na verdade, a apatia se repetiu contra a desmotivada Holanda, quando novamente massacrados, perdemos por 3 x 0 . O pior é que a prepotência da comissão técnica não admite que tenha cometido erros.
            Quem acompanha futebol há algum tempo e tem algum discernimento, observa que o futebol brasileiro empobreceu e que há muita coisa por fazer, no sentido de recolocar o Brasil no lugar que ele merece pelas conquistas alcançadas com muita luta e brilhantismo ao longo do tempo. O campeonato brasileiro é um exemplo de venda de ilusões aos brasileiros quando assistimos aos jogos de nossos clubes com jogadores “refugos”, enquanto os grandes talentos são transferidos para a Europa e outros continentes. Temos também como exemplo garotos brasileiros que estão se naturalizando em outros países para jogarem em Copa do Mundo.
            Quando o Santos perdeu de 8 x o  para o Barcelona foi um sintoma de que algo errado estava acontecendo no futebol brasileiro. Não se admite que uma equipe da 1ª. divisão do campeonato brasileiro haja se submetido a tal massacre. O problema é que logo depois, a equipe do Santos começou a disputar as primeiras posições na classificação do campeonato brasileiro, ganhando de outros grandes clubes mas mostrando toda a fragilidade e o baixo nível técnico dos seus jogadores. Assim, fica nítido que o nível do futebol nacional caiu e está em crise. O exemplo atual está na disputa da Libertadores, quando todos os clubes brasileiros que participaram do certame foram eliminados. É verdade, chegamos ao fim do poço!
            Urge agora que calcemos a sandália da humildade e nos recolhamos à nossa condição atual para que possamos refletir e tomar decisões adequadas visando uma profunda e ampla transformação, fortalecendo o futebol de base, valorizando as seleções sub-17, 20 e 21, criando um calendário racional que não desgaste tanto o atleta profissional, enfim, mudando completamente as estruturas arcaicas que sustentam o nosso futebol atualmente. É preciso que se criem mecanismos para evitar que um jovem de 16,17 ou 20 anos saia do país para jogar no futebol europeu sem passar pelos principais clubes brasileiros. Precisamos democratizar o sistema de escolha de dirigente da CBF e criar mecanismos de controle por parte do Estado, fiscalizando, por exemplo, as contas desta instituição. A Confederação Brasileira de Futebol não mais pode ser dirigida da forma como vem sendo, como se fosse uma dinastia, que passa o trono para o genro, depois para o amigo, e que serve de cabide de emprego para “apadrinhados” e mina de ouro para os poderosos de plantão, deixando todo o rastro de corrupção debaixo do tapete. O futebol brasileiro deve ser tratado com seriedade e transparência, pois as consequências são sentidas por todo o nosso povo que é verdadeiramente apaixonado por futebol. Não nos esqueçamos do rosto daquela criança brasileira chorando copiosamente pela derrota fragorosa sofrida pelo Brasil diante dos alemães e do seu sonho acalentado que estava indo embora.
            Segundo os chineses, crise é uma palavra que traduz “perigo” e “ oportunidade”.  Estamos passando por uma situação de perigo, de risco, que pode ainda perdurar por algum tempo. O momento exige reflexão para grandes transformações. A questão não é tão simplista como se tudo pudesse se resolver com a mudança da comissão técnica. É bem verdade que Felipão já está obsoleto, mas a problemática é muito mais complexa: precisamos construir um novo paradigma, que não sei precisamente qual será e ninguém sabe, mas que certamente nos conduzirá a um melhor caminho, ao reencontro com a nossa vocação de melhor futebol do mundo e aproveitarmos a oportunidade da crise que estamos passando para, de forma criativa, reinventarmos a estrutura do futebol brasileiro, criando condições para voltarmos a ter orgulho do nosso futebol e de nossa seleção brasileira e dizermos com todas as letras para aquela criança que o sonho dela não acabou, apenas foi adiado por alguns anos.

Marcos Bandeira
*Juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Itabuna, professor de Direito da UESC, membro da academia de letras de Itabuna e mestrando em Segurança Pública, Justiça e Cidadania da UFBA.



sexta-feira, 11 de julho de 2014

O JUDICIÁRIO DO SÉCULO XXI E O NOVO PAPEL DO JUIZ

O JUDICIÁRIO DO SÉCULO XXI E O NOVO PAPEL DO JUIZ.



MARCOS BANDEIRA: Juiz da Vara da Infância e Juventude de Itabuna, professor de Direito da UESC, especialista em Processo Civil e Ciências Criminais, mestrando em Segurança Pública, Justiça e Cidadania e doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de Zamorra, Argentina.


RESUMO

Este artigo mostrará em rápidas pinceladas toda a evolução histórica da corrente filosófica denominada positivismo jurídico, retratando a supremacia exercida pelos poderes legislativo e executivo ao longo do tempo, e o surgimento de uma nova corrente filosófica-jurídica denominada provisoriamente de “pós-positivo”, a qual é caracterizada pela reaproximação da ética do Direito, com a valoração dos princípios e dos postulados da justiça como elementos normativos, exigindo, sobretudo, um Poder Judiciário pro-ativo e  um novo juiz sintonizado com o seu tempo diante dos enormes desafios provocados pelo mundo das incertezas. Estamos no mundo da ética, do direito e do respeito intransigente aos direitos fundamentais do cidadão.
PALAVRAS CHAVES:  positivismo, ética, direito, princípios, justiça, juiz, direitos, filosófica, corrente.

RESUMEN

Este artículo le mostrará a grandes rasgos a través de la evolución histórica del movimiento filosófico conocido como el positivismo jurídico, que representa la supremacía ejercida por los poderes legislativo y ejecutivo, con el tiempo, y el surgimiento de una nueva corriente jurídico-filosófica provisionalmente llamado "post-positivo", el que se caracteriza por el acercamiento de la ética de la ley, a los principios de valoración y los principios de la justicia y los elementos normativos, lo que requiere ante todo un poder judicial pro-activa y un nuevo juez en sintonía con su tiempo en los enormes retos que plantea el mundo incertidumbres. Estamos en el mundo de la ética, el derecho y los derechos fundamentales sin concesiones de la cuestión ciudadana.

PALABRAS CLAVE: positivismo, la ética, el derecho, los principios, la justicia, juez, derechos, corriente,  filosófica. A tradução está melhor que o original?
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“ Se o Direito Liberal do século XIX foi o do Poder Legislativo, o direito material do Estado-Providência do Século XX foi o do Executivo, o que se anuncia poderá ser o do juiz” ( Antoine Garapon).

1. INTRODUÇÃO
 É conhecido o velho axioma jurídico de Georges Ripert que “ Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”. Com efeito, a vida social é dinâmica e mutável. Se a segurança jurídica em tempos de  antanho era um valor absoluto, diante da necessidade de o Estado controlar o Poder e assim manter o “status quo”, hoje esse valor encontra-se relativizado, pois estamos no mundo das incertezas, provocado pela velocidade da informação, pela redescoberta da Justiça e da ética e sua aproximação com o mundo do Direito. As leis já não são suficientes para resolver todos os fenômenos sociais. O mundo acrítico do “ pacta Sun servanda” nos contratos bilaterais, onde o contrato( justiça privada) fazia lei entre as partes, mesmo que fosse para coonestar manifesta ilegalidade e injustiça, deu lugar ao mundo dos valores, dos princípios gerais, enfim, da função social e crítica dos contratos.O Direito patrimonialista do Estado Liberal e do bem-estar-social sucumbiu e deu lugar ao Estado Democrático de Direito, no qual o ser humano passou a ser o destinatário final das normas. A dignidade da pessoa humana passa a ser o princípio-farol de todo o ordenamento jurídico. Estamos na era de um novo Direito, que exige uma mudança de postura e atitude de todos os operadores do Direito, principalmente, daquele que decide e soluciona os conflitos de interesses, o juiz.
Este artigo mostrará em rápidas pinceladas toda a evolução histórica da corrente filosófica denominada positivismo jurídico, retratando a supremacia exercida pelos poderes legislativo e executivo ao longo do tempo, e o surgimento de uma nova corrente filosófica-jurídica denominada provisoriamente de “pós-positivo”, a qual é caracterizada pela reaproximação da ética do Direito, com a valoração dos princípios e dos postulados da justiça como elementos normativos, exigindo, sobretudo, um Poder Judiciário pro-ativo e  um novo juiz sintonizado com o seu tempo diante dos enormes desafios provocados pelo mundo das incertezas. Estamos no mundo da ética, do direito e do respeito intransigente aos direitos fundamentais do cidadão. O artigo se reveste de relevância, na medida em que além do produto do Direito, mostra a influência filosófica exercia no mundo do Direito Contemporâneo e todas as suas conseqüências .

            2. SÉCULO XIX – O SÉCULO DA SACRALIZAÇÃO DAS LEIS
            Os operadores de Direito, de uma forma geral, foram forjados no âmbito da cultura coimbrã, que sacralizava a devoção às leis. O juiz foi preparado para ser mero aplicador acrítico da lei. O mundo do Direito se limitava ao mundo dos fabricantes das leis, os nossos legisladores. Segundo Dalmo Dallari[1], isso deu no final do século XVIII, até como forma de combater o poder absolutista, substituindo o denominado “governo dos homens” pelo “ governo da lei”, como se pode observar:
            Quando terminou o ciclo das revoluções burguesas, no final do século XVIII, tinha-se como estabelecido o governo das leis, que substituiria o governo dos homens e assim sepultaria o absolutismo...consagrou-se , então, o chamado “ princípio da legalidade”, importante e benéfico enquanto barreira ao poder exercido arbitrariamente, mas negativo e oposto aos ditames da justiça quando concebido, como passou a ser de modo predominante, como fundamento de uma concepção puramente formalista do Direito, considerando não-jurídicas as preocupações com valores éticos e sociais. Esta concepção foi a que prevaleceu na França e teve acolhida em todos os países que, por vários motivos, se filiaram à cultura francesa, entre eles o Brasil.
            Destarte, nesse cenário, segundo Dallari,  as Faculdades de Direito passaram a ser a única fonte de produção do juiz “ escravo da lei” e serviçal passivo dos fabricantes da lei. O axioma a ser seguido era “ fora da lei não há possibilidade de decisão”. O juiz, extremamente legalista e formalista, ignorava por completo eventuais valores éticos, postulados de justiça, exigências sociais e tudo que pudesse conduzir para um resultado justo e equitativo do processo. O que importava era a obediência cega à lei estabelecida.

            3. SÉCULO XX – O SÉCULO DO ESTADO-PROVIDÊNCIA

O Estado social – welfare state – é caracterizado pelo Estado intervencionista e fomentador e executor de políticas públicas, cujo centro das decisões estava no Poder Executivo. A finalidade é intervir para diminuir as desigualdades sociais, erradicar a pobreza, levando o serviço público para os segmentos menos favorecidos da sociedade. Esse desiderato até hoje não foi satisfatoriamente cumprido pelo Estado. O Executivo passa também a legislar através de decretos e medidas provisórias em profusão, ofuscando a função do legislativo, e ferindo muitas vezes regras e princípios constitucionais.  O Poder Judiciário, numa postura positivista e sufocado pelo princípio da legalidade, não imiscuía no ato discricionário do gestor, aferindo apenas o aspecto da legalidade formal do ato administrativo vinculado. Salta aos olhos ao longo do século XX o arbítrio gigantesco do poder executivo, que, de fato, independentemente do regime político adotado em cada país, exercia uma indisfarçável supremacia sobre os demais Poderes do Estado.

            4. O PARADIGMA POSITIVISTA

 Forjou-se então uma concepção inspirada no positivismo filosófico de que poderia criar uma ciência do direito nos moldes das ciências exatas, transformando o  Direto unicamente em normas emanadas do Estado com força coativa suficiente para disciplinar a vida social. Questões relativas à equidade, ética, filosofia e justiça  não interessava ao mundo hermético do direito, sendo portanto temas estranhos ao Direito. A realidade social era disciplinada por regras objetivas, descritivas de determinadas condutas, pretensamente cobrindo todos os fenômenos sociais, e resolvidos matematicamente através da subsunção, através da qual,  a premissa menor(fatos) era enquadrada na premissa maior( lei) e o juiz revelava o sentido da lei, produzindo o resultada da interpretação, sem qualquer poder criativo ou transformador da realidade social, pois simplesmente revelava o conhecimento da lei. A idéia de colocar a matemática como base do pensamento filosófico já vem desde Platão( 427 ou 428 a.C/348 ou 437 a C), como se observa pela palavras do professor de filosofia José Américo Motta Pessanha[2], que afirma o seguinte:
            A matemática é, para Platão, a base do pensamento filosófico. Filosofar é procurar pensar para além da matemática, é fazer  metamatemática. No pórtico da Academia estava escrito: “ Aqui não entre quem não sabe geometria”. E, de fato, é frequentemente com recursos inspirados na matemática que Platão procurar ir além das posições assumidas por Sócrates, para poder dar combate mais efetivo ao relativismo dos sofistas, os quais afirmavam que não há verdade, mas apenas opiniões circunstanciais e relativas.
 O insigne constitucionalista, Luiz Roberto Barroso[3] assinala com maestria:
             O positivismo filosófico foi fruto de uma crença exacerbada  no poder do conhecimento científico. Sua importação para o direito resultou no positivismo jurídico, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica , com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o direito da moral e dos valores transcendentes. O Direito é norma, ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito, como todas as demais , deve fundar-se em Juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade, e não em Juízos de valor, que representam uma tomada de posições diante da realidade. Não é no Direito que se deve travar a discussão acerca de questões como legitimidade e justiça.
                O positivismo jurídico serviu ideologicamente como importante mecanismo para manter as estruturas do poder estabelecido. Qualquer discussão sobre justiça esbarrava no poder da positivação da norma. Essa corrente filosófica separou a ética do Direito, preocupando apenas com a observância das normas de condutas impostas pela autoridade do Estado. O jusfilósofo Paulo Dourado de Gusmão[4] discorrendo sobre o assunto assim prelecionou:
            Acreditamos que juristas, intelectuais e até mesmo o homem comum pensam e esperam que o Direito seja a expressão da justiça, reagindo( revoltando-se mesmo) quando os Tribunais decidem “ injustamente”, apesar de fazê-lo bom base na lei. Exigência que corresponde a um sentimento natural ao homem, não levado em conta na definição do direito formulada pelos positivistas.
            Assim aconteceu com o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália, onde se invocavam o cumprimento e a obediência cega à lei, como forma eficaz de manter a estabilidade e autoridade do Estado.  Ao fim da segunda guerra mundial, com a derrocada do fascismo e do nazismo, com a gritante  violação de direitos fundamentais de cidadãos e, o que é pior e trágico, a morte de milhares de pessoas inocentes,  o positivismo vai apresentando sinais de esgotamento, com  surgimento de uma nova concepção do Direito, na qual a ênfase estava na valorização dos princípios e na reaproximação dos valores e da ética do Direito.

            5. SÉCULO XXI- O SÉCULO DA JUSTIÇA

            Exsurge o Estado Democrático de Direito, cujo centro do poder decisório está no Poder Judiciário, em face da inércia dos poderes legislativos na formulação das leis e do Poder Executivo na execução das políticas públicas. Impõe-se enfatizar que o Poder Judiciário não substitui o executivo, pois não faz e nem executa Políticas Públicas, apenas supre a omissão, regulamentando e adequando a execução dessa política Pública aos postulados extraídos da Constituição Federal. Nesse sentido, é lapidar a lição de Lenio Strec[5], senão vejamos:
             É claro que o Judiciário não faz e não fará políticas públicas. Aliás nesse sentido devemos desmitificar  algumas idéias que se propagam a respeito do direito e das políticas públicas. Com efeito, política pública é um problema de ação do Poder executivo. O que o Direito pode fazer é regulamentar a execução dessas políticas e é nesse âmbito regulatório que o Judiciário pode intervir. Isso por um motivo muito simples: o Judiciário jamais poderá executar uma política pública pelos simples fato de que ele não tem a “chave do cofre.
            Essa mudança de paradigma com o foco das tensões e conflitos sociais voltado para o Poder Judiciário, como grande solucionador dos problemas sociais não passou despercebido pelo jurista Lenio Streck[6] na sua obra já citada, quando afirma categoricamente:
            As facetas ordenadora ( Estado Liberal de Direito) e promovedora ( Estado Social de  Direito) , o Estado Democrático de Direito agrega um plus( normativo-qualitativo), representado por sua função nitidamente transformadora, uma vez que os textos constitucionais passam a institucionalizar um “ideal de vida boa”, a partir do que pode denominar de co-originalidade entre Direito e Moral( Habermas).
            A seguir o mesmo autor [7]arremata demonstrando a crescente importância nos dias atuais da autonomia do Direito e da importância das decisões dos Juízes e Tribunais, senão vejamos:
            Não se pode olvidar, nesse sentido, que a questão da autonomia do direito está relacionada coma (in) compatibilidade “democracia-constitucionalismo” e com o crescente deslocamento do pólo de tensão da relação entre a legislação e a jurisdição em direção a esta última. Não é demais referir, nessa altura, que a autonomia adquirida pelo direito implica o crescimento da constitucionalidades das leis,  que é fundamentalmente contramajoritário.Mas, se diminui o espaço de poder da vontade geral e se aumenta o espaço de jurisdição(contramajoritarismo), parece evidente que, para a preservação dessa autonomia do direito, torna-se necessário implementar mecanismos de controle daquilo que é o repositório do deslocamento do pólo de tensão da legislação para a jurisdição: as decisões judiciais.
            É evidente que o método de interpretação dos princípios constitucionais que Ronald Dworkin denominou de leitura moral da Constituição influenciou bastante na consolidação deste novo paradigma. Essa teoria exige que o intérprete  se desprenda do seu contexto histórico originário , no sentido de que seja aplicada a casos concretos específicos, extraindo o máximo dos princípios morais abstratos, numa espécie de interpretação constitucional permanente e renovada. Ronald Dworkin[8] explicita:
            A leitura moral lhes pede que encontrem a melhor concepção dos princípios morais constitucionais – a melhor compreensão, por exemplo, de o que realmente significa a igualdade moral dos homens e das mulheres – que se encaixa no conjunto da história norte-americana. Não lhe pede que sigam os ditames de sua própria consciência ou as tradições de sua própria classe ou partido.
            Assinala ainda Dworkin[9] sobre a leitura moral da Constituição que “ é uma teoria acerca de o que a Constituição significa, e não acerca de quem deve nos dizer o que ela significa”. Destarte, essa nova hermenêutica consolida o direito como agente transformador da sociedade, e a Justiça como grande agente transformador. Não mais  devendo o interprete simplesmente desvelar o sentido fechado do texto, mas dar um novo sentido ao texto diante de um caso concreto novo, de um contexto histórico diferente. É lapidar a lição de Lênio Streck[10] sobre o tema, como se pode observar:
             Por tudo isto, o processo hermenêutico deve ser um devir. Interpretar é dar sentido. O que é dar sentido? “ é construir sítios de significância( delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação”. Para tanto, ‘ nenhum intérprete pode pretender estar frente ao texto normativo livre de pré-compreensões, pois isto equivaleria a estar fora da história e a fazer  emudecer a norma”, sendo que “ a norma é muda enquanto não for interrogada, reclamada e trazida a um presente espaço-temporal, de onde há de mostrar as suas potencialidades”.Somente então será compreendida em seu “ sentido”.
            6. O PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA

            Esta concepção se caracteriza pela centralidade dos princípios constitucionais, com a relação de um sistema aberto de princípios e regras, edificada sob o princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos fundamentais do cidadão. O Direito deve ser entendido como forma de transformação do meio social ( substancialismo), devendo o juiz construir a decisão em cada caso concreto,  numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional.O juiz, visualizado agora, não como um cego aplicador da lei, mas um intérprete, um julgador, capaz de escolher a decisão mais correta ou justa em cada caso concreto à luz dos princípios e regras constitucionais. O insigne jurista Luís Roberto Barroso[12] explicita com maestria esse novo paradigma do pós-positivista, como se pode observar:
            O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações  entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica  constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética.
            Nesse sentido, Lenio Streck[13] se vale da lição de Gadamer para afirmar que no paradigma  do pós-positivismo “ Gadamer  nos ensinou que interpretar a lei é uma ato produtivo e não reprodutivo, mostrando a superação da hermenêutica clássica pela hermenêutica filosófica”. é o novo Direito que exige que o juiz moderno exerça o seu poder criativo, acrescentando algo novo na realidade social  toda vez que interpretar o conúbio entre o texto e contexto.
           
           
            7. REGRAS E PRINCÍPIOS

            As regras normalmente são identificadas pela mínima densidade de abstração, já que descreve um comportamento e indica uma conseqüência previsível, ao passo que o princípio possui uma maior densidade de abstração, pois normalmente apenas indicas valores e fins a serem alcançados, devendo, pois, ser sopesado em cada caso concreto. Com efeito, criou-se o entendimento baseado principalmente nas concepções de Ronald Dworkin e de Robert Alexy, de que a regra , por conter o relato objetivo de uma conduta, resolvia pelo critério da subsunção, na modalidade “tudo ou nada” , de sorte que havendo conflito entre duas regras, somente uma será tida como válida. Todavia, no caso de colisão entre princípios, por não descrever a conduta específica, a aplicação seria resolvida  mediante ponderação, cabendo ao intérprete em cada caso concreto atribuir o peso a cada um e indicando o princípio preponderante. Nesse sentido, Luis Roberto Barroso[14] preleciona:
             Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto  delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade “ tudo ou nada”: ou regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese de conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Princípios, por sua  vez, contém relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática , os princípios frequentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá  ocorrer mediante ponderação.
            A evolução da elaboração teórica da interpretação dos princípios e regras já tem superado essas premissas iniciais sustentadas por Dworkin e Robert Alexy, para se entender que em alguns casos a ponderação pode ser aplicada aos conflitos verificados entre regras, sem que necessite declarar a invalidade de uma delas. O juiz, diante do caso concreto, pode criar uma exceção à regra contida no enunciado, ponderando que as razões para aplicar a excepcionalidade são maiores do que as razões para aplicar a regra geral contida no enunciado. Nesse sentido, Humberto Ávila[15] em sua obra “ Teoria dos Princípios” exemplifica e explicita:
             Um regra proíbe a concessão de liminar contra a Fazenda Pública que esgote o objeto litigioso( art. 1º da Lei nº 9.494/97). Essa regra proíbe ao juiz determinar, por medida liminar, o fornecimento de remédios pelos sistema de saúde a quem deles necessitar, para viver. Outra regra, porém, determina que o Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as despesas com os referidos medicamentos( art. 1º da Lei nº 9.908/93)...Embora essas regras instituam comportamentos contraditórios, uma determinando o que a outra proíbe, elas ultrapassam o conflito abstrato mantendo a sua validade.. o que ocorre é um conflito concreto entre as regras, de tal sorte que o julgador deverá atribuir um peso maior a uma das duas, em razão da finalidade que cada uma delas visa preservar: ou prevalece a finalidade de preservar a vida do cidadão, ou se sobrepõe a finalidade de garantir a intangibilidade  da destinação já dada pelo Poder Público às suas receitas.
            Assim, superando o critério da subsunção, o juiz, como intérprete autêntico e sintonizado com o sistema aberto da hermenêutica constitucional, produz, cria,  na expressão cunhada de Eros Grau[16], a norma em cada caso concreto como processo de interpretação. Preleciona o insgine jurista:
             O intérprete autêntico completa o trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho, pelo intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da interpretação, que se expressa na produção de um novo texto sobre aquele primeiro texto.... Tem de ser assim: porque a interpretação é transformação de uma expressão(texto) em outra( a norma), sustento que o juiz “produz o direito”...Ademais , cumpre desde logo anotar que a norma não é apenas o texto normativo nela transformado, pois ela resulta também do conúbio  entre o texto e os fatos( a realidade)...dizendo-o de outro modo: a interpretação do direito envolve não apenas a declaração do sentido veiculado pelo texto normativo, mas a constituição da norma a partir do texto e dos fatos....é atividade constitutiva, e não meramente declaratória.
            O Juiz, como intérprete, embora reproduza a norma, não pode fazê-lo de forma arbitrária e escondida no subjetivismo, pois sempre estará atrelado ao texto normativo(ponto de partida) e aos fatos, bem como deverá explicitar o trajeto percorrido e as escolhas feitas, tudo devidamente fundamentados. O que se depreende é que não há apenas uma decisão correta – tudo ou nada – todavia, existe mais de uma decisão correta,  e que cabe ao juiz em cada caso, mesmo em se tratando de regras, ponderar se as razões para aplicar a regra são superiores ou não as razões para aplicar a exceção – a exceção que pode estar prevista ou não – naquele caso concreto, no sentido de encontrar a solução que seja mais justa e adequada. Humberto Ávila, na obra já referida, cita o exemplo do taxista que infringe a lei de trânsito para salvar a vida de um passageiro. A conduta prevista na regra se realizou , ou seja, o taxista ultrapassou a velocidade permitida e assim o Estado estaria legitimado a cobrar a multa. Todavia, uma situação excepcional – salvar a vida de alguém – poderia justificar a não aplicação da multa. Essas escolhas fundamentadas deverão ser feitas pelo julgador. É o novo paradigma, que exige do novo juiz sensibilidade e técnica apurada para consultar os valores – justiça, legitimidade, igualdade materail, dignidade, segurança, etc – que devem prevalecer em determinadas situações.
            O novo paradigma exige um novo juiz, como intérprete autêntico,e que seja capaz de  reproduzir a norma em cada situação concreta, manifestando assim, a atividade criativa da atividade jurisdicional. Eros Grau na obra já citada[17], explicita magistralmente:
             O que pretendo também , além de sustentar o caráter olográfico da interpretação do direito, é afirmar que diferentes intérpretes – qual diferentes escultores produzem distintas Vênus de Milo – produzem, a partir do mesmo texto, enunciado ou preceito, distintas normas jurídicas. Parafraseando Kelsen ( 1979: 467), afirmo que dizer que uma dessas Vênus de Milo é fundada na obra grega não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro, que a obra grega representa – não significa que ela é a Vênus de Milo, mas apenas que é uma das Vênus de Milo...É que a norma é produzida , pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto(mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade(mundo do ser).
            A Doutora Lídia Prado[18] em sua obra intitulada “ O juiz e a Emoção”  discorrendo sobre o poder criativo da interpretação feita pelo juiz, assim se posiciona:
             Atualmente , vários teóricos, além dos citados, entendem a função jurisdicional como uma atividade criadora, pois a concepção da sentença ou da decisão administrativa como um silogismo caiu em descrédito.Defende-se a idéia de que a obra do órgão jurisdicional traz sempre , em maior ou menor medida, um aspecto novo, que não estava contido na norma geral. E isso ocorre inclusive quando a sentença tem fundamento em lei expressa, vigente e cujo sentido se apresenta como inequívoca clareza.
            O Judiciário Brasileiro nos últimos tempos,  diante da lentidão e conservadorismo de nosso Poder legislativo, tem avançado em temas tormentosos, como os direitos dos companheiros,  a união estável homoafetiva, a adoção homoafetiva, o aborto do anencefálico, a liberdade de expressão, dentre outros temas importantes que não são enfrentados pelo Poder Legislativo, que deixa  lacunas, em face de desentendimentos de bancadas e antagonismos inconciliáveis, ensejando assim,  que o Poder Judiciário, no âmbito de uma interpretação conforme a Constituição,  avance disciplinando situações novas e regulando a vida social que muda sempre, através de princípios constitucionais na condição de elementos normativos. Essa posição do Judiciário vem merecendo críticas de determinados setores conservadores da sociedade, que interpreta esse novo papel do juiz – ativismo judicial – como indevida interferência na harmonia e independência dos poderes.

            8. OS LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE/SUBJETIVIDADE DO JUIZ

 O jurista Lenio Streck[19] propõe a elaboração de uma teoria da decisão para tentar superar o problema da discricionariedade/arbitrariedade do juiz, enfatizando que a simples fundamentação da decisão não resolve o problema. Diz o insigne jurista:
            Não se pode fazer uma leitura rasa do art.93, IX da CF. A exigência de fundamentação não se resolve com “ capas argumentativas”. Ou seja, o juiz não deve explicar aquilo que o convenceu... Deve sim, explicitar os motivos de sua compreensão, oferecendo uma justificação( fundamentação) de sua interpretação, na perspectiva de demonstrar como a interpretação oferecida por ele é a melhor para aquele caso( mais adequada à Constituição ou, em termos dworkinianos, correta), num contexto de unidade, integridade e coerência com relação ao Direito da comunidade política.
            Torna-se curial que criemos mecanismos de controle da decisão judicial, para evitar o arbítrio e correr o risco de retrocedermos para o ressurgimento do “governo dos homens”, agora travestidos na versão contemporânea de magistrados aplicadores livres e independentes dos textos normativos, o que também não interessa ao Estado Democrático de Direito. A devida fundamentação da decisão acompanhada da justificação da interpretação empregada, demonstrando  o juiz os caminhos percorridos para produzir determinada norma e que ofereça condições plenas de ser impugnada pela parte vencida constitui, sem dúvidas, a garantia para encontrar a interpretação correta para cada caso concreto sem degenerar-se para o arbítrio. O Fenômeno de decisões judiciais em sentido opostos acerca de uma mesma matéria não passou despercebido pelo constitucionalista Luiz Roberto Barroso, quando discorrendo sobre a “ teoria da argumentação”, asseverou:
             A principal questão formulada pela chamada teoria da argumentação pode ser facilmente visualizada nesse ambiente: se há diversas possibilidades interpretativas acerca de uma mesma hipótese, qual delas é a mais correta? Ou, mas humildemente, ainda que não se possa falar de uma decisão correta, qual ( ou quais) delas é( são) capaz(es) de apresentar uma fundamentação racional consistente? Como verificar se uma determinada argumentação é melhor do que outra?
            A consolidação do pós-positivo passa pela superação do arbítrio, evitando que o juiz venha decidir de acordo com sua consciência, o que Lênio Streck chama de “solipsismo judicial”, ou seja, é necessário que haja mecanismos eficazes de controle da decisão judicial, evitando ativismos judiciais e posições voluntaristas.

            9. O NOVO PAPEL DO JUIZ

             O novo juiz deve ser não apenas o garantidor, mas o concretizador das promessa do constituinte e verdadeiro guardião e avalista dos direitos fundamentais do cidadão. Esse novo modelo exige um juiz  que tenha consciência do seu novo papel social e político, como agente político do Estado e que entregue a sua “setentia” com sentimento, utilizando o sentimento e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando assim dos conceitos abstratos e da lógica tradicional do positivismo jurídico. O jurista e Desembargador Renato Nallini[20] em seu artigo intitulado “ A formação deo juiz após a Emenda à Constituição n…º 45”  vaticina;
             O desafio da escola da magistratura é transformar o produto dogmático positivista da educação jurídica, à luz da velha feição das Faculdades de Direito, em um profissional atualizado, pronto a enfrentar os desafios contemporâneos. Um solucionador de conflitos, polivalente e intérprete da vontade da Constituição.Um operador do Direito Capaz de fazer escolhas fundamentadas quando se defrontar com antagonismo cada vez mais freqüentes.
            Nesse mesmo sentido, o jurista Dalmo Dallari[21],  em seu excelente artigo intitulado “ A Hora do Judiciário”, destaca o novo papel do juiz, como se observa:
            Essa adaptação começa  pela formação dos futuros juízes, que não poderão ser “ devotos do Código”, legalistas, formais  ou “ escravos da lei”, mas deverão preparar-se adequadamente para conhecer e avaliar com sensibilidade os fenômenos sociais que informam a criação do Direito e estão presentes no momento de sua aplicação, sem esquecer que a prioridade deve ser dada à pessoa humana, sem privilégios e discriminações.

            CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A Justiça brasileira deverá propiciar a porosidade possível para se valer de outros saberes – interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade - , quebrando a arrogância de se julgar um sistema hermético e independente. Os atos processuais devem ser públicos em regra e toda decisão judicial fundamentada, de forma que a prestação jurisdicional, além de ser dada num prazo razoável, como exige a emenda 45, também deve ser efetiva e permeada pelos valores da igualdade, dignidade, legitimidade, segurança, e sobretudo, do justo e equitativo, voltado para o grande escopo da jurisdição, que é a paz social fundada na plena realização do ser humano. Esse é o arquétipo que se espera do Judiciário do Século XXI.   Destarte,  esse novo paradigma exige a formatação de um novo juiz sincronizado com o Direito aberto, cuja decisão, livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor e concretizador das promessas do constituinte. Esse novo modelo exige um juiz que tenha consciência do seu novo papel social e político, que entregue a sua setentia com sentimento, utilizando a sensibilidade e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando, assim, dos conceitos abstratos e da lógica tradicional
 Para isso, o novo juiz , segundo Renato Nallini, deve desenvolver uma consciência de reflexão ética e apurada sensibilidade para julgar os conflitos de interesses individuais, coletivos e difusos. Assim, deve ser priorizado o estudo da filosofia, da hermenêutica, da teoria da argumentação e decisão, da lógica, da sociologia, da psicologia, história, economia e outros saberes, no sentido de que seja um verdadeiro solucionador de conflitos e que busque em cada caso concreto suas escolhas devidamente fundamentadas. Assim, o novo juiz poderá ser o verdadeiro concretizador das promessas do constituinte. Contrario sensu, se ficarmos vinculados ao critério da subsunção, o juiz será certamente um verdadeiro sepultador dos valores constitucionais. O novo juiz, segundo Renato Nallini, combina com a metáfora da navegação e do surf, pois implica na capacidade criativa de enfrentar as ondas, os redemoinhos , as mudanças,  as correntes e os ventos contrários em uma extensão plana, sem fronteiras e em constante mudança. Esse será o perfil do juiz ideal para enfrentar os novos desafios. Esse novo olhar sobre o direito que o juiz do futuro precisa cultivar.
“ Uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo” ( Marcel Proust)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003.
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III  Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
DALLARI, Dalmo de Abreu. A hora do Judiciário.in:Revista da Escola Nacional da Magistratura e Associação dos Magistrados Brasileiros.Ano I, número 1. – Brasília-DF: Escola  Nacional da Magistratura, 2006.
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana; Trad. Marcelo Brandão Cipolla; Revisão técnica Alberto Alonso Munhoz. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação /Aplicação do Direito. 4ª Ed. São Paulo:Malheiros Editores, 2006.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
NALLINI, José Renato. A formação do Juiz após a Emenda à Constituição nº 45/04.In: Revista da Escola Nacional da Magistratura e Associação dos Magistrados Brasileiros. Ano I, Número I . Brasília-Df: Escola Nacional da Magistratura, 2006.
PESSANHA, José Américo Motta. Platão e as Idéias. In: REZENDE, Antonio(org). Curso de Filosofia para professores e alunos dos cursos de segundo grau e graduação. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
PRADO, Lidia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica judicial. 3ª Ed. Campinas-SP: Millennium, 2006 .
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado 2011









[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. A hora do Judiciário. Revista da Escola Nacional da Magistratura e Associação dos Magistrados Brasileiros.Ano I, número 1. – Brasília-DF: Escolas Nacional das Magistratura, 2006. P.12
[2] PESSANHA, José Américo Motta. Platão e as Idéias. In: REZENDE, Antonio(org). Curso de Filosofia para professores e alunos dos cursos de segundo grau e graduação. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. P. 54
[3] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III  Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p11.
[4] GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008 . p.155
, [5] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado 2011. PP 64/65
[6] Op. Cit. p.54
[7] Op. cit. p. 56
[8] Op. Cit. p 16
[9] Op. Cit. p. 18
[10]  Op. cit.p 304
[11] DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana; Trad. Marcelo Brandão Cipolla; Revisão técnica Alberto Alonso Munhoz. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Ppp.2/3
[12] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III  Rio de Janeiro: Renovar, 2005.pp 12/13
[13] Op. Cit. p. 394
[14] BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III  Rio de Janeiro: Renovar, 2005 . p. 15.
[15] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. P. 45
[16] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação /Aplicação do Direito . pp.64,65 e 66.
[17] Op.cit. p 88
[18] PRADO, Lidia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica judicial. 3ª Ed.Campinas-SP: Millennium, 2006 . p. 13
[19] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise . p. 399
[20] Op. Cit. p. 7
[21] Op. Cit. p.4