segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O calcanhar de Aquiles do político desonesto

O calcanhar de Aquiles do político desonesto

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 10-07-2008

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O CALCANHAR DE AQUILES DO POLÍTICO DESONESTO

Marcos Bandeira *


Na mitologia Helênica, todos conhecem a lenda do herói grego Aquiles, o qual preferiu uma vida gloriosa e breve em troca de uma vida longa e apagada. Na antiga Grécia havia a crença de que “os eleitos dos deuses morriam jovens”.Destarte, preocupada com seu jovem filho, Tétis, a ninfa marinha, mergulhou Aquiles no temível rio Estinge, segurando-o de cabeça para baixo, no sentido de torná-lo invulnerável. Todavia, as águas do rio Estinge não alcançaram o calcanhar, pelo qual ela o segurava, ficando assim exposto e conhecido como seu ponto fraco. Segundo a lenda, Tétis fez Aquiles ser criado como menina na corte de Liconedes, na ilha de Ciros, a fim de mantê-lo longe do campo de batalhas. O jovem guerreiro, sabedor do seu destino vaticinado nas profecias, utilizou de um ardil para ser identificado entre as moças e marchou com os gregos para a batalha de Tróia. Após retirar-se da guerra e, profundamente ofendido com o chefe supremo dos gregos, que lhe roubou Brisieda, Aquiles cede sua armadura protetora a seu amigo, Pátroclo, que foi morto por Heitor, filho do rei de Tróia. Aquiles, sedento de vingança, reconciliou-se com Agamenon, chefe supremo da Grécia, e retornou à guerra para vingar a morte de seu amigo, o que acabou acontecendo. Ato contínuo, Aquiles, consumando a vindita, arrasta o cadáver de Heitor em torno da sepultura de Pátroclo. Pouco tempo depois, Páris, irmão de Heitor, lançou contra Aquiles uma flecha envenenada guiada por Apolo, atingindo-lhe o seu ponto fraco, ou seja, o seu calcanhar e matando-o. Por essa razão tornou-se conhecido o famoso “calcanhar de Aquiles”.

O todo poderoso político, da mesma forma que Aquiles, é protegido de todos os lados, só que a tutela vem da própria lei, fruto da casuística ou da conveniência de nossos próprios legisladores. Logo, por contar antecipadamente com a certeza da impunidade, dilapida o erário público, como aqueles personagens do município de São Gonçalo - RJ, tem suas contas rejeitadas pelos Plenários de Câmaras de Vereadores ou Assembléias Legislativas, referendando pareceres dos Tribunais de Contas, por irregularidade insanável, mas, apesar de tudo isso, conseguem candidatar-se a cargos eletivos e, com o abuso do poder econômico ou político, elegem-se, retornando-se à conhecida e amada vida pública, sem que o comum dos mortais entenda bem essa questão. Tentemos explicar: a autorização para que o ex-gestor desonesto possa se candidatar a algum cargo eletivo é dada pela ressalva da alínea “g”, inc. I do art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18.05.90, também conhecida por “Lei das Inelegibilidades”, que dispõe o seguinte, in verbis:

Art. 1º- São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

a) os inalistáveis e os analfabetos;

(...)

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da decisão;

Como se infere, o político desonesto que teve suas contas rejeitadas pela Câmara de Vereadores do Município, basta ingressar com qualquer ação judicial, antes do pedido de impugnação de registro de sua candidatura, objetivando a desconstituição da decisão política da Câmara, que estará apto a concorrer ao cargo eletivo que desejar, mesmo que a ação seja manifestamente destituída de fundamento jurídico. O que importa é que a decisão que rejeitou as contas do ex-gestor esteja sendo questionada em Juízo, sendo desinfluente que esteja em grau de recurso, ou mesmo que a decisão proferida pelo juiz de primeiro grau seja desfavorável ao pretendente.

A ressalva do referido dispositivo representa, sem dúvida, violação ao princípio da moralidade pública e da independência ou separação entre os poderes, pois não é concebível que o simples ajuizamento de uma ação, muitas vezes anos após a decisão da Câmara ou Assembléia, seja suficiente para desconstituir uma decisão de mérito discutida e votada no plenário do parlamento, na maioria das vezes, referendando o parecer técnico do Tribunal de Contas e com a observância de todas as normas regimentais e legais. Não concordo, a bem da verdade, com o sistema de escolha dos conselheiros do Tribunal de Contas, o que o torna um órgão eminentemente político, quando deveria ser vinculado ao Ministério Público. É sabido, porém, que referido dispositivo, inserido casuisticamente em nosso ordenamento jurídico por um determinado político para contemplar seus afilhados, permanece imutável há quase doze anos para gáudio do político desonesto, como a demonstrar, como Aquiles, toda à sua invulnerabilidade.

Acredito que o “calcanhar de Aquiles” do político desonesto consistirá na revogação desta ressalva legal, que frustra milhares de cidadãos brasileiros e centenas de juízes eleitorais acostumados a julgar as impugnações de pedido de registro de candidatura nas eleições municipais. O legislador, sem ferir o princípio de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Art. 5º, XXXV da CF), modificaria o referido dispositivo para só admitir a desconstituição da decisão do legislativo (municipal, estadual ou federal), caso adviesse uma decisão judicial transitada em julgado desconstituindo a decisão que rejeitara as contas.

O candidato a qualquer cargo eletivo, como é sabido, além de reunir as condições de elegibilidade, não deve se sujeitar a nenhuma das hipóteses de inelegibilidades previstas na Constituição Federal, na Lei Complementar nº 64/90 e Decreto-Lei nº 201/67. Entendo, todavia, que deveria ser condição sine qua non para qualquer pessoa ostentar o jus honorum, ou seja, exercer o mandato emanado do povo, que não pairasse qualquer dúvida sobre sua honorabilidade, pois, contrarium sensu, continuaremos a amargar a falta de investimentos sociais, a falta de merenda escolar, o desemprego, a precariedade do sistema de saúde, enfim, continuaremos a sentir na pele os efeitos deletérios de uma má gestão da coisa pública com prejuízos incalculáveis, principalmente para a população mais carente, que hoje forma o cinturão de miseráveis que está asfixiando as médias e grandes cidades, engrossando as estatísticas da violência urbana.

Para finalizar, a única semelhança entre Aquiles da mitologia grega e o político desonesto é o “calcanhar”, ou seja, o ponto fraco, pois enquanto a flecha acertou um guerreiro até então imortal, o tiro certeiro de nossos legisladores poderá apear definitivamente da vida pública figuras execráveis que se enriqueceram à custa da exploração da coisa pública. É bom que não se esqueça que o tiro deve ser de grosso calibre, pois lei complementar para ser reformada exige “quorum qualificado” de 3/5.

*MARCOS BANDEIRA – Juiz de Direito da Vara do Júri da Comarca de Itabuna-BA - 22.04.2002.

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