O JUDICIÁRIO DO SÉCULO
XXI E O NOVO PAPEL DO JUIZ.
MARCOS BANDEIRA: Juiz da Vara da
Infância e Juventude de Itabuna, professor de Direito da UESC, especialista em
Processo Civil e Ciências Criminais, mestrando em Segurança Pública, Justiça e
Cidadania e doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de
Zamorra, Argentina.
RESUMO
Este artigo mostrará em rápidas
pinceladas toda a evolução histórica da corrente filosófica denominada
positivismo jurídico, retratando a supremacia exercida pelos poderes
legislativo e executivo ao longo do tempo, e o surgimento de uma nova corrente
filosófica-jurídica denominada provisoriamente de “pós-positivo”, a qual é
caracterizada pela reaproximação da ética do Direito, com a valoração dos
princípios e dos postulados da justiça como elementos normativos, exigindo,
sobretudo, um Poder Judiciário pro-ativo e
um novo juiz sintonizado com o seu tempo diante dos enormes desafios
provocados pelo mundo das incertezas. Estamos no mundo da ética, do direito e
do respeito intransigente aos direitos fundamentais do cidadão.
PALAVRAS CHAVES: positivismo, ética, direito, princípios,
justiça, juiz, direitos, filosófica, corrente.
RESUMEN
Este artículo le
mostrará a grandes rasgos a través de la evolución histórica del movimiento
filosófico conocido como el positivismo jurídico, que representa la supremacía
ejercida por los poderes legislativo y ejecutivo, con el tiempo, y el
surgimiento de una nueva corriente jurídico-filosófica provisionalmente llamado
"post-positivo", el que se caracteriza por el acercamiento de la
ética de la ley, a los principios de valoración y los principios de la justicia
y los elementos normativos, lo que requiere ante todo un poder judicial
pro-activa y un nuevo juez en sintonía con su tiempo en los enormes retos que
plantea el mundo incertidumbres. Estamos en el mundo de la ética, el derecho y
los derechos fundamentales sin concesiones de la cuestión ciudadana.
PALABRAS CLAVE:
positivismo, la ética, el derecho, los principios, la justicia, juez, derechos,
corriente, filosófica.
“ Se o Direito
Liberal do século XIX foi o do Poder Legislativo, o direito material do
Estado-Providência do Século XX foi o do Executivo, o que se anuncia poderá ser
o do juiz” ( Antoine Garapon).
1. INTRODUÇÃO
É conhecido o velho axioma
jurídico de Georges Ripert que “ Quando o Direito ignora a
realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”. Com efeito, a
vida social é dinâmica e mutável. Se a segurança jurídica em tempos de antanho era um valor absoluto, diante da
necessidade de o Estado controlar o Poder e assim manter o “status quo”, hoje esse valor encontra-se relativizado, pois
estamos no mundo das incertezas, provocado pela velocidade da informação, pela
redescoberta da Justiça e da ética e sua aproximação com o mundo do Direito. As
leis já não são suficientes para resolver todos os fenômenos sociais. O mundo
acrítico do “ pacta Sun servanda” nos
contratos bilaterais, onde o contrato( justiça privada) fazia lei entre as
partes, mesmo que fosse para coonestar manifesta ilegalidade e injustiça, deu
lugar ao mundo dos valores, dos princípios gerais, enfim, da função social e
crítica dos contratos.O Direito patrimonialista do Estado Liberal e do
bem-estar-social sucumbiu e deu lugar ao Estado Democrático de Direito, no qual
o ser humano passou a ser o destinatário final das normas. A dignidade da
pessoa humana passa a ser o princípio-farol de todo o ordenamento jurídico.
Estamos na era de um novo Direito, que exige uma mudança de postura e atitude
de todos os operadores do Direito, principalmente, daquele que decide e
soluciona os conflitos de interesses, o juiz.
Este artigo mostrará em rápidas
pinceladas toda a evolução histórica da corrente filosófica denominada
positivismo jurídico, retratando a supremacia exercida pelos poderes
legislativo e executivo ao longo do tempo, e o surgimento de uma nova corrente
filosófica-jurídica denominada provisoriamente de “pós-positivo”, a qual é
caracterizada pela reaproximação da ética do Direito, com a valoração dos
princípios e dos postulados da justiça como elementos normativos, exigindo,
sobretudo, um Poder Judiciário pro-ativo e
um novo juiz sintonizado com o seu tempo diante dos enormes desafios
provocados pelo mundo das incertezas. Estamos no mundo da ética, do direito e
do respeito intransigente aos direitos fundamentais do cidadão. O artigo se
reveste de relevância, na medida em que além do produto do Direito, mostra a
influência filosófica exercia no mundo do Direito Contemporâneo e todas as suas
conseqüências .
2. SÉCULO XIX – O SÉCULO DA
SACRALIZAÇÃO DAS LEIS
Os
operadores de Direito, de uma forma geral, foram forjados no âmbito da cultura
coimbrã, que sacralizava a devoção às leis. O juiz foi preparado para ser mero
aplicador acrítico da lei. O mundo do Direito se limitava ao mundo dos
fabricantes das leis, os nossos legisladores. Segundo Dalmo Dallari[1], isso deu no final do
século XVIII, até como forma de combater o poder absolutista, substituindo o
denominado “governo dos homens” pelo “ governo da lei”, como se pode observar:
Quando terminou o ciclo das
revoluções burguesas, no final do século XVIII, tinha-se como estabelecido o
governo das leis, que substituiria o governo dos homens e assim sepultaria o
absolutismo...consagrou-se , então, o chamado “ princípio da legalidade”,
importante e benéfico enquanto barreira ao poder exercido arbitrariamente, mas
negativo e oposto aos ditames da justiça quando concebido, como passou a ser de
modo predominante, como fundamento de uma concepção puramente formalista do
Direito, considerando não-jurídicas as preocupações com valores éticos e
sociais. Esta concepção foi a que prevaleceu na França e teve acolhida em todos
os países que, por vários motivos, se filiaram à cultura francesa, entre eles o
Brasil.
Destarte,
nesse cenário, segundo Dallari, as
Faculdades de Direito passaram a ser a única fonte de produção do juiz “
escravo da lei” e serviçal passivo dos fabricantes da lei. O axioma a ser
seguido era “ fora da lei não há possibilidade de decisão”. O juiz,
extremamente legalista e formalista, ignorava por completo eventuais valores
éticos, postulados de justiça, exigências sociais e tudo que pudesse conduzir
para um resultado justo e equitativo do processo. O que importava era a
obediência cega à lei estabelecida.
3. SÉCULO XX – O SÉCULO DO
ESTADO-PROVIDÊNCIA
O Estado social – welfare state – é caracterizado pelo
Estado intervencionista e fomentador e executor de políticas públicas, cujo
centro das decisões estava no Poder Executivo. A finalidade é intervir para
diminuir as desigualdades sociais, erradicar a pobreza, levando o serviço
público para os segmentos menos favorecidos da sociedade. Esse desiderato até
hoje não foi satisfatoriamente cumprido pelo Estado. O Executivo passa também a
legislar através de decretos e medidas provisórias em profusão, ofuscando a
função do legislativo, e ferindo muitas vezes regras e princípios
constitucionais. O Poder Judiciário,
numa postura positivista e sufocado pelo princípio da legalidade, não imiscuía
no ato discricionário do gestor, aferindo apenas o aspecto da legalidade formal
do ato administrativo vinculado. Salta aos olhos ao longo do século XX o
arbítrio gigantesco do poder executivo, que, de fato, independentemente do
regime político adotado em cada país, exercia uma indisfarçável supremacia
sobre os demais Poderes do Estado.
4. O PARADIGMA POSITIVISTA
Forjou-se então uma
concepção inspirada no positivismo filosófico de que poderia criar uma ciência
do direito nos moldes das ciências exatas, transformando o Direto unicamente em normas emanadas do
Estado com força coativa suficiente para disciplinar a vida social. Questões
relativas à equidade, ética, filosofia e justiça não interessava ao mundo hermético do
direito, sendo portanto temas estranhos ao Direito. A realidade social era
disciplinada por regras objetivas, descritivas de determinadas condutas,
pretensamente cobrindo todos os fenômenos sociais, e resolvidos matematicamente
através da subsunção, através da qual, a
premissa menor(fatos) era enquadrada na premissa maior( lei) e o juiz revelava
o sentido da lei, produzindo o resultada da interpretação, sem qualquer poder
criativo ou transformador da realidade social, pois simplesmente revelava o
conhecimento da lei. A idéia de colocar a matemática como base do pensamento
filosófico já vem desde Platão( 427 ou 428 a.C/348 ou 437 a C), como se observa
pela palavras do professor de filosofia José Américo Motta Pessanha[2], que afirma o seguinte:
A matemática é, para Platão, a base
do pensamento filosófico. Filosofar é procurar pensar para além da matemática,
é fazer metamatemática. No pórtico da
Academia estava escrito: “ Aqui não entre quem não sabe geometria”. E, de fato,
é frequentemente com recursos inspirados na matemática que Platão procurar ir
além das posições assumidas por Sócrates, para poder dar combate mais efetivo
ao relativismo dos sofistas, os quais afirmavam que não há verdade, mas apenas
opiniões circunstanciais e relativas.
O insigne
constitucionalista, Luiz Roberto Barroso[3] assinala com maestria:
O positivismo filosófico foi fruto de uma crença
exacerbada no poder do conhecimento
científico. Sua importação para o direito resultou no positivismo jurídico, na
pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às
ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica , com ênfase na
realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o direito da
moral e dos valores transcendentes. O Direito é norma, ato emanado do Estado
com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito, como todas as
demais , deve fundar-se em Juízos de fato, que visam ao conhecimento da
realidade, e não em Juízos de valor, que representam uma tomada de posições
diante da realidade. Não é no Direito que se deve travar a discussão acerca de
questões como legitimidade e justiça.
O positivismo jurídico
serviu ideologicamente como importante mecanismo para manter as estruturas do
poder estabelecido. Qualquer discussão sobre justiça esbarrava no poder da
positivação da norma. Essa corrente filosófica separou a ética do Direito,
preocupando apenas com a observância das normas de condutas impostas pela
autoridade do Estado. O jusfilósofo Paulo Dourado de Gusmão[4]
discorrendo sobre o assunto assim prelecionou:
Acreditamos que juristas, intelectuais e até mesmo o homem
comum pensam e esperam que o Direito seja a expressão da justiça, reagindo(
revoltando-se mesmo) quando os Tribunais decidem “ injustamente”, apesar de
fazê-lo bom base na lei. Exigência que corresponde a um sentimento natural ao
homem, não levado em conta na definição do direito formulada pelos
positivistas.
Assim
aconteceu com o nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália, onde se invocavam o
cumprimento e a obediência cega à lei, como forma eficaz de manter a
estabilidade e autoridade do Estado. Ao
fim da segunda guerra mundial, com a derrocada do fascismo e do nazismo, com a
gritante violação de direitos
fundamentais de cidadãos e, o que é pior e trágico, a morte de milhares de
pessoas inocentes, o positivismo vai
apresentando sinais de esgotamento, com
surgimento de uma nova concepção do Direito, na qual a ênfase estava na
valorização dos princípios e na reaproximação dos valores e da ética do
Direito.
5. SÉCULO XXI- O SÉCULO DA JUSTIÇA
Exsurge o
Estado Democrático de Direito, cujo centro do poder decisório está no Poder
Judiciário, em face da inércia dos poderes legislativos na formulação das leis
e do Poder Executivo na execução das políticas públicas. Impõe-se enfatizar que
o Poder Judiciário não substitui o executivo, pois não faz e nem executa
Políticas Públicas, apenas supre a omissão, regulamentando e adequando a
execução dessa política Pública aos postulados extraídos da Constituição
Federal. Nesse sentido, é lapidar a lição de Lenio Strec[5], senão vejamos:
É claro que o Judiciário não faz e não fará
políticas públicas. Aliás nesse sentido devemos desmitificar algumas idéias que se propagam a respeito do
direito e das políticas públicas. Com efeito, política pública é um problema de
ação do Poder executivo. O que o Direito pode fazer é regulamentar a execução
dessas políticas e é nesse âmbito regulatório que o Judiciário pode intervir.
Isso por um motivo muito simples: o Judiciário jamais poderá executar uma
política pública pelos simples fato de que ele não tem a “chave do cofre.
Essa
mudança de paradigma com o foco das tensões e conflitos sociais voltado para o
Poder Judiciário, como grande solucionador dos problemas sociais não passou
despercebido pelo jurista Lenio Streck[6] na sua obra já citada,
quando afirma categoricamente:
As facetas ordenadora ( Estado
Liberal de Direito) e promovedora ( Estado Social de Direito) , o Estado Democrático de Direito
agrega um plus( normativo-qualitativo), representado por sua função nitidamente
transformadora, uma vez que os textos constitucionais passam a
institucionalizar um “ideal de vida boa”, a partir do que pode denominar de
co-originalidade entre Direito e Moral( Habermas).
A seguir o mesmo autor [7]arremata
demonstrando a crescente importância nos dias atuais da autonomia do Direito e
da importância das decisões dos Juízes e Tribunais, senão vejamos:
Não se pode olvidar, nesse sentido, que a questão da
autonomia do direito está relacionada coma (in) compatibilidade
“democracia-constitucionalismo” e com o crescente deslocamento do pólo de
tensão da relação entre a legislação e a jurisdição em direção a esta última.
Não é demais referir, nessa altura, que a autonomia adquirida pelo direito implica
o crescimento da constitucionalidades das leis,
que é fundamentalmente contramajoritário.Mas, se diminui o espaço de
poder da vontade geral e se aumenta o espaço de
jurisdição(contramajoritarismo), parece evidente que, para a preservação dessa
autonomia do direito, torna-se necessário implementar mecanismos de controle
daquilo que é o repositório do deslocamento do pólo de tensão da legislação
para a jurisdição: as decisões judiciais.
É evidente que o método de interpretação dos
princípios constitucionais que Ronald Dworkin denominou de leitura moral da
Constituição influenciou bastante na consolidação deste novo paradigma. Essa
teoria exige que o intérprete se
desprenda do seu contexto histórico originário , no sentido de que seja
aplicada a casos concretos específicos, extraindo o máximo dos princípios
morais abstratos, numa espécie de interpretação constitucional permanente e
renovada. Ronald Dworkin[8]
explicita:
A leitura moral lhes pede que encontrem a melhor concepção
dos princípios morais constitucionais – a melhor compreensão, por exemplo, de o
que realmente significa a igualdade moral dos homens e das mulheres – que se
encaixa no conjunto da história norte-americana. Não lhe pede que sigam os
ditames de sua própria consciência ou as tradições de sua própria classe ou
partido.
Assinala ainda Dworkin[9]
sobre a leitura moral da Constituição que “ é uma teoria acerca de o que a
Constituição significa, e não acerca de quem deve nos dizer o que ela
significa”. Destarte, essa nova hermenêutica consolida o direito como agente
transformador da sociedade, e a Justiça como grande agente transformador. Não
mais devendo o interprete simplesmente
desvelar o sentido fechado do texto, mas dar um novo sentido ao texto diante de
um caso concreto novo, de um contexto histórico diferente. É lapidar a lição de
Lênio Streck[10]
sobre o tema, como se pode observar:
Por tudo isto, o
processo hermenêutico deve ser um devir. Interpretar é dar sentido. O que é dar
sentido? “ é construir sítios de significância( delimitar domínios), é tornar
possíveis gestos de interpretação”. Para tanto, ‘ nenhum intérprete pode
pretender estar frente ao texto normativo livre de pré-compreensões, pois isto
equivaleria a estar fora da história e a fazer
emudecer a norma”, sendo que “ a norma é muda enquanto não for
interrogada, reclamada e trazida a um presente espaço-temporal, de onde há de
mostrar as suas potencialidades”.Somente então será compreendida em seu “
sentido”.
6. O PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA
Esta
concepção se caracteriza pela centralidade dos princípios constitucionais, com
a relação de um sistema aberto de princípios e regras, edificada sob o
princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos fundamentais do
cidadão. O Direito deve ser entendido como forma de transformação do meio
social ( substancialismo), devendo o juiz construir a decisão em cada caso
concreto, numa perspectiva
principiológica e de hermenêutica constitucional.O juiz, visualizado agora, não
como um cego aplicador da lei, mas um intérprete, um julgador, capaz de
escolher a decisão mais correta ou justa em cada caso concreto à luz dos
princípios e regras constitucionais. O insigne jurista Luís Roberto Barroso[12] explicita com maestria
esse novo paradigma do pós-positivista, como se pode observar:
O pós-positivismo é a designação
provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das
relações entre valores, princípios e
regras, aspectos da chamada nova hermenêutica
constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o
fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação,
explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela
ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação
entre Direito e Ética.
Nesse sentido, Lenio Streck[13]
se vale da lição de Gadamer para afirmar que no paradigma do pós-positivismo “ Gadamer nos ensinou que interpretar a lei é uma ato
produtivo e não reprodutivo, mostrando a superação da hermenêutica clássica
pela hermenêutica filosófica”. é o novo Direito que exige que o juiz moderno exerça o seu
poder criativo, acrescentando algo novo na realidade social toda vez que interpretar o conúbio entre o
texto e contexto.
7. REGRAS E PRINCÍPIOS
As regras normalmente são
identificadas pela mínima densidade de abstração, já que descreve um
comportamento e indica uma conseqüência previsível, ao passo que o princípio
possui uma maior densidade de abstração, pois normalmente apenas indicas
valores e fins a serem alcançados, devendo, pois, ser sopesado em cada caso
concreto. Com efeito, criou-se o entendimento baseado principalmente nas
concepções de Ronald Dworkin e de Robert Alexy, de que a regra , por conter o
relato objetivo de uma conduta, resolvia pelo critério da subsunção, na
modalidade “tudo ou nada” , de sorte que havendo conflito entre duas regras,
somente uma será tida como válida. Todavia, no caso de colisão entre
princípios, por não descrever a conduta específica, a aplicação seria resolvida mediante ponderação, cabendo ao intérprete em
cada caso concreto atribuir o peso a cada um e indicando o princípio
preponderante. Nesse sentido, Luis Roberto Barroso[14] preleciona:
Regras são, normalmente, relatos
objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese
prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da
subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma
conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade “ tudo ou nada”: ou
regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese de conflito
entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Princípios, por
sua vez, contém relatos com maior grau
de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um
conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática
, os princípios frequentemente entram em tensão dialética, apontando direções
diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá
ocorrer mediante ponderação.
A evolução da elaboração teórica
da interpretação dos princípios e regras já tem superado essas premissas
iniciais sustentadas por Dworkin e Robert Alexy, para se entender que em alguns
casos a ponderação pode ser aplicada aos conflitos verificados entre regras,
sem que necessite declarar a invalidade de uma delas. O juiz, diante do caso
concreto, pode criar uma exceção à regra contida no enunciado, ponderando que
as razões para aplicar a excepcionalidade são maiores do que as razões para
aplicar a regra geral contida no enunciado. Nesse sentido, Humberto Ávila[15] em sua obra “ Teoria dos
Princípios” exemplifica e explicita:
Um regra proíbe a concessão de
liminar contra a Fazenda Pública que esgote o objeto litigioso( art. 1º da Lei
nº 9.494/97). Essa regra proíbe ao juiz determinar, por medida liminar, o
fornecimento de remédios pelos sistema de saúde a quem deles necessitar, para
viver. Outra regra, porém, determina que o Estado deve fornecer, de forma
gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as
despesas com os referidos medicamentos( art. 1º da Lei nº 9.908/93)...Embora
essas regras instituam comportamentos contraditórios, uma determinando o que a
outra proíbe, elas ultrapassam o conflito abstrato mantendo a sua validade.. o
que ocorre é um conflito concreto entre as regras, de tal sorte que o julgador
deverá atribuir um peso maior a uma das duas, em razão da finalidade que cada
uma delas visa preservar: ou prevalece a finalidade de preservar a vida do
cidadão, ou se sobrepõe a finalidade de garantir a intangibilidade da destinação já dada pelo Poder Público às
suas receitas.
Assim,
superando o critério da subsunção, o juiz, como intérprete autêntico e
sintonizado com o sistema aberto da hermenêutica constitucional, produz,
cria, na expressão cunhada de Eros Grau[16], a norma em cada caso
concreto como processo de interpretação. Preleciona o insgine jurista:
O intérprete autêntico completa o
trabalho do autor do texto normativo; a finalização desse trabalho, pelo
intérprete autêntico, é necessária em razão do próprio caráter da
interpretação, que se expressa na produção de um novo texto sobre aquele
primeiro texto.... Tem de ser assim: porque a interpretação é transformação de
uma expressão(texto) em outra( a norma), sustento que o juiz “produz o
direito”...Ademais , cumpre desde logo anotar que a norma não é apenas o texto
normativo nela transformado, pois ela resulta também do conúbio entre o texto e os fatos( a
realidade)...dizendo-o de outro modo: a interpretação do direito envolve não
apenas a declaração do sentido veiculado pelo texto normativo, mas a
constituição da norma a partir do texto e dos fatos....é atividade
constitutiva, e não meramente declaratória.
O Juiz,
como intérprete, embora reproduza a norma, não pode fazê-lo de forma arbitrária
e escondida no subjetivismo, pois sempre estará atrelado ao texto
normativo(ponto de partida) e aos fatos, bem como deverá explicitar o trajeto
percorrido e as escolhas feitas, tudo devidamente fundamentados. O que se
depreende é que não há apenas uma decisão correta – tudo ou nada – todavia,
existe mais de uma decisão correta, e
que cabe ao juiz em cada caso, mesmo em se tratando de regras, ponderar se as
razões para aplicar a regra são superiores ou não as razões para aplicar a
exceção – a exceção que pode estar prevista ou não – naquele caso concreto, no
sentido de encontrar a solução que seja mais justa e adequada. Humberto Ávila,
na obra já referida, cita o exemplo do taxista que infringe a lei de trânsito
para salvar a vida de um passageiro. A conduta prevista na regra se realizou ,
ou seja, o taxista ultrapassou a velocidade permitida e assim o Estado estaria
legitimado a cobrar a multa. Todavia, uma situação excepcional – salvar a vida
de alguém – poderia justificar a não aplicação da multa. Essas escolhas
fundamentadas deverão ser feitas pelo julgador. É o novo paradigma, que exige
do novo juiz sensibilidade e técnica apurada para consultar os valores –
justiça, legitimidade, igualdade materail, dignidade, segurança, etc – que
devem prevalecer em determinadas situações.
O novo
paradigma exige um novo juiz, como intérprete autêntico,e que seja capaz
de reproduzir a norma em cada situação
concreta, manifestando assim, a atividade criativa da atividade jurisdicional.
Eros Grau na obra já citada[17], explicita
magistralmente:
O que pretendo também , além de
sustentar o caráter olográfico da interpretação do direito, é afirmar que
diferentes intérpretes – qual diferentes escultores produzem distintas Vênus de
Milo – produzem, a partir do mesmo texto, enunciado ou preceito, distintas
normas jurídicas. Parafraseando Kelsen ( 1979: 467), afirmo que dizer que uma
dessas Vênus de Milo é fundada na obra grega não significa, na verdade, senão
que ela se contém dentro da moldura ou quadro, que a obra grega representa –
não significa que ela é a Vênus de Milo, mas apenas que é uma das Vênus de
Milo...É que a norma é produzida , pelo intérprete, não apenas a partir de
elementos que se desprendem do texto(mundo do dever-ser), mas também a partir
de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos
da realidade(mundo do ser).
A Doutora Lídia Prado[18] em sua obra intitulada “
O juiz e a Emoção” discorrendo sobre o
poder criativo da interpretação feita pelo juiz, assim se posiciona:
Atualmente , vários teóricos, além
dos citados, entendem a função jurisdicional como uma atividade criadora, pois
a concepção da sentença ou da decisão administrativa como um silogismo caiu em
descrédito.Defende-se a idéia de que a obra do órgão jurisdicional traz sempre
, em maior ou menor medida, um aspecto novo, que não estava contido na norma
geral. E isso ocorre inclusive quando a sentença tem fundamento em lei
expressa, vigente e cujo sentido se apresenta como inequívoca clareza.
O Judiciário Brasileiro
nos últimos tempos, diante da lentidão e
conservadorismo de nosso Poder legislativo, tem avançado em temas tormentosos,
como os direitos dos companheiros, a
união estável homoafetiva, a adoção homoafetiva, o aborto do anencefálico, a
liberdade de expressão, dentre outros temas importantes que não são enfrentados
pelo Poder Legislativo, que deixa
lacunas, em face de desentendimentos de bancadas e antagonismos
inconciliáveis, ensejando assim, que o
Poder Judiciário, no âmbito de uma interpretação conforme a Constituição, avance disciplinando situações novas e
regulando a vida social que muda sempre, através de princípios constitucionais
na condição de elementos normativos. Essa posição do Judiciário vem merecendo críticas
de determinados setores conservadores da sociedade, que interpreta esse novo
papel do juiz – ativismo judicial – como indevida interferência na harmonia e
independência dos poderes.
8. OS LIMITES DA
DISCRICIONARIEDADE/SUBJETIVIDADE DO JUIZ
O jurista Lenio Streck[19] propõe a elaboração de
uma teoria da decisão para tentar superar o problema da
discricionariedade/arbitrariedade do juiz, enfatizando que a simples
fundamentação da decisão não resolve o problema. Diz o insigne jurista:
Não se pode fazer uma leitura rasa do art.93, IX da CF. A exigência de
fundamentação não se resolve com “ capas argumentativas”. Ou seja, o juiz não
deve explicar aquilo que o convenceu... Deve sim, explicitar os motivos de sua
compreensão, oferecendo uma justificação( fundamentação) de sua interpretação,
na perspectiva de demonstrar como a interpretação oferecida por ele é a melhor
para aquele caso( mais adequada à Constituição ou, em termos dworkinianos,
correta), num contexto de unidade, integridade e coerência com relação ao
Direito da comunidade política.
Torna-se curial que criemos
mecanismos de controle da decisão judicial, para evitar o arbítrio e correr o
risco de retrocedermos para o ressurgimento do “governo dos homens”, agora travestidos na versão contemporânea de
magistrados aplicadores livres e independentes dos textos normativos, o que
também não interessa ao Estado Democrático de Direito. A devida fundamentação
da decisão acompanhada da justificação da interpretação empregada, demonstrando o juiz os caminhos percorridos para produzir
determinada norma e que ofereça condições plenas de ser impugnada pela parte
vencida constitui, sem dúvidas, a garantia para encontrar a interpretação
correta para cada caso concreto sem degenerar-se para o arbítrio. O Fenômeno de
decisões judiciais em sentido opostos acerca de uma mesma matéria não passou
despercebido pelo constitucionalista Luiz Roberto Barroso, quando discorrendo
sobre a “ teoria da argumentação”, asseverou:
A principal questão formulada pela
chamada teoria da argumentação pode ser facilmente visualizada nesse ambiente:
se há diversas possibilidades interpretativas acerca de uma mesma hipótese,
qual delas é a mais correta? Ou, mas humildemente, ainda que não se possa falar
de uma decisão correta, qual ( ou quais) delas é( são) capaz(es) de apresentar
uma fundamentação racional consistente? Como verificar se uma determinada
argumentação é melhor do que outra?
A consolidação do pós-positivo
passa pela superação do arbítrio, evitando que o juiz venha decidir de acordo
com sua consciência, o que Lênio Streck chama de “solipsismo judicial”, ou
seja, é necessário que haja mecanismos eficazes de controle da decisão
judicial, evitando ativismos judiciais e posições voluntaristas.
9. O NOVO PAPEL DO JUIZ
O novo juiz deve ser não apenas o garantidor,
mas o concretizador das promessa do constituinte e verdadeiro guardião e
avalista dos direitos fundamentais do cidadão. Esse novo modelo exige um
juiz que tenha consciência do seu novo
papel social e político, como agente político do Estado e que entregue a sua “setentia” com sentimento, utilizando o
sentimento e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos
fatos, escapando assim dos conceitos abstratos e da lógica tradicional do
positivismo jurídico. O jurista e Desembargador Renato Nallini[20]
em seu artigo intitulado “ A formação deo juiz após a Emenda à Constituição n…º
45” vaticina;
O desafio da escola da magistratura é transformar o produto
dogmático positivista da educação jurídica, à luz da velha feição das
Faculdades de Direito, em um profissional atualizado, pronto a enfrentar os
desafios contemporâneos. Um solucionador de conflitos, polivalente e intérprete
da vontade da Constituição.Um operador do Direito Capaz de fazer escolhas
fundamentadas quando se defrontar com antagonismo cada vez mais freqüentes.
Nesse mesmo sentido,
o jurista Dalmo Dallari[21], em seu excelente artigo intitulado “ A Hora
do Judiciário”, destaca o novo papel do juiz, como se observa:
Essa adaptação começa pela formação dos futuros juízes, que não
poderão ser “ devotos do Código”, legalistas, formais ou “ escravos da lei”, mas deverão
preparar-se adequadamente para conhecer e avaliar com sensibilidade os
fenômenos sociais que informam a criação do Direito e estão presentes no
momento de sua aplicação, sem esquecer que a prioridade deve ser dada à pessoa
humana, sem privilégios e discriminações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Justiça
brasileira deverá propiciar a porosidade possível para se valer de outros
saberes – interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade - , quebrando a
arrogância de se julgar um sistema hermético e independente. Os atos
processuais devem ser públicos em regra e toda decisão judicial fundamentada,
de forma que a prestação jurisdicional, além de ser dada num prazo razoável,
como exige a emenda 45, também deve ser efetiva e permeada pelos valores da
igualdade, dignidade, legitimidade, segurança, e sobretudo, do justo e
equitativo, voltado para o grande escopo da jurisdição, que é a paz social
fundada na plena realização do ser humano. Esse é o arquétipo que se espera do
Judiciário do Século XXI. Destarte,
esse novo paradigma exige a formatação de um novo juiz sincronizado com o
Direito aberto, cuja decisão, livre de qualquer método dogmático-positivista,
seja construída em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de
hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor e
concretizador das promessas do constituinte. Esse novo modelo exige um juiz que
tenha consciência do seu novo papel social e político, que entregue a sua setentia
com sentimento, utilizando a sensibilidade e a intuição como método
para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando, assim, dos conceitos
abstratos e da lógica tradicional
Para isso, o novo
juiz , segundo Renato Nallini, deve desenvolver uma consciência de reflexão
ética e apurada sensibilidade para julgar os conflitos de interesses
individuais, coletivos e difusos. Assim, deve ser priorizado o estudo da
filosofia, da hermenêutica, da teoria da argumentação e decisão, da lógica, da
sociologia, da psicologia, história, economia e outros saberes, no sentido de
que seja um verdadeiro solucionador de conflitos e que busque em cada caso
concreto suas escolhas devidamente fundamentadas. Assim, o novo juiz poderá ser
o verdadeiro concretizador das promessas do constituinte. Contrario sensu, se ficarmos vinculados ao critério da subsunção, o
juiz será certamente um verdadeiro sepultador dos valores constitucionais. O
novo juiz, segundo Renato Nallini, combina com a metáfora da navegação e do
surf, pois implica na capacidade criativa de enfrentar as ondas, os redemoinhos
, as mudanças, as correntes e os ventos
contrários em uma extensão plana, sem fronteiras e em constante mudança. Esse
será o perfil do juiz ideal para enfrentar os novos desafios. Esse novo olhar
sobre o direito que o juiz do futuro precisa cultivar.
“ Uma verdadeira
viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo” (
Marcel Proust)
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
ÁVILA, Humberto. Teoria
dos Princípios: Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 2003.
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de Direito Constitucional. Tomo III
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Trad. Marcelo Brandão Cipolla; Revisão técnica Alberto Alonso Munhoz. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
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I, Número I . Brasília-Df: Escola Nacional da Magistratura, 2006.
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para professores e alunos dos cursos de segundo grau e graduação. 14ª Ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
PRADO, Lidia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica judicial. 3ª Ed. Campinas-SP:
Millennium, 2006 .
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado 2011
[1]
DALLARI, Dalmo de Abreu. A hora do Judiciário. Revista da Escola Nacional da
Magistratura e Associação dos Magistrados Brasileiros.Ano I, número 1. –
Brasília-DF: Escolas Nacional das Magistratura, 2006. P.12
[2]
PESSANHA, José Américo Motta. Platão e as Idéias. In: REZENDE, Antonio(org).
Curso de Filosofia para professores e alunos dos cursos de segundo grau e
graduação. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. P. 54
[3]
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III Rio de Janeiro: Renovar, 2005.p11.
[4]
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense,
2008 . p.155
[6]
Op. Cit. p.54
[7] Op. cit. p. 56
[8] Op. Cit. p 16
[9] Op. Cit. p. 18
[10] Op. cit.p 304
[11]
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição
norte-americana; Trad. Marcelo Brandão Cipolla; Revisão técnica Alberto Alonso
Munhoz. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Ppp.2/3
[12]
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III Rio de Janeiro: Renovar, 2005.pp 12/13
[13]
Op. Cit. p. 394
[14]
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III Rio de Janeiro: Renovar, 2005 . p. 15.
[15]
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. P. 45
[16]
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação /Aplicação do
Direito . pp.64,65 e 66.
[17]
Op.cit. p 88
[18]
PRADO, Lidia Reis de Almeida. O juiz e a emoção: aspectos da lógica judicial.
3ª Ed.Campinas-SP: Millennium, 2006 . p. 13
[19]
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise . p. 399
[20] Op. Cit. p. 7
[21] Op. Cit. p.4
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