segunda-feira, 28 de setembro de 2009

OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL: Juiz espectador ou juiz protagonista?

OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL: Juiz espectador ou juiz protagonista?

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 30-06-2008

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OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL: Juiz espectador ou juiz protagonista?

Marcos Antonio Santos Bandeira[1]


INTRODUÇÃO

O juiz, no âmbito do sistema acusatório, modelo adotado pelo Estado Democrático de Direito, vem sendo considerado pela maioria esmagadora da doutrina nacional, como “mero espectador” do processo penal, despontando assim como um sujeito inerte, acrítico, desinteressado, imparcial, que por essa razão não deve produzir prova de qualquer espécie, mesmo que seja de forma complementar às partes, ficando, na verdade, a mercê da iniciativa probatória das partes.

Nessa perspectiva exsurge um novo olhar, que não fere o sistema acusatório e desmistifica o “mito da verdade real”, transformando o juiz num verdadeiro protagonista do processo penal, sem que leve a pecha de “juiz-inquisidor”. Com efeito, quebra-se o paradigma da neutralidade, preserva-se a sua imparcialidade e o coloca numa situação de sujeito interessado numa decisão processualmente justa.

O presente trabalho sustenta a tese de que o juiz, desde que não venha substituir a função que é inerente ao Ministério Público, deve produzir provas no processo penal de forma complementar às partes, toda vez que estiver em dúvidas ou tiver necessidade de esclarecer ponto relevante para o deslinde do processo, seja pela insuficiência das provas produzidas pelas partes, seja por qualquer outro motivo, no sentido de buscar eticamente e com a observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a decisão que se afigurar justa para aquele caso concreto que está sendo submetido a julgamento.


JUIZ ESPECTADOR DO PROCESSO

O renomado jurista Aury Lopes Jr. sustenta que o juiz no sistema acusatório deverá ser um garantidor dos direitos do acusado, devendo ser um mero espectador do processo, alheio ou indiferente ao resultado justo do processo. Assevera, com efeito, o notável jurista:

Na fase processual, a gestão da prova deve estar nas mãos das partes, assegurando-se que o juiz não terá iniciativa probatória, mantendo-se assim supra-partes e preservando sua imparcialidade. Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios (como o famigerado art. 156 do CPP) devem ser expurgados do ordenamento ou, ao menos, objeto de leitura restritiva e cautelosa, pois é patente a quebra da igualdade, do contraditório e da própria estrutura dialética do processo. O sistema acusatório exige um juiz espectador, e não um juiz ator (típico do modelo inquisitório).

Essa tese segue a linha do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[1], que identifica o sistema acusatório na medida em que a gestão da prova estiver nas mãos das partes, sustentando assim , que nosso sistema é inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz ator. Os juristas Rangel (2003) e Prado (2005)[2] engrossam a fileira dos que sustentam que o juiz não deve ter iniciativa probatória, limitando-se a ser um mero espectador no processo penal, sob pena de violar o sistema acusatório e comprometer a sua imparcialidade.

Esta angústia me acompanha desde que ouvi calado num Congresso de Direito Processual Penal o eminente jurista Aury Lopes sustentar que o juiz no processo penal deverá ficar inerte, um espectador, pois o juiz inquisidor mata o bom julgador. Não me conformei com tal assertiva, pois a minha experiência profissional como juiz criminal garantista me implorava para refutar a pecha de “boneco”, marionete e sujeito desinteressado. Que juiz é este que se conforma tão-somente com as provas trazidas aos autos pelas partes? Que juiz é este que é indiferente ao resultado justo do processo? Que juiz é este que diante da fragilidade das provas trazidas pelas partes, não se interessa em produzir outras para fortalecer ou construir o seu juízo de convencimento? Que juiz é este que se preocupa tão-somente com aplicação positivista do processo, no seu aspecto formal, sem se preocupar se a decisão se aproximou ou não do valor justiça? Na verdade, como se infere, a “justiça” da decisão estará nas mãos das partes, como na famigerada verdade formal do processo civil, ou seja, o sucesso da demanda por uma das partes estará na razão direta da destreza e competência no manuseio das armas (provas), ficando o juiz-marionete, na condição de Poncio Pilatos, lavando as mãos, mesmo sabendo que a decisão construída exclusivamente pelas partes e que ele exteriorizará através da sentença foi manifestamente injusta, condenando-se um provável inocente ou inocentando um possível culpado. Esta decisão certamente não interessa a sociedade nem tampouco ao Estado Democrático de Direito. Não se pode cometer injustiça em nome da segurança jurídica e da pureza do sistema acusatório. É necessário que a prestação jurisdicional convença aos jurisdicionados para que se possa falar em pacificação social, um dos escopos da jurisdição. É possível que a sombra do juiz-inquisidor da idade média e que perambulou em nosso país por um bom tempo nos regimes ditatoriais tenha atemorizado o nosso meio acadêmico, a ponto de querer afastá-lo definitivamente da gestão das provas e reduzi-lo a um boneco inerte e alienado, preocupado apenas em guiar o procedimento judicial para no final publicar a decisão construída exclusivamente pelas partes. Um juiz preso ao mundo dos conceitos e alheio completamente ao mundo dos fatos. Não! O interesse público de se obter uma decisão processualmente justa, no âmbito de um processo dialético, ético e garantístico, deve preponderar sobre os interesses das partes. Os valores “justiça”, jus libertatis, honra e da consciência social de evitar sentença injustas, devem sobrepujar o interesse legalista da acusação ou da defesa. Importante salientar que o notável jurista Reale (1984), nos idos de 1945 já defendia a teoria trideminsional do direito ao asseverar o seguinte, “in verbis”:

Todo Direito representa uma apreciação de fatos e de atos segundo uma tábua de valores que o homem deseja alcançar tendo em vista o valor fundamental do justo. Segundo a concepção culturalista, o Direito é síntese ou integração de ser e de dever ser; é fato e é norma, porque é o fato integrado na norma exigida pelo valor a realizar.

O direito processual penal não pode ser confundido com o direito processual civil, o qual é caracterizado como processo das partes e pela incidência do princípio dispositivo. Diferentemente, o processo penal lida com a forma pela qual se permite a intervenção mais drástica do Estado na vida de um ser humano, podendo, inclusive, atingir o seu status libertatis. Este instrumento de garantia – o processo – está na direção de um magistrado, que tem uma função ativa na instrução processual, no sentido de buscar eticamente e com a contribuição das partes, a verdade processualmente válida.

Impõe-se contextualizar a gestão das provas no âmbito dos sistemas processuais admitidos no mundo do direito, para que possamos então expurgar alguns mitos e desenvolver a nossa tese do juiz protagonista do processo penal.


SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

A idéia de sistematizar o conhecimento científico na área processual para torná-lo um ramo autônomo e desvinculado do direito penal é recente, pois só veio a ocorrer efetivamente a partir do século XIX. É importante o estudo dos sistemas processuais penais, pois ele informa a ideologia política do Estado no ordenamento jurídico, bem como revela a opção do legislador em conferir maior eficiência da defesa social, ou a preservação das garantias fundamentais. Com efeito, o sistema processual penal inquisitivo é característico dos estados totalitários voltado para a maximalização do direito penal e a preponderância do valor segurança social em detrimento dos direitos do acusado, que é tratado como mero objeto de direito. Já no sistema acusatório, há uma preocupação maior em limitar os excessos da pretensão punitiva do Estado, assegurando-se os direitos de defesa do acusado, que é tratado como sujeito de direitos.


SISTEMA PROCESSUAL PENAL INQUISITIVO

É caracterizado pela concentração das funções de acusar e julgar nas mãos do juiz. O acusado é considerado mero objeto da persecução penal sem qualquer garantia de defesa; a tortura é admitida, assim como outra qualquer forma de prova ilícita, como meio de se obter a “verdade real”; os procedimentos normalmente são secretos e escritos; o juiz, como se depreende, tem funções postulatórias, não havendo contraditório ou respeito ao princípio da igualdade e da dignidade humana. Nesse sistema era outorgado ao juiz poderes ilimitados na produção de provas para se chegar a verdade real. O sistema de provas, em regra, é o legal ou tarifário.


SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO

É o sistema do Estado Democrático de direito, pois distribui as funções de investigar, acusar, julgar e defender para órgãos distintos. O jus puniendi só pode ser aplicado mediante a observância do devido processo legal, com a incidência do princípio da ampla defesa e do contraditório. Os procedimentos normalmente são públicos e prepondera a oralidade, havendo uma preocupação maior em proteger os direitos do acusado diante do arbítrio do Estado. Retira do juiz a prática de atos postulatórios e acusatórios, distribui o ônus da provas entre a parte acusatória e defesa, mas não nega o poder ativo que deve ter o magistrado na instrução processual penal, assegurando-se os princípios da par conditio e do favor rei. O sistema de apreciação de provas é o do livre convencimento do magistrado.


MITO DA VERDADE REAL

A verdade ontológica ou absoluta é inatingível aos seres humanos, pela incapacidade de se reconstruir um fato que está no passado. Os filósofos chegam a afirmar que “não existe nenhuma verdade”, absolutamente nenhuma, porque o mundo não é real. A própria verdade científica somente existe até que outra venha refutá-la . Thumus (2006, p.182), lembra que Einstein já dizia que “a verdade tem um tempo de validade”, asseverando que “nas ciências sociais, notadamente nas jurídicas, o homem é arrogante, petulante, audacioso (soberbo) e ao mesmo tempo temerário, ao afirmar que busca a verdade absoluta no processo penal”. Destarte, sempre se acreditou no mundo jurídico que a outorga desmesurada de poderes ao juiz na instrução do processo, o credenciasse como juiz-inquisidor a chegar à famigerada “verdade real” ou absoluta, mesmo que tivesse de utilizar de métodos violentos e ilícitos, como a tortura. As funções de quem investiga, acusa e julga se concentrava numa única pessoa, o juiz- inquisidor, o qual na idade média, como juiz dos tribunais do santo ofício da Igreja Católica atingiu o seu apogeu, condenando-se muitos inocentes. Entendo que na área processual penal, não se deve mesmo falar de “verdade real” como algo coincidente com a realidade histórica dos fatos, pois esta é utópica. Creio que na seara processual penal devemos trabalhar com o juízo de certeza, que se constrói pelo caminho da probabilidade, a qual se “percebe os motivos convergentes e divergentes e os julga todos dignos de serem levados em conta, se bem que mais os primeiros e menos os segundos” (MALATESTA, 1960, p.19).O juízo de certeza é de natureza subjetiva, pois é obtido pelo trabalho racional e intelectual do juiz na apreciação do conjunto probatório constante dos autos, que lhe dá uma conformidade satisfatória ou razoável entre o pensamento e a realidade dos fatos que lhe são submetidos. O insigne Malatesta (1960, p.22) explicita,

A certeza que deve servir de base ao Juízo do magistrado só pode ser aquela de que ele se acha na posse: a certeza como seu estado de alma...Ora, esta afirmação pode ser cabível não obstante a percepção dos motivos contrários à afirmação; o espírito vê estes motivos contrários, e não os achando dignos de serem levados em consideração, rejeita-os e afirma. Neste caso, não se deixa de estar diante da certeza, porque se está diante da afirmação da conformidade entre noção ideológica e realidade ontológica.

Desta forma, em face do caráter publicista do processo penal impõe-se que o juízo de certeza obtido pela análise das provas coligidas nos autos seja o mais próximo possível da realidade dos fatos.


MITO DA NEUTRALIDADE DO JULGADOR

O meu olhar crítico não se conforma com a assertiva de que o juiz deve ser um sujeito neutro. A neutralidade é anti-natural, pois todo o ser humano carrega a sua história permeada de valores, ideologia, filosofia, visão de mundo, idiossincrassias, desejos, sentimentos, razão e emoções. Com efeito, o juiz é um ser humano, composto de carne e osso, e carrega toda essa tábua de valores até o final de sua vida, não podendo ser este sujeito todo poderoso, alheio à realidade e imune as influências internas e externas, para se tornar um inerte e autômato aplicador da lei. Carlos Gustav Jung sustenta que todo o homem tem um arquétipo masculino e um feminino – yang e yin -, caracterizando o lado masculino pelo princípio da ordem, racionalidade, do senso prático e do dever, enquanto o arquétipo feminino está voltado para o sentimento, à criatividade e a justiça. O magistrado sempre foi gestado numa cultura legalista, formalista, cuja sentença era elaborada por mero silogismo.

A jurista Prado (2005)[4], apoiada nos ensinamentos de Jung assevera que

a alteridade é o arquétipo da anima na personalidade do homem e do animus na personalidade da mulher, que possibilita o encontro do Eu com o Outro dentro as totalidade (self), em um clima de respeito pelas diferenças. Tem sido vista como o arquétipo da democracia, da ciência, da criatividade, do amor conjugal e ao próximo, da decisão feita com justiça.

O julgador, com efeito, deve ser imparcial, não necessariamente neutro, pois não pode se distanciar de sua realidade cultural e nem evitar as influências do seu psique no momento de sentenciar. Não deve, portanto, esconder-se no mito da neutralidade[5]para deixar verdadeiramente de julgar, de decidir as questões relevantes que lhe são submetidas. É preciso retirar a venda da Deusa da Justiça, para que o juiz desça do mundo abstrato e dos conceitos normativistas em que se encastelou durante muito tempo e encontre atrás das regras, o ser humano, sua realidade sócio-cultural, seus valores, colocando-se na posição do outro, entrando em contato com os princípios da igualdade material, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, aspirando assim atingir o eqüitativo e o justo, através de um Juízo valorativo, no âmbito dos limites da verdade processualmente possível.

Imparcialidade nada tem que ver com neutralidade, ou seja, o juiz não precisa isolar-se da sua comunidade e seus valores para decidir com imparcialidade, contrarium sensu, o juiz deve estar sintonizado com o seu tempo, contextualizado e atento às mutações sociais, utilizando o seu poder criativo e sentimento para realizar em toda à sua plenitude a justiça no caso concreto.


JUIZ PROTAGONISTA E A GESTÃO DAS PROVAS

Como se infere, a identificação dos sistemas acusatórios e inquisitórios se revela precipuamente na distribuição das funções de acusar, defender e julgar. Caso sejam distribuídos a órgãos diferentes estaremos diante do sistema acusatório, no qual prepondera o princípio da publicidade, contraditório, ampla defesa e oralidade, havendo uma preocupação maior em defender o acusado diante da acusação do Estado, exigindo-se um procedimento ético assegurado a par conditio. Já o sistema inquisitório se caracteriza pela concentração das funções de julgar e acusar nas mãos do juiz, que para tanto se permitiria a utilização de todos os meios, inclusive, a tortura, para obtenção da provas, principalmente, a confissão, fazendo assim preponderar o julgamento secreto e escrito, havendo uma preocupação maior com a segurança social em detrimento dos direitos de defesa do acusado. Ora identificar um sistema processual penal pela gestão da prova, data venia, seria negar a essência dos sistemas processuais, pois se a iniciativa probatória do juiz-inquisidor era desmesurada e pré-disposta a descobrir a verdade real a qualquer custo, a iniciativa do juiz, no âmbito do sistema acusatório, é limitada e suplementar às partes, voltada para a construção de um juízo de verossimilhança próximo da realidade, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa. Como infirmar a essência do sistema acusatório pela iniciativa probatória suplementar do juiz no processo penal, se ele tem interesse em construir a verdade processual possível e justa? A Jurista Grinover (2001) compartilha desse entendimento ao asseverar que

o processo acusatório e o processo de partes nada têm a ver com a iniciativa probatória do juiz no processo penal..na medida em que não se pode admitir um juiz passivo e refém das partes, como um mero espectador de um duelo judicial de interesses dos litigantes.


O PAPEL DO NOVO JUIZ NA ERA DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

Não há dúvidas de que já sentimos os ventos de uma nova era caracterizada pelo pluralismo jurídico, pela criticidade do conteúdo valorativo das normas jurídicas e preponderância dos princípios gerais de direitos, numa perspectiva voltada para a efetiva realização da justiça humana e auto-realização do ser humano na sua integralidade. Nesse diapasão, pode-se afirmar que estamos saindo da era do positivismo jurídico marcada pela defesa intransigente das leis numa concepção meramente formal ou legalista, sem qualquer comprometimento ou preocupação com a efetivação da justiça em cada caso concreto. Chaim Perelman citado por PRADO (2005, pp.12-3) assevera:

Enquanto o século XIX se caracteriza pelo predomínio do formalismo jurídico e de uma concepção legalista do direito, o século seguinte é a época do realismo e do pluralismo jurídicos, em que os princípios gerais do Direito têm uma importância cada vez maior, graças à influência de considerações de índole socioológica e metodológica. Para ele, a teoria do Direito característica do século XX favorece a concepção tópica do raciocínio jurídico, contrária ao formalismo, conduzindo ao reconhecimento do papel do juiz na elaboração do Direito e à prevalência da eficácia da lei sobre sua validade.

Na verdade, é imperioso que se ressalte que fomos forjados desde a Faculdade numa cultura voltada para a defesa dos códigos (STRECK, 2001)[6], das leis, no âmbito de uma mundo de elaboração de conceitos abstratos distanciados da realidade subjacente.

O juiz nesse contexto sempre foi um operador ou “escravo” da lei[7]que desenvolvia seu raciocínio jurídico para construir uma sentença como um mero silogismo[8], mesmo que servisse de “pretexto para a imposição de injustiças legalizadas”[9].

Como se depreende, na cultura de devoção ao código, as leis não possuem as respostas para todos os fenômenos jurídicos, porque o “legislador” não é onisciente e nem onipotente, como se os fatos passados, presentes e futuros na sua integralidade não pudessem lhe escapar o controle, pelo menos em alguma particularidade. É de se ver que no âmbito de um Estado Democrático de Direito o legislador não é completamente livre para fazer leis, mormente quando o conteúdo dessas leis venha ferir direitos fundamentais protegidos pela Constituição. O legislador tem limites, e o juiz não mais pode ser um defensor intransigente da “regra”, agindo como se fosse um mero autômato e técnico do positivismo jurídico, aplicando o princípio da subsunção de forma acrítica, descontextualizada, sem que possa analisar criticamente o conteúdo da norma e exercer suas preferências axiológicas, no sentido de que possa atingir a justiça em cada caso que lhe é submetido. O jurista Dalmo Dallari na obra já citada arremata:

Toda a sociedade humana necessita de normas, entretanto, estas não devem ser impostas arbitrariamente nem podem ser uniformes para todos os lugares e todas as épocas. Não basta a existência de leis, pois para que elas se justifiquem e sejam respeitadas é preciso que tenham origem democrática e sejam instrumentos de justiça e da paz.

É chegada a era do Poder Judiciário, do novo direito, de um novo juiz. O Secretário Geral do Instituto de Altos Estudos Sobre a Justiça, Antoine Garapon citado por DALLARI (2006, p.13) fez a seguinte afirmativa: “se o Direito Liberal do Século XIX foi o do Poder Legislativo, o direito material do Estado-Providência do Século XX foi o do Executivo, o que se anuncia poderá bem ser o do juiz”. O novo paradigma exige a formatação de um novo juiz sincronizado com o direito aberto, cuja decisão, livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor das promessas do constituinte10]. Esse novo modelo, exige um juiz que tenha consciência do seu novo papel social e político, que entregue à sua “setentia” com sentimento[11], utilizando a sensibilidade e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando assim dos conceitos abstratos e da lógica tradicional. O jurista e desembargador Nallini (2006) vaticina:

O desafio da Escola da Magistratura é transformar o produto dogmático positivista da educação jurídica, à luz da velha feição das Faculdades de Direito, em um profissional atualizado, pronto a enfrentar os desafios contemporâneos. Um solucionador de conflitos, polivalente e intérprete da vontade da Constituição. Um operador do Direito capaz de fazer escolhas fundamentadas quando se defrontar com antagonismos cada vez mais freqüentes.

Nesse mesmo sentido, o jurista Dalmo Dallari, na obra multicitada, discorrendo sobre a necessidade de adaptação ao novo paradigma, destaca o papel do novo juiz, como se observa:

Essa adaptação começa pela formação dos futuros juízes, que não poderão ser “devotos do Código”, legalistas, formais ou “escravos da lei”, mas deverão preparar-se adequadamente para conhecer e avaliar com sensibilidade os fenômenos sociais que informam a criação do Direito e estão presentes no momento de sua aplicação, sem esquecer que a prioridade deve ser dada à pessoa humana, sem privilégios e discriminações.


ASPECTO DIALÉTICO E GARANTÍSTICO DO PROCESSO PENAL

O processo penal, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, constitui um instrumento de garantia do acusado diante da pretensão punitiva – jus puniendi – do Estado. Dir-se-ia que o direito penal não toca nem no pêlo do ser humano, pois somente através do devido processo legal, ou seja, mediante o processo penal é que se torna possível a aplicação de pena ao acusado de uma infração penal. Logo, segundo o escólio de Jardim (2003, p.43), “o processo penal passou a ser ao mesmo tempo um engenhoso instrumento de repressão penal e uma forma de autolimitação do Estado, pelo princípionulla poena sine judicio”. Esta garantia constitucional prevista no art. 5º, LIV da CF exige que o Estado no exercício do seu jus puniendi promova inicialmente a investigação do fato delituoso, em regra, pela Polícia Judiciária. Em seguida, o Ministério Público, com base nos elementos probatórios coletados no inquérito policial, formule uma acusação individualizadora de um fato delituoso e o juiz então determinará a citação do acusado, conferindo-lhe as garantias da ampla defesa e do contraditório. A instrução processual é caracterizada pela preponderância dos princípios da oralidade, publicidade, par conditio, apreciação de provas lícitas e imparcialidade do julgador. Finalmente, o juiz, de posse dos elementos probatórios constantes dos autos, julga a pretensão punitiva do Estado. Caso as provas sejam robustas e extreme de dúvidas, servindo de alicerce seguro para sustentar uma sentença condenatória, estaremos acolhendo com segurança a pretensão punitiva do Estado, todavia, se os elementos probatórios colacionados aos autos pelas partes – órgão acusador e defesa – não são suficientes para construir este juízo de convencimento, evidente que o magistrado, como sujeito crítico, contextualizado e interessado no resultado eqüitativo e justo do processo, deve determinar a produção de outras provas, como autoriza o art. 156 e 497, XI e parágrafo único do art. 502 do CPP, para dirimir dúvidas e esclarecer fatos relevantes para o deslinde da questão posta em Juízo.

O insigne jurista Jardim (2003, p.45) compartilha desse entendimento ao afirmar o seguinte:

Assim, o poder instrutório do juiz será sempre supletivo ao atuar probatório dos outros sujeitos do processo, sem que, com isso, precisemos retornar à origem privatística do processo penal.

A festejada Jurista Grinover (2001, pp. 73-4) afirma com maestria:

O papel do juiz, num processo publicista, coerente com sua função social, é necessariamente ativo. Deve ele estimular o contraditório, para que se torne efetivo e concreto. Deve suprir às deficiências dos litigantes, para superar as desigualdades e favorecer a par conditio. E não se pode satisfazer-se com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova. (...) é inaceitável que o juiz aplique normas de direito substancial sobre fatos não suficientemente demonstrados. O resultado da prova é, na grande maioria dos casos, fato decisivo para a conclusão última do processo. Por isso, deve o juiz assumir posição ativa na fase instrutória, não se limitando a analisar os elementos fornecidos pelas partes, mas determinando sua produção, sempre que necessário. Ninguém melhor do que o juiz, a quem o julgamento está afeto, para decidir se as provas trazidas pelas partes são suficientes para a formação do seu convencimento.

O jurista Oliveira (2003) também segue essa linha de entendimento, de uma forma mais mitigada. Vejamos:

Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado. A iniciativa probatória do juiz deve se limitar, então, ao esclarecimento de questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos, aliás, da redação do art. 156 do CPP.

Nessa perspectiva, outros juristas compartilham desse entendimento[12], admitindo, portanto, a possibilidade do juiz produzir provas na instrução criminal de forma suplementar as partes, sem que isso viole o sistema acusatório. O Jurista Malatesta assevera que “no período de instrução, é obrigação do instrutor procurar chegar a verdade por todos os caminhos , tanto com as provas favoráveis quanto com as contrárias ao acusado”.Afigura-se-nos falacioso o discurso de que o juiz que determina ex-offcio na instrução criminal a produção de provas já estaria aprioristicamente envolvido subjetivamente e assim já formado o seu juízo de valor, pois a prova, seja ela favorável ou não ao acusado, será submetida ao crivo do contraditório, devendo, portanto, ser dissecada e debatida à exaustão durante a instrução criminal, podendo perfeitamente aquela probabilidade que surgiu num primeiro momento ser infirmada ou não a posteriori. Ademais, não há qualquer comprovação científica dessa afirmativa, apenas conjecturas e meras suposições. No processo, como sustenta Malatesta (1960), é preciso que a probabilidade se transforme em certeza substancial, no sentido de justificar a sentença condenatória, daí a necessidade da participação ativa do juiz na instrução do processo, observando-se, entretanto, as limitações decorrentes do sistema acusatório. Evidentemente, que só após esgotadas as possibilidades de se alcançar esta “certeza substancial”, e permanecendo a dúvida, é que aplicar-se-á os princípios do “in dubio pro reo” e do favor rei, objetivando tutelar os direitos fundamentais do acusado e , principalmente, da consciência social de evitar a condenação de um provável inocente, como aliás prevê o art. 386, VI do CPP.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após debruçar sobre essas considerações, entendo, com todas as vênias de posições em contrário, que os mitos da neutralidade do julgador e da verdade real já sucumbiram e não resistem ao mais tênue exame no atual estágio do Estado Democrático de Direito. Com efeito, não há mais lugar no processo penal para juiz neutro e desinteressado, ou como já afirmado pela maioria da doutrina pátria, de juiz-espectador do processo. O papel ativo de co-gestor na produção da prova não atinge a imparcialidade do julgador no processo penal. É necessário que o juiz moderno seja juiz-julgador, ou juiz-protagonista, que conhecendo a sua realidade sócio-cultural, analise os fatos delituosos que lhe são submetidos, aprecie as provas carreadas para os autos, construa o seu juízo de certeza, com seu sentimento e com toda a sua carga de valores, buscando com a colaboração ética das partes a verdade processualmente possível, assegurando-se ao acusado, como sujeito de direito, o contraditório e a mais ampla defesa.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luiz Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista Brasileira de Ciências Criminais. V. 27 São Paulo: 2001.

JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de janeiro: Forense, 2003;

JÚNIOR, Aury Lopes. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003;

MALATESTA, Nicola Flamarino De. A lógica das Provas em Matéria Criminal. Vol. I, São Paulo: Saraiva, 1960;

NALLINI, José Renato. A formação do juiz após a Emenda à Constituição nº 45/04. Revista da Escola Nacional da Magistratura e Associação dos Magistrados Brasileiro . Ano I, número I – Brasília: Escola Nacional da Magistratura, 2006;

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. 2ª Tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005;

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2003;

POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2001;

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005;

PRADO, Lídia Reis de Andrade. O juiz e a emoção: aspectos da lógica judicial – 3ª ed. Campinas, SP: millennium, 2005a;

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2003;

REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 4ª . São Paulo: Saraiva, 1984;

STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do Júri. Símbolos e Rituais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001;

THUMUS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006;

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[1]Juiz de Direito da Vara do Juri da Comarca de Itabuna, Especialista em Direito Processual Civil e Ciências Criminais e Professor de Direito Processual Penal da UESC.

[2]Apud Aury Lopes op. Cit. p.14 . Diz o jurista Jacinto N. Miranda Coutinho “é a gestão da prova o princípio unificador que irá determinar se o sistema é inquisitório ou acusatório. Se a gestão da prova está nas mãos do juiz, como ocorre no nosso sistema, à luz do art. 156(entre outros), estamos diante de um sistema inquisitório(juiz ator). Contudo, quando a gestão da prova está confiada às partes, está presente o núcleo fundante de um sistema acusatório(juiz expectador).

[3]Paulo Rangel em sua obra Direito Processual Penal sustenta a passividade do juiz na instrução criminal, e Geraldo Prado em sua obra Sistema Acusatório entende comprometedora a investigação judicial pelo juiz, admitindo-se, todavia, que “moderadamente intervenha, durante a instrução, para, na implementação de poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s) esposada(s) pela defesa”.

[4]A prof.ª Lídia Prado, apoiada nos ensinamento de Renato Nalini, assevera que o magistrado “apegado à dogmática do direito objetivo, convence-se das verdades axiomáticas e protege-se na couraça da ordem e da pretensa neutralidade. A parcela de poder a ele confiada e a possibilidade de decidir sobre o destino alheio, tornam-no prepotente: é reverenciado pelos advogados e servidores, temido pelas partes, distante de todos. Considerando-se predestinado e dono do futuro das partes no processo, revela-se desumano, mero técnico eficiente e pouco humilde, “esquecido da matéria-prima das demandas: as dores, sofrimentos e tragédias humanas”.(pg. 22 op.cit)

[5]Tércio Ferraz Jr citado pela autora Lídia Prado mostra como o dogma da neutralização do judiciário, que reforçou o lugar privilegiado da lei como fonte do direito, serviu também na caracterização do Estado Burguês, tornando-se , no decorrer do século XIX, a base dos sistemas políticos desenvolvidos”.

[6]O jurista Lênio Streck na sua obra Tribunal do Júri Símbolos e Rituais (p.43) acentua que “a pesquisa nas faculdades de Direito está condicionada a reproduzir a sabedoria codificada e a conviver respeitosamente com as instituições que aplicam (e interpretam)o direito positivo. O professor fala de códigos, e o aluno aprende (quando aprende)em Códigos”.

[7]Por força dessas concepções , o juiz passou na Europa continental o papel que já lhe era dado na Inglaterra no começo do Século XVII, devendo ser um aplicador da lei, preso à forma e proibido de analisar criticamente os textos legais para buscar a aplicação mais justa, conforme os valores sociais vigentes. Foi por esse caminho que se chegou ao juiz “escravo da Lei’, expressão absurda incompatível com a condição de juiz e que torna irrelevantes o valor moral ou intelectual do magistrado e serviu, como ainda tem servido, para reduzir os juízes à condição de serviçais passivos dos “fabricantes de leis”. (DALLARI, 2006, p. 11)

[8]Barroso (2005, p.6-7) explicita “nessa perspectiva, a interpretação jurídica consiste em um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento , sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto”.

[9]DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. cit. pp.13

[10]Antoine Garapon citado por NALINI (2006, p.20) assevera que “o juiz não é só o guardião, mas o concretizador das promessas do constituinte. Ele é o garante , é o avalista e é o implementador de tudo aquilo que o povo, mediante seus representantes, quis que a Justiça propriciasse à nação”.

[11]Para Luiz Recaséns Siches citado por PRADO (2006, p.14) “na produção do julgado, destaca-se o papel do sentimento do juiz, cuja importância fica evidenciada até pela etimologia da palavra sentença, que vem de sentire, isto é, experimentar uma emoção, uma intuição emocional”.

[12]O jurista Guilherme Nucci afirma: “Ainda assim, falar em verdade real implica em provocar no espírito do juiz um sentimento de busca, de inconformidade com o que lhe é apresentado pelas partes, enfim, um impulso contrário à passividade. Afinal, estando em jogo direitos fundamentais....deve o juiz sair em busca da verdade material, aquela que mais se aproxima do que realmente aconteceu...quer que o magistrado seja co-autor na produção de provas” Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. 2.t. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005 pg.92/93.No mesmo sentido, Benedito Pozzer em sua obra a Correlação entre a acusação e sentença ao sustentar que “ Da adoção do sistema acusatório decorre o denominado processo penal de partes, apenas incoado pelo agir do acusador. Mas, desencadeado, o juiz não fica subordinado às provas produzidas pelas partes, facultando-lhe o Código de Processo Penal...determinar diligências necessárias a dirimir dúvidas sobre ponto relevante...”

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