sábado, 14 de novembro de 2009

MANDADO DE SEGURANÇA - CRITÉRIO CAPACIDADE-SUPLETIVO.INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL.PEDIDO DEFERIDO.

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DA BAHIA

COMARCA DE ITABUNA

JUÍZO DE DIREITO DA VARA DA INFÂNCIA DA JUVENTUDE



PROCESSO Nº.

MANDADO DE SEGURANÇA

IMPETRANTE: K. R.L.

IMPETRADO: DIRETORA REGIONAL DE EDUCUÇÃO – DIREC 07

LITISCONSORTE PASSIVO: ESTADO DA BAHIA





K R L, devidamente assistido por seus genitores e representado pelos patronos que subscrevem a inicial, impetrou o presente MANDADO DE SEGURANÇA COM PEDIDO LIMINAR, em face de ato emanado da DIRETORA DA DIREC 07 e DIRETORA DO COLÉGIO ESTADUAL DE ITABUNA, que denegaram ao impetrante a possibilidade de submeter-se ao exame supletivo perante a Comissão Permanente de Avaliação, o que inviabilizaria a obtenção do certificado de conclusão do segundo grau e, conseqüentemente, a matrícula no curso de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz, no qual alcançou aprovação. O impetrante aduz que, inobstante a sua menoridade, possui capacidade intelectual e emocional para progredir no ensino superior, fundamentando sua pretensão nos arts. 205 e 208, V, da Constituição Federal, bem como no art. 54, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente e no princípio constitucional da razoabilidade.

Requerida na exordial a concessão de medida liminar inaudita altera pars, foi concedida a medida de urgência, em face da presença dos requisitos do art. 7º, II, da Lei. 1.533/51, conforme decisão de fls. 29/30 dos autos. Essa liminar possibilitou que o impetrante se submetesse ao exame supletivo, onde obteve êxito e assegurou provisoriamente a matrícula do impetrante no curso de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz.

As apontadas autoridades coatoras prestaram informações e o Estado da Bahia interveio, como litisconsortes, às fls. 36/52, impugnando a concessão da assistência judiciária gratuita e suscitando as preliminares de ilegitimidade ad causam, de inépcia da inicial e de incompetência absoluta. No mérito, refutam os fatos e os fundamentos jurídicos insertos na inicial do mandamus, alegando inexistir direito líquido e certo do impetrante em face do comando legal previsto na Lei. nº. 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, onde se impõe como requisito para a obtenção do certificado de conclusão do 2º grau, através do curso supletivo, a idade mínima de 18 anos, requisito este que o impetrante não preenche, em face de seus 17 anos.

Instado a se manifestar, o ilustre representante do Ministério Público, valendo-se de judiciosas razões, invocou a supremacia da norma constitucional e o princípio da razoabilidade, opinando pelo deferimento do pedido, conforme se infere de seu parecer de fls. 54/65.

Os autos vieram-me conclusos para Julgamento. Nada a diligenciar ou a sanear.



É O RELATÓRIO.

DA FUNDAMENTAÇÃO E DECISÃO



QUESTÕES PRÉVIAS



Impõe-se, a “prima facie”, antes de qualquer análise sobre o mérito do pedido deduzido em Juízo, enfrentar as preliminares suscitadas pelo ilustre Procurador do Estado da Bahia em sua peça de defesa, na qualidade de litisconsorte passivo da presente relação processual.

A primeira delas trata de impugnação da ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA conferida ao impetrante, sob a alegação de que o mesmo não atende a nenhum dos requisitos previstos em lei para a concessão da assistência judiciária, mormente, no que toca ao fato de que não existe nos autos qualquer declaração firmada pelo autor de que é pobre, nem mesmo qualquer declaração de autoridade atestando a pobreza do impetrante, configurando assim, segundo o procurador, uma distorção das finalidades dos preceitos da lei nº 1.060/50, asseverando, com efeito, que o impetrante possui plena condição de arcar com as custas e honorários advocatícios sem prejuízo de seu sustento próprio.

Malgrado a impropriedade técnica de impugnar a assistência judiciária como preliminar de uma peça contestatória, quando deveria ser arguida em autos apartados, nos termos do § 2º do art. 4º da Lei nº 1.060/50, como bem ponderou o ilustre parquet, na condição de “custos legis”, vê-se que a alegação em seu aspecto material não resiste ao mais tênue exame, porquanto o princípio constitucional de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV da CF, foi consagrado pela doutrina da proteção integral, insculpida pela Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – , que assegura, como prioridade absoluta o acesso de crianças e adolescentes ao sistema de justiça, no sentido de resguardar os seus direitos fundamentais. Destarte, rechaçando qualquer interpretação restritiva ao comando normativo, o § 2º do art. 141 do ECA é de clareza solar ao estabelecer o seguinte, in verbis:

Art. 141 – É garantido o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos.

§ 1º A assistência judiciária gratuita será prestada aos que dela necessitarem, através de defensor público ou advogado nomeado.

§ 2º As ações judiciaiis da competencia da Justiça da Infancia e da -Juventude são isentas custas e emolumentos, ressalvada a hipótese de litigância de má-fé. (grifo nosso).



Desta forma, em face das razões jurídicas invocadas, afasto a impugnação da assistência judiciária gratuita suscitada nos autos, para assegurar ao impetrante o seu sagrado direito de acesso à justiça.

CARÊNCIA DE AÇÃO – ILEGITIMIDADE AD CAUSAM PASSIVA – Insurge-se o Procurador do Estado contra a legitimidade atribuída à Diretora Regional de Educação do Estado da Bahia – DIREC 7 – para figurar no pólo passivo da relação processual como autoridade impetrada, já que não detém poder decisório e está apenas autorizada a praticar simples atos executórios, que são emanados do poder decisório do Secretário de Educação do Estado da Bahia, que é, na verdade, a parte legítima para figurar no pólo passivo da presente demanda.

Como é sabido, e na esteira do escólio do saudoso insigne jurista, Hely Lopes Meireles, “considera-se autoridade coatora a pessoa que ordena ou omite a prática do ato impugnado e não o superior que o recomenda ou baixa normas para a sua execução” . Com efeito, infere-se que autoridade coatora, como verdadeiro representante processual, será o sujeito, no âmbito da administração pública ou de alguma função delegada, que pratica ato de autoridade, ou seja, quem ordena de forma concreta e específica a execução ou inexecução de um ato, capaz de ferir direito fundamental líquido e certo de alguém e desafiar o remédio constitucional do “mandamus”. Em verdade, a autoridade coatora, mercê de relativa autonomia de que desfruta, por exercer um cargo de direção e confiança, é, de fato, o sujeito que é responsável diretamente pela execução ou inexecução do ato impugnado. Transportando-se essas premissas para a hipótese em tela, vê-se que a Diretora Regional de Educação – Direc 07 –, Sra. Miralva Moitinho Sousa, é, sem dúvida, autoridade coatora no presente feito, pois utilizando o seu poder de decisão, impediu que o impetrante se submetesse normalmente aos exames do supletivo perante a Comissão Permanente de Avaliação, dispondo, assim, de poderes e meios não só para autorizar o ato, como para corrigir a ilegalidade do ato impugnado, tanto que foi a referida autoridade que acatou a determinação judicial exteriorizada através de liminar, pela qual o impetrante se submeteu e logrou aprovação no exame supletivo, permitindo-lhe assim, matricular-se no curso de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz, conforme se comprova pela leitura dos documentos que constam dos autos. Se assim é, a professora e diretora do Colégio Estadual de Itabuna se nos apresenta como mera executora de ordem emanada da Diretoria Regional de Educação, apontada como autoridade coatora, de sorte que não reconheço nos autos a sua condição de autoridade coatora. Nesse sentido é lapidar a lição do mestre Hely Lopes, senão vejamos:

Não há confundir, entretanto, o simples executor material do ato com a autoridade por ele responsável. Coator é a autoridade superior que pratica ou ordena concreta e especificamente a execução ou inexecução do ato impugnado, e responde pelas suas consequências administrativas; executor é o agente subordinado que cumpre a ordem por dever hierárquico, sem se responsabilizar por ela.



Como se depreende, a diretora do Colégio Estadual de Itabuna, por mero dever hierárquico, apenas cumpriu ordem da DIREC 7, não detendo qualquer poder de decisão que lhe conferisse a qualidade de autoridade coatora. Desta forma, aferida e identificada a autoridade coatora, que embora não represente judicialmente o órgão ou a pessoa jurídica a que se encontre vinculado, é o impetrado na ação de mandado de segurança, pois foi o ato – comissivo ou omissivo – do referido agente, no âmbito do complexo e impessoal espaço da administração pública ou função delegada, que desencadeou a impetração do writ. Nada impede, contrario sensu, é até recomendável, pelos efeitos patrimoniais da decisão final do mandamus, que o órgão ou pessoa jurídica que suportará esses efeitos, ingresse no feito, na condição de assistente ou litisconsorte, o que não exclui e nem substitui o impetrado na relação processual. No caso presente, o Estado da Bahia, no prazo concedido para a autoridade coatora oferecer informações, ingressou no feito na condição de litisconsorte, nos termos permitidos pelo art. 19 da Lei nº 1.533/51. O fato de o Secretário de Educação do Estado expedir atos normativos gerais e diretrizes orientadoras para seus inúmeros e diversos órgãos e agentes públicos em todo o território do Estado da Bahia, não o faz autoridade coatora no presente caso, pois é inerente á descentralização administrativa a delegação de funções decisórias a seus diversos agentes e órgãos, no sentido de não só viabilizar o serviço público, mas otimizá-lo e evitar a violação de direitos fundamentais do cidadão. O alegado art. 3º da Resolução CEE 138/2001 apenas ratifica o posicionamento expendido, de sorte que também afasto a preliminar de carência de ação por ilegitimidade ad causam passiva suscitada pelo ilustre Procurador do Estado da Bahia.

INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA - Cai por terra também a preliminar de incompetência absoluta levantada pelo Procurador do Estado sob o fundamento de que o foro privilegiado do Secretário de Educação do Estado deslocaria a competência para uma das Câmaras Cíveis Reunidas do E. Tribunal de Justiça da Bahia, em face das razões jurídicas já expendidas, que identifica a Diretora Regional de Educação do Estado – Direc 7 -, como autoridade coatora do presente mandamus. Sobreleva, entretanto, enfatizar, que a competência da Vara da Infância e Juventude se apóia no fato deste Juízo especializado ser o destinatário de todas as questões que envolvem direitos e interesses afetos á criança e adolescente contra atos ilegais ou abusivos de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, que lesem direito líquido e certo, a teor do que dispõe o §2º do art. 212 do ECA . Nesse sentido merece transcrição o seguinte aresto:

Juízo da Infância e da Juventude. Competência. A competência da Justiça da Infância e da Juventude está definida pelo art. 148 do ECA, a ela cumprindo conhecer de quaisquer ações civis fundadas em interesses afetos à criança e ao adolescente (inciso IV), independentemente de serem públicos ou privados os seus efeitos. A ela compete, portanto, conhecer de ação mandamental visando à proteção de adolescente contra ato dito abusivo de direção do colégio, mesmo particular, impeditivo do exercício do direito à educação. Provimento do recurso”. (TJRJ – Proc. 448/93; Campos de Goytacazes; Agravante: Ministério Público; Agravado: Diretor do Colégio E. Rel. Adolpfino A Ribeiro)



PRELIMINAR DE INÉPCIA DA INICIAL PELA AUSÊNCIA DE PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 9394/96 – Carece de qualquer embasamento jurídico a tese supra levantada pelo ilustre procurador, pois a premissa da declaração “incidenter tantum” de inconstitucionalidade é falsa, pois em nenhum momento o impetrante sustentou tal tese, apenas fundamentou a sua pretensão em princípio de hierarquia constitucional, voltado para a produção do direito em consonância com a própria LDB (Art. 4º, V) e do ECA (art. 54, V), o que traduz interpretação conforme a Constituição. Na verdade, mesmo que fosse o caso de se deparar com uma norma inconstitucional, o juiz, no âmbito do controle difuso da constitucionalidade, poderia reconhecer incidentalmente a norma inconstitucional, deixando de aplicá-la no caso concreto, sem que houvesse a necessidade de provocação da parte – exceção ao princípio da demanda -, em face do princípio da supremacia das normas constitucionais, razão pela qual afasto também a preliminar suscitada, por falta absoluta de embasamento jurídico.

O processo encontra-se em ordem, as partes devidamente representadas, aí incluídas a impetrada, o Estado da Bahia, na condição de litisconsorte, de sorte que não há qualquer litisconsorte necessário que deva ser citado, razão pela qual, indefiro o pedido formulado pelo Procurador do Estado para que seja efetivada a citação de eventuais litisconsortes necessários.

Superados os óbices de natureza formal à apreciação do meritum causae, passo a conhecer diretamente do pedido deduzido em Juízo. É consabido que a ação mandamental, em face de seu caráter instrumental e de realização do direito, exige prova pré-constituída para a comprovação do alegado direito líquido e certo lesado ou ameaçado de lesão, por ato ilegal ou abusivo de autoridade, não havendo, portanto, margem para a dilação probatória, distinguindo-se das demais ações em face da sumariedade de seu procedimento e por ser instrumento eficaz de “invalidação de atos de autoridade ou á supressão de efeitos de omissões administrativas capazes lesar direito individual ou coletivo, líquido e certo”, consoante escólio do jurista Hely Lopes Meireles .



MERITUM CAUSAE



O impetrante, em face de sua comprovada capacidade intelectual, obteve por dois anos consecutivos – 2006 e 2007 – o primeiro lugar em aproveitamento escolar na 8ª série e 1º ano do 2º grau no Colégio Militar de Itabuna, sendo agraciado com duas medalhas de ouro. No ano de 2008 manteve a mesma performance, mas acabou ficando em 2º lugar e recebendo a medalha de prata. Em Março de 2008, em face de seu desempenho intelectual, físico e disciplinar, foi promovido pela Direção do Colégio Militar à condição de aluno capitão, conforme documentação acostada aos autos. O impetrante possui um currículo escolar acima da média, demonstrando um excelente aproveitamento escolar, conforme se observa pelo documento de fls.19v. O impetrante, com apenas 17 anos de idade e como aluno originário de escola pública do ensino médio, submeteu-se ao concurso vestibular da Faculdade de Tecnologia e Ciências de Itabuna e da UESC, no curso de Direito e logrou aprovação em ambos os certames, ratificando a sua capacidade intelectual e emocional, principalmente, no que toca á aprovação no curso de direito da UESC, tido como um dos mais concorridos na Bahia.

Ocorre, entretanto, que o impetrante em que pese encontrar-se matriculado para cursar o 3º ano do 2º grau junto ao Colégio Militar, não teve autorização inicialmente para fazer os exames supletivos junto á Comissão Permanente do Colégio Estadual de Itabuna, em razão de não possuir 18 anos de idade, idade mínima exigida pela LDB e pelo art. 9º da Resolução CEE para submeter-se ao exame supletivo e, assim, satisfazer o requisito para matricular-se no curso de Direito. O impetrante, entretanto, amparado nos arts. 208, V da Constituição Federal, 56, V do ECA e Art. 4º da Lei nº 9.294/96 - LDB – e de conformidade com o critério capacidade, ingressou com o mandamus neste Juízo e obteve provimento liminar para submeter-se ao exame supletivo, tendo não só se submetido ao certame, mas logrado aprovação e se matriculado na UESC, onde se encontra atualmente cursando Direito.

Os impetrados se insurgiram contra a pretensão, asseverando que ela vai de encontro à Lei de nº 9.394/96 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o art. 9º da Resolução CEE, cujos dispositivos normativos exigem idade mínima de 18 anos para que o candidato, que apresente alguma defasagem série-idade, preste o exame supletivo do nível médio, estimulando assim a continuidade dos seus estudos em nível compatível com sua idade. Destarte, sustentam que a autoridade coatora pautou-se nos limites do princípio da legalidade, ao não permitir a realização do exame supletivo por parte do impetrante, não cometendo qualquer ilegalidade ou abuso de autoridade, capaz de ferir direito líquido e certo do impetrante e, assim, desafiar o writ. A autoridade apontada como coatora agiu cumprindo determinação administrativa e legal. Argumentam, com efeito, que não há direito líquido e certo, nos moldes do conceito tradicional consagrado pelo jurista Hely Lopes Meireles a ser amparado pelo mandamus, e que não cabe ao magistrado discutir sobre o acerto ou não da lei, já que se trata de uma ordem dirigida á vontade geral, não devendo ignorá-la por não concordar com seus preceitos. Valendo-se de lições de Ennecerus e Calmon de Passos, para justificar que o juiz deve aplicar cegamente a lei, transcreve que “deve caber ao legislador a tarefa de corrigir a injustiça através da derrogação da lei má, mas não ao juiz recusar-lhe a aplicação em nome de uma justiça ideal, enfatizando que o juiz não pode contrapor-se à ordem jurídica (lei).”

Com todas as vênias possíveis, discordo frontalmente das razões expendidas pelos impetrados para justificar a omissão impugnada. Ad primam, porquanto a ordem jurídica não se resume a lei infraconstitucional e nem o Direito se reduz tão-somente a lei, pois ele é muito mais do que isso, é uma ciência, cujo objeto que são os fatos jurídicos no sentido lato é “vivo” e se modifica de acordo com o tempo e o espaço, em face da dinamicidade da vida social exteriorizada pela multifacetariedade de seu contexto histórico e cultural, que determina a função criadora do Direito. Os fundamentos lançados pelos impetrados quando sustentam a santificação da lei e aplicação cega e acrítica da lei foram muito importantes num determinado período histórico – séc. XIX e boa parte do séc. XX -, principalmente, em face do positivismo manifestado, principalmente, pelo princípio da legalidade, que foi providencial para conter o arbítrio desmesurado do Estado totalitário. O juiz sempre julgou por silogismo e acreditava que havia apenas uma decisão correta, que estava dentro da lei. O juiz deveria buscar a vontade do legislador (função originalista) ou a vontade da lei. Esse pensamento engessado perdurou por muito tempo no Brasil, e foi através dele que se construiu o mito da neutralidade do julgador, como forma de retirar do juiz a função de intérprete ou julgador, reduzindo-o à condição de escravo ou aplicador cego da lei.

Na verdade, o juiz, com efeito, deve ser imparcial, não necessariamente neutro, pois não pode se distanciar de sua realidade cultural e nem evitar as influências que sua psique sofre no momento de sentenciar. Não deve, portanto, esconder-se no mito da neutralidade para deixar verdadeiramente de julgar, de decidir as questões relevantes que lhe são submetidas. É preciso retirar a venda da Deusa da Justiça, para que o juiz desça do mundo abstrato e dos conceitos normativistas em que se encastelou durante muito tempo e encontre, atrás das regras, o ser humano, sua realidade sócio-cultural, seus valores, colocando-se na posição do outro, entrando em contato com os princípios da igualdade material, razoabilidade, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, aspirando, assim, atingir o eqüitativo e o justo, através de um juízo valorativo, no âmbito dos limites da verdade processualmente possível. Imparcialidade nada tem a ver com neutralidade, ou seja, o juiz não precisa isolar-se da sua comunidade e de seus valores para decidir com imparcialidade. Contrario sensu, o juiz deve estar sintonizado com o seu tempo, contextualizado e atento às mutações sociais e culturais, utilizando o seu poder criativo e sentimento para realizar, em toda a sua plenitude, a justiça no caso concreto.

A profª. Lídia Prado, apoiada nos ensinamento de Renato Nalini, assevera o seguinte:

O magistrado apegado à dogmática do direito objetivo, convence-se das verdades axiomáticas e protege-se na couraça da ordem e da pretensa neutralidade. A parcela de poder a ele confiada e a possibilidade de decidir sobre o destino alheio, tornam-no prepotente: é reverenciado pelos advogados e servidores, temido pelas partes, distante de todos. Considerando-se predestinado e dono do futuro das partes no processo, revela-se desumano, mero técnico eficiente e pouco humilde, “esquecido da matéria-prima das demandas: as dores, sofrimentos e tragédias humanas.

O juiz, nesse contexto, sempre foi um operador ou “escravo” da lei¹ que desenvolvia seu raciocínio jurídico para construir uma sentença como um mero silogismo² mesmo que servisse de “pretexto para a imposição de injustiças legalizadas³".

Como se depreende, na cultura de devoção ao código, as leis não possuem as respostas para todos os fenômenos jurídicos, porque o “legislador” não é onisciente nem onipotente, como se os fatos passados, presentes e futuros, na sua integralidade, não pudessem lhe escapar ao controle, pelo menos em alguma particularidade. É de se ver que, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, o legislador não é completamente livre para fazer leis, mormente quando o conteúdo dessas leis venha ferir direitos fundamentais protegidos pela Constituição. O legislador tem limites e o juiz não mais pode ser um defensor intransigente da “regra” (lei), agindo como se fosse um mero autômato e técnico do positivismo jurídico, aplicando o princípio da subsunção de forma acrítica, descontextualizada, sem que possa analisar criticamente o conteúdo da norma e exercer suas preferências axiológicas, no sentido de que possa atingir a justiça em cada caso que lhe é submetido. O jurista Dalmo Dallari, na obra já citada, arremata:

Toda a sociedade humana necessita de normas, entretanto, estas não devem ser impostas arbitrariamente nem podem ser uniformes para todos os lugares e todas as épocas. Não basta a existência de leis, pois para que elas se justifiquem e sejam respeitadas, é preciso que tenham origem democrática e sejam instrumentos de justiça e de paz.

O novo paradigma exige a formatação de um novo juiz, sincronizado com o Direito aberto, cuja decisão, livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor das promessas do constituinte. Esse novo modelo exige um juiz que tenha consciência do seu novo papel social e político, que entregue a sua setentia com sentimento, utilizando a sensibilidade e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando, assim, dos conceitos abstratos e da lógica tradicional, transformando-se, conforme o pensamento do jurista Renato Nallini, “num profissional atualizado, um solucionador de conflitos, polivalente e intérprete da vontade da Constituição”. Para alcançar o sentido de tais afirmações, faz-se imprescindível procedermos a uma incursão histórica e crítica dos métodos interpretativos, a fim de que possamos oportunamente nos posicionar nesse caso concreto.

A rigor, a doutrina e os órgãos judiciais pátrios, com algumas variações, sempre adotaram os métodos tradicionais de interpretação da escola de Savigny que são o gramatical, histórica, sistemática e teleológica. Assim, dentro do modelo dogmático-positivista da escola Coimbrã, sempre se utilizou desses métodos com o paradigma da subsunção e do silogismo, pelo qual o juiz considerava a lei como premissa maior, os fatos como a premissa menor e a sentença como a conclusão. O papel do juiz, segundo Luis Roberto Barroso, consistia, “tão-somente, em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto”.

Nessa perspectiva, utilizando-se o paradigma do silogismo, o juiz simplesmente na interpretação gramatical se contentava em extrair o conteúdo semântico das palavras, sem se preocupar com o contexto ou com a possibilidade de uma decisão justa no caso concreto. Por esse método, o juiz permanecia no mundo abstrato e frio do texto da lei. O método da interpretação histórica consistia em buscar identificar a mens legislatoris, ou seja, as tendências, o contexto histórico que animou a vontade do legislador. Em contraposição a esse método (subjetivista), nasceu o método teleológico ou finalístico, afirmando que, uma vez em vigor a lei, desprendia-se do seu contexto histórico que a inspirou e por isso o importante era identificar a mens legis. Desta forma, em face deste método, as normas devem ser aplicadas atendendo ao seu espírito e a sua finalidade. Pelo método da interpretação sistemática, segundo Luis Roberto Barroso, deve-se entender que a norma não pode ser analisada isoladamente, mas num sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente, como fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Há consenso na doutrina que esses diferentes métodos interpretativos não se trabalham mais de forma isolada, mas interagindo-se uns com outros. Por esse modelo, que ainda vai continuar a existir no Brasil para os casos mais simples, o juiz, na visão do jurista Dalmo Dallari, era um mero aplicador da lei, “preso à forma e proibido de analisar criticamente os textos legais para buscar a aplicação mais justa, conforme os valores sociais vigentes”, reduzindo-se os juízes em “condição de serviçais passivos dos “fabricantes de leis” .

CONCEITO TRADICIONAL DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO

A expressão “ direito líquido e certo” foi objeto de muitas controvérsias na doutrina desde a Constituição de 1934, quando a expressão que havia no texto era “incontestável”, cujo significado traduzia um direito que não ensejasse dúvidas ou maiores questionamentos, sob o ponto de vista exclusivamente jurídico. Todavia, mais tarde, quando o direito incontestável transmudou-se para “direito liquido”, muitas críticas foram feitas ao conceito, que restringia o seu alcance a demandas muito simples e esbarrava no princípio iuria novit cúria, segundo o qual sustenta que é dever do magistrado conhecer e aplicar o Direito, por mais complexo que ele seja, nascendo daí a súmula nº 625 do STF, que determinava que não se poderia negar a segurança por mais intrincada que fosse a questão de direito suscitada nos autos.

Desta forma, a doutrina então transferiu para os fatos deduzidos em Juízo o conceito verdadeiramente de “Direito Líquido e Certo”. Não obstante, os tribunais pátrios e a doutrina continuaram com a idéia de que o juiz, diante do caso concreto, deveria, por mero silogismo, vincular o direito líquido e certo, extraído da realidade fática e comprovado pela prova pré-constituída, a um dispositivo infraconstitucional que não sofresse maiores discussões, para só então garantir a segurança pleiteada pelo writ. Com efeito, cristalizou-se o tradicional conceito do saudoso mestre Hely Lopes Meireles vazado nos seguintes termos:

Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração (Hely Lopes Meireles, Mandado de Segurança, 15 ed; págs 25/26).

Como se depreende, pelo teor do referido conceito, já carcomido pelo tempo, vê-se que, dentro do paradigma do silogismo e com a utilização dos métodos tradicionais de interpretação, o juiz deveria buscar o direito incontroverso, induvidoso, líquido e certo, dentro do texto frio da lei infraconstitucional. A comprovação deveria ser com prova pré-constituída. Fora da lei não haveria outra solução. Só haveria uma decisão certa a ser extraída da lei pelo juiz escravo e aplicador acrítico da lei.





PÓS-POSITIVISMO

Consiste num sistema filosófico que reconhece que o direito não se esgota na lei, reaproxima a ética do direito, e enfatiza a centralidade dos direitos humanos fundamentais, atribuindo normatividade aos princípios constitucionais. A Constituição deixa de ser uma carta política de boas intenções, para ser um documento jurídico. Destarte, a Constituição sai da periferia da ordem jurídica e passa a ser o grande filtro, o centro de supremacia axiológica de todo o ordenamento jurídico, de sorte que qualquer norma infraconstitucional deve estar de plena conformidade com a norma constitucional, e os juízes, saindo dos métodos tradicionais de interpretação, passam a ser verdadeiramente julgadores e a aplicar a técnica da interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme auslegung). O eminente jurista Luis Roberto Barroso em sua obra “Temas de Direito Constitucional”. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 509/510, preleciona categoricamente:

A partir da passagem da Constituição para o centro , passou ela a funcionar como a lente, o filtro através do qual se deve olhar para o Direito de uma maneira geral. Este fenômeno é referido por alguns autores como filtragem constitucional: a Constituição condiciona a interpretação de todas as normas do sistema jurídico.

Toda interpretação é interpretação constitucional. Neste universo, toda interpretação é interpretação constitucional. Interpreta-se e aplica-se a Constituição em qualquer operação de realização de Direito, de maneira direta ou indireta. Aplica-se a Constituição: a) diretamente, quando alguma pretensão se funda em dispositivo do próprio texto constitucional; b) indiretamente, quando algum pretensão se funda em dispositivo do direito infraconstitucional, por duas razões: na aplicação do direito infraconstitucional sempre haverá embutida uma operação de controle incidental de constitucionalidade; o sentido e o alcance da norma constitucional deverá ser atribuído para realizar os valores e fins constitucionais.

Nos meandros desse novo paradigma, percebe-se de logo, que os métodos tradicionais da subsunção, adequados para resolver inúmeros conflitos de interesses, são insuficientes e absolutamente insatisfatórios para resolver determinadas questões que exigem interpretação e aplicação da Constituição, como é o caso dos autos. Logo, em face da supremacia axiológica e material da norma constitucional, impõe-se que o juiz proceda à técnica de ponderação de princípios e regras, voltada para a realização do valor e da finalidade da norma constitucional. Nesse sentido, merecem também transcrição os ensinamentos dos juristas Celso Ribeiro Bastos e Willis Santiago Guerra Filho, como se pode observar da leitura dos seguintes textos:

O constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (in Curso de Direito Constitucional – 20. ed. – São Paulo: Saraiva, 1999) discorrendo sobre a interpretação constitucional, preleciona:

Temos, pois, por força deste princípio de interpretação conforme a Constituição, que se deve, dentro do possível, elastecer ou restringir a norma de modo a torná-la harmônica com a Lei Maior...(..) É da essência da Constituição o promanar de um poder constituinte. Assim sendo, o seu Texto é dotado de inicialidade em face de toda a ordem jurídica que se lhe segue. A Constituição fundamenta os demais níveis hierárquicos que compõem o ordenamento jurídico. Assim fazendo, ela muito naturalmente subordina estes níveis inferiores a uma interpretação que dê a justifica primazia à lei maior.



O Constitucionalista Willis Santiago Guerra Filho ( In processo Consitutcional e Direitos Fundamentais – São Paulo; Celso Bastos Editor, 2001) é mais preciso e profundo ao explicitar o seguinte:

A intelecção do texto constitucional também se dá, em um primeiro momento, recorrendo aos tradicionais métodos filológico, sistemático, teleológico etc. Apenas haverá de ir além, empregar outros recursos argumentativos, quando o emprego do instrumental clássico da hermenêutica jurídica não se obtenha como resultado da operação exegética uma interpretação conforme à Constituição, a verfassungskonforme Auslegung dos Alemães, que é uma interpretação de acordo com as opções valorativas básicas expressas no texto constitucional.

Nesse diapasão, é de se indagar: se a regra jurídica que disciplina essa situação jurídica é insuficiente para solucionar adequadamente a questão posta em Juízo por que não aplicar os princípios constitucionais – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um – Art. 208, V da CF e o Princípio da proteção integral da criança e adolescente – Art. 227 da CF, 54,V do ECA e Art. 4º, V da LDB que contemplaria a situação? Não se vislumbra qualquer óbice à aplicação dos princípios constitucionais, os quais apesar de possuírem uma grau maior de abstração em relação à lei, não deixam de ser normas jurídicas qualificadas por representarem um valor escolhido pelo constituinte.





PRINCÍPIOS E REGRAS – NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS.

Impõe-se indagar, então, o que é princípio e regra e qual a distinção que existe entre as duas espécies de normas jurídicas. Consoante a lição de Celso Antônio Bandeira de Melo, o conceito consagrado de princípio é o seguinte:

Princípio é o mandamento nuclear de um sistema , verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental de que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência , exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico.

O jurista Luis Roberto Barroso, com bastante maestria, explicita o significado e o alcance das expressões “princípios” e “regras”, operando-se com bastante clareza a sua distinção, senão vejamos:

A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral e as normas constitucionais em particular enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Antes de uma elaboração mais sofisticada da teoria dos princípios, a distinção entre eles fundava-se, sobretudo, no critério de generalidade. Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações... Nos últimos anos, todavia, ganhou curso generalizado uma distinção qualitativa ou estrutural entre regra e princípio, que veio a se tornar um dos pilares da moderna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização de direitos fundamentais desempenham um papel central... Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção... A aplicação da regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese do conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer. Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado de situações. Em uma ordem democrática, os princípios, freqüentemente entram em tensão dialética, apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá ocorrer mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo da cada um, na medida do possível. Sua aplicação, portanto, não será no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato.

Como se infere, os princípios e as regras são normas jurídicas, e como tais possuem imperatividade, normatividade e, portanto, podem embasar uma pretensão de direito material e gerar direitos subjetivos. Se a regra descreve uma determinada situação fática sobre a qual recairá o comando abstrato do texto normativo, o princípio, por sua vez, em face do seu maior grau de abstração, expressa um valor. Se este valor tiver sede constitucional e colidir, ainda que parcialmente com alguma regra extraída do ordenamento infraconstitucional, evidentemente, que o principio, em face sua primazia e supremacia axiológica, devem preponderar sobre a regra para realizar a vontade da norma constitucional. Evidentemente, que essa interpretação que o julgador faz não invalidade a regra, que continuará válida para dirimir a generalidade dos casos, onde caiba a interpretação tradicional por silogismo. Apenas, neste caso concreto, em face das circunstâncias especiais, peculiares mesmo que cercam o fato, o juiz afasta a sua aplicabilidade (regra), em face da supremacia do princípio constitucional. Aqui, como já afirmado alhures, não existe apenas uma decisão certa, no sistema do tudo ou nada, mas opção axiológica que o julgador faz para buscar a decisão que se apresenta como a mais adequada e justa. O jurista e ministro do STF, Eros Grau, em sua magnífica obra intitulada Ensaio e Discurso sobre Interpretação/aplicação do Direito, ratificando esse entendimento com sutileza ímpar, preleciona:

O momento de atribuição de peso maior a um determinado princípio é extremamente rico, porque nele – desde que se esteja a perseguir a definição de uma das soluções corretas, no elenco das possíveis soluções corretas a que a interpretação jurídica pode conduzir – pondera-se o direito em seu todo, desde o texto da Constituição aos mais singelos atos normativos, como totalidade. Variáveis múltiplas, de fato – as circunstâncias peculiares do problema considerado – e jurídicas – lingüística, sistêmicas e funcionais –, são então descortinadas... A interpretação do direito deve ser dominada pela força dos princípios; são eles que conferem coerência ao sistema.

Transportando-se essas premissas para hipótese vertente, podemos afirmar que estamos diante de uma circunstância peculiar, qual seja: o impetrante, em que pese possuir apenas 17 anos de idade, comprovou à sociedade e de forma irretorquível a sua capacidade intelectual e emocional, para ter acesso aos níveis superiores de ensino, pesquisa e extensão. Trata-se de aluno que cursou o 1° grau bem como o 1º e 2º ano do ensino médio em escola pública e que, sem o auxílio hoje quase que indispensável do “cursinho pré-vestibular” logrou aprovação em dois concursos vestibulares do curso de Direito, um na Faculdade de Tecnologia e Ciências de Itabuna e outro na Universidade Estadual de Santa Cruz, nesta última considerado um dos certames mais difíceis da Bahia. A aprovação no vestibular veio corroborar o seu excelente currículo, onde apresenta aproveitamento acima da média, sendo agraciado por duas vezes com a medalha de ouro do Colégio Militar de Itabuna, por ser o primeiro colocado na 8ª série e no 1º ano do 2º grau. Logo depois, confirmando o seu excelente aproveitamento escolar, obteve a medalha de prata no ano de 2008, ficando em 2º lugar no 2º ano do 2º grau, conforme se comprova pelo documento acostado às fl. 16 dos autos. Ainda, em virtude de seu excelente desempenho intelectual, físico e disciplinar, foi promovido à graduação de ALUNO CAPITÃO, conforme se comprova pelo documento de fl.17. O seu currículo do ensino médio é acima da média, pois não possui média inferior a 8,0 e maioria das médias é superior a 9,0, o que comprova indubitavelmente a sua capacidade intelectual. O impetrante, embora matriculado no 3º ano do 2º grau, não pôde no primeiro momento submeter-se ao exame supletivo do 2º grau, o que lhe permitiria matricular-se no curso superior de direito, em face do critério etário, ou seja, por possuir apenas 17 anos, e desta forma, em face da lei (regra) , ou seja, o inc. II do § 1º do art. 38 da Lei nº 9.394/96, só permite a realização do exame para jovens a partir de 18 anos de idade. O Art. 9º da Resolução CEE nº 138/2001 também reproduz a mesma regra, só permitindo a realização do exame para aqueles jovens que tiverem idade igual ou superior a 18 anos. Indagar-se-á: No caso sub judice, em face da peculiaridade do caso, caracterizado pela comprovada capacidade intelectual e emocional do impetrante, o que deve prevalecer: a regra de uma lei infraconstitucional que foi erigida para a generalidade dos casos, pela qual é estabelecido o critério etário para a realização do exame supletivo, ou o princípio constitucional insculpido no art. 208, V da Constituição Federal, que estabelece que “é dever do Estado assegurar o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um? ou seja, no âmbito da ponderação de princípios, o que deve prevalecer neste caso? o critério etário ou o critério capacidade? o que é mais razoável? fechar as portas do ensino superior numa Universidade Pública para um aluno de escola pública, que demonstrou sua capacidade intelectual e emocional durante a sua vida acadêmica, logrando aprovação no dificílimo curso de Direito da UESC, em face de contar apenas com 17 anos ou assegurar o seu acesso ao nível superior, por ser absolutamente desnecessário cursar o ensino médio para comprovar a sua capacidade, já demonstrada? Na história encontramos exemplos de ilustres baianos, como o jurista, político e escritor João Mangabeira, que concluiu seu curso de Direito aos 17 anos de idade e se tornou um dos grandes vultos intelectuais do país, sendo intrépido advogado, deputado Federal, Senador, Ministro das Minas e Energia e Ministro da Justiça, além de escritor. Corroborando essa assertiva, não poderia esquecer o exemplo do mais ilustre dos baianos, Rui Barbosa, que em face sua comprovada capacidade intelectual , logo que concluiu o ginásio aos 15 anos, matriculou-se no curso Direito na Faculdade de Direito do Recife aos 16 anos de idade e se tornou o nosso “Águia de Haia”, tendo se revelado ao longo dos anos, brilhante advogado, político, jurista e uma das inteligências mais vivas e respeitáveis que já desfilou por este país. Na verdade o impetrante, por força da liminar concedida por este Juízo, submeteu-se e foi aprovado no exame supletivo do 2º grau, o que lhe permitiu matricular e frequentar o curso de Direito da UESC. Fechar-lhe as portas do ensino superior será jogá-lo no campo espinhoso das incertezas, pois, a vida é dinâmica e os métodos avaliativos também mudam, e não se sabe se no futuro o impetrante terá a certeza de galgar o ensino superior.

Esse é o contexto, que transforma este caso concreto em um caso peculiar, pois o impetrante comprovou, por seu próprio mérito, a sua capacidade de ingressar no curso de Direito da UESC, concretizando-se, assim, o princípio constitucional inserto no art. 208, V da e art. 227 da CF, que assegura que é dever do Poder Público, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, dentre eles, o direito sagrado à educação. Se naquela época, onde as pessoas não tinham acesso á informação, João Mangabeira e Rui Barbosa, em virtude de sua capacidade intelectual, ingressaram no ensino superior com menos de 17 anos de idade, indagar-se-á: por que hoje, o impetrante, em face de sua capacidade intelectual robustamente demonstrada, não pode ingressar no ensino superior, quando se sabe que em face do fenômeno da globalização do conhecimento concretizado pela internet e os demais meios de comunicação, o jovem de hoje é muito mais bem informado e maduro do que o jovem do século passado? Não há justificativa plausível para negar esse direito líquido e certo do impetrante, pois qualquer negativa de lhe assegurar o acesso ao nível superior de ensino se esbarra em normas de hierarquia constitucional. É de se ver que a norma constitucional está reproduzida no art. 54, V do ECA e no próprio art. 24, V, “c” da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o que consagra o entendimento de que a norma jurídica aplicada ao caso não está só no texto frio da lei, mas ela se concretiza com a sua aplicação no contexto da realidade fática. Esse é o entendimento consagrado pelo notável ministro Eros Grau em sua obra já citada, quando preleciona:

Ademais, cumpre desde logo anotar que a norma não é apenas o texto normativo nela transformado, pois ela resulta também do conúbio entre o texto e os fatos (a realidade)... As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo, quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam de interpretação e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem...

A seguir, arremata categoricamente:

A norma é produzida pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprende do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser)... Por isso inexistem soluções previamente estruturadas, como produtos semi-industrializados em uma linha de montagem, para os problemas jurídicos.

O trabalho jurídico de construção da norma aplicável em cada caso é trabalho artesanal. Cada solução jurídica, para cada caso, será sempre, renovadamente, uma nova solução ... a interpretação – que é interpetação/aplicação – vai do universal ao singular, através do particular, do transcendente ao contingente; opera-se a inserção das leis (do Direito) no mundo do ser (mundo da vida)... O intérprete atua segundo a lógica da preferência, e não conforme a lógica da conseqüência (Comparato): a lógica jurídica é a da escolha entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada.

Neste contexto de ponderação de princípios e regras, e partindo da compreensão do conteúdo do princípio normativo contido no art. 208, V da Constituição Federal, portanto, de status constitucional, pelo qual ficou estabelecido que é dever do Estado assegurar o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um, entendo que o valor contido no princípio normativo referido só será concretizado neste caso em particular, e assim respeitada a vontade constitucional, se ao impetrante for reconhecido pelo Estado que ele está apto a ingressar no nível superior, em virtude de sua comprovada capacidade intelectual, chancelando o exame supletivo já realizado por força da liminar concedida por este Juízo e permitindo que continue a freqüentar regulamente o curso de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz, pois o critério etário estabelecido pela regra – Art. 38 da Lei nº 9.394/96 e art. 9º da Resolução CEE nº 138/2001 – que continua válido e destinado à generalidade dos casos -, deve ter a sua aplicabilidade afastada neste caso concreto, em face da primazia axiológica do princípio Constitucional descrito no art. 208, V da CF, que assegura o acesso do impetrante ao nível superior de ensino, em virtude sua comprovada capacidade intelectual, fazendo assim, preponderar o critério capacidade em detrimento do critério etário previsto na regra. Esta é a solução mais justa e adequada para este caso, que foi extraída em decorrência do casamento celebrado entre o texto normativo descrito na Constituição e a realidade do “mundo do ser”, onde ficou comprovada à saciedade a capacidade intelectual do impetrante em cursar uma Faculdade de Direito, máxime numa Universidade Pública. Com efeito, o currículo singular do impetrante, o seu aproveitamento escolar acima da média, a sua aprovação no exame supletivo do 2º grau, bem como a sua aprovação nos concursos vestibulares para o curso de Direito da Faculdade de Tecnologia e Ciências de Itabuna e da Universidade Estadual de Santa Cruz configuram uma situação peculiar que reclama a aplicação do princípio constitucional descrito no art. 208, V da CF, pois a opção valorativa revela ou desnuda a vontade da norma constitucional, garantindo, de logo, o acesso ao ensino superior. Pensar de forma diferente e deixar preponderar o critério etário, seria ferir de morte o princípio constitucional já referido.

NOVA LEITURA DO DIREITO LÍQUIDO E CERTO

Essa é a nova leitura que se faz, numa interpretação conforme à Constituição, do direito líquido e certo a ser amparado no mandamus, não mais extraído do texto frio da regra (lei infraconstitucional), através da interpretação tradicional por silogismo, no sistema do tudo ou nada, mas sim extraído do ordenamento jurídico, precisamente das normas constitucionais, no âmbito de um sistema aberto de princípios e regras, numa interpretação de ponderação, na qual não se busca a única solução correta, mas dentre as várias interpretações possíveis pelo ordenamento jurídico, aquela que seja a mais adequada e justa, e que seja capaz de atender à vontade da norma constitucional. Nesse caso, em particular, o direito líquido e certo do impetrante está calcado na sua capacidade intelectual, comprovada pelas provas documentais pré-constituídas (fls.16, 17, 18, 19, e fls. 21 a 26) e que lhe assegura, in casu, o direito de submeter-se ao exame supletivo e assim, em face da aprovação no referido certame, ter acesso ao curso de Direito da UESC, onde logrou aprovação. Este é o seu direito líquido e certo, que o Estado deve assegurar, com absoluta prioridade, nos termos do arts. 208, V, 227 da CF c/c os arts. 54, V do ECA e 4º , V da Lei de nº 9.394/96.

Nesse sentido, o jurista Eduardo Sodré na sua obra “Ações Constitucionais” preleciona: “Direito líquido e certo é aquele titularizado pelo impetrante ambasado em situação fática perfeitamente delineada e comprovada de plano por meio de prova pré-constituída”.

Como se depreende o “direito líquido e certo” do impetrante deve ser aquele que está provado de plano, que não exige dilação probatória para o seu delinde, já que a prova pré-constituída delineia a situação fática devidamente comprovada para ser protegida pela norma de natureza constitucional ou infraconstitucional, presente no ordenamento jurídico. No caso em comento, não há necessidade de dilação probatória para comprovar a capacidade intelectual do impetrante, pois ela está demonstrada indubitavelmente nos autos, pelas provas documentais – pré-constituídas – constantes dos autos.

O ato ilegal e abusivo da impetrada está em negar, desmotivadamente, o pleito do impetrante, recusando-lhe simplesmente o direito de submeter-se ao exame supletivo. Cada caso é um caso, e caberia à Comissão de Avaliação Permanente, subordinada à impetrada, apreciar a verificação de aprendizagem, ou seja, a capacidade intelectual do impetrante e assim decidir fundamentadamente. Negar ou recusar um pleito sem qualquer motivação, por si só já constitui um ato arbitrário e lesivo ao interesse do cidadão, a ser amparado pelo mandamus.

O novel e culto Promotor de Justiça substituto da Vara da Infância de Itabuna, Dr. Maurício Fontes, em lúcido e consistente parecer, reconheceu a supremacia da norma constitucional, em virtude da força normativa dos princípios, asseverando que o impetrante comprovou, de forma irretorquível, a sua capacidade intelectual e que a negativa de progressão aos níveis superiores de ensino implicará certamente na vulneração de seu direito líquido e certo assegurado pelo art. 208, V da CF. Finalmente, após pugnar pelo afastamento de todas as preliminares e ilustrando seu parecer com precioso repertório jurisprudencial, opinou pela concessão da segurança pleiteada, valendo-se, inclusive, dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Reforçando essa assertiva, os Tribunais pátrios vêm se posicionando nesse sentido, consoante se infere pela leitura dos vários arestos abaixo colacionados:

Duplo grau obrigatório de jurisdição. Mandado de segurança objetivando a inscrição de menor em curso supletivo para conclusão do ensino médio. Concessão da ordem. Impetrante aprovada em vestibular da Faculdade de Farmácia na UFRJ, não se mostrando razoável negar-lhe oportunidade de concluir o ensino médio através de curso supletivo. Direito à educação, incluindo acesso aos níveis mais elevados de ensino, assegurado nos arts. 208, V e 227 da Constituição Federal. Sentença que deu correta solução à ação mandamental, confirmada em reexame necessário. (TJRJ, oitava Câmara Cível, Rel. Des. Ana Maria Oliveira, J. 08.07.08).

Mandado de Segurança. Ensino Supletivo. Menor de dezoito anos. Aprovação em vestibular. Pedido de Liminar. Submissão ao Exame Final do Curso de Ensino supletivo com vistas a obtenção do Certificado de Conclusão do Ensino Médio. Agravo de Instrumento.

A jurisprudência deste Tribunal é no sentido de que os alunos menores de dezoito anos que, por haver elevada capacidade intelectual, são aprovados no vestibular antes de concluir o ensino médio, têm o direito de cursar o ensino supletivo, a fim de acelerar seus estudos com vistas à obtenção de certificado para o ingresso antecipado no ensino superior. (TJDF. 1ª Turma Cível, Rel. Des. Natanael Caetano, pub. DJU 13.04.09).

Mandado de Segurança. Exame Supletivo de 2º grau. Menor de 18 anos. Possibilidade de exame especial. Aprovação em curso superior. Exegese do art. 208, V da CF . Remessa Conhecida. Sentença de 1º grau mantida. Apelo Voluntário improvido.

Em conformidade com o art. 208, V da CF, os exames em nível de 2º grau de que trata a lei 9.394/96 foram estendidos aos adolescentes quando aprovados em curso superior, cuja capacidade mental supera a idade biológica. Remessa necessária conhecida, mantida a douta sentença. Apelo voluntário a que se nega provimento. (Remessa ex officio nº 14009002529 – Des. Rel. Nivaldo Xavier Valinho . Des. Revisor: Rômulo – julgado em 08/05/2001 e lido em 29/05/2001. Ementário de Jurisprudência Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo – 1º e 2º semestres de 2001. nº 01 a 12 p. 30. Edição 2001).

Posto isso, julgo procedente o pedido, para conceder ao impetrante K R L, devidamente qualificado nos autos, a segurança pleiteada, definitivamente, ratificando os termos da liminar concedida por este Juízo, para reconhecer o seu direito líquido e certo de submeter-se, como submetido já foi, ao exame supletivo do ensino médio junto à Comissão Permanente de Avaliação instalada no Colégio Estadual de Itabuna e obter, de forma antecipada, em face da aprovação, o Certificado definitivo de Conclusão do 2º Grau.

Sem custas, ex lege do disposto no art. § 2º do art. 141 do ECA, bem como não há condenação em honorários advocatícios, conforme Enunciado 105 do STJ.

Esta sentença será submetida ao reexame necessário, por força do disposto no art. 475 do CPC, razão pela qual, determino que após o decurso do prazo para o recurso voluntário subam-se os autos ao E. Tribunal de Justiça com as cautelas e homenagens de estilo.

Itabuna-BA, 08 de junho de 2009.





Bel. Marcos Antônio Santos Bandeira

JUIZ DA VIJ DE ITABUNA

















¹ Por força dessas concepções, o juiz passou na Europa continental o papel que já lhe era dado na Inglaterra no começo do Século XVII, devendo ser um aplicador da lei, preso à forma e proibido de analisar criticamente os textos legais para buscar a aplicação mais justa, conforme os valores sociais vigentes. Foi por esse caminho que se chegou ao juiz “escravo da Lei”, expressão absurda incompatível com a condição de juiz e que torna irrelevante o valor moral ou intelectual do magistrado e serviu, como ainda tem servido, para reduzir os juízes à condição de serviçais passivos dos “fabricantes de leis”. (DALLARI, 2006, p. 11)

² Barroso (2005, p. 6-7) explicita: “nessa perspectiva”, a interpretação jurídica consiste em um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto”.









.





















Nenhum comentário:

Postar um comentário