quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


A VIOLÊNCIA E A SAÚDE PÚBLICA




                                                                                 
            A priori, uma análise açodada sobre a temática proposta para o presente artigo poderia levar algum incauto a afirmar o paradoxo ou a contradição em associar violência à saúde pública.Afinal, quando se fala de violência sempre voltamos a nossa atenção aos órgãos encarregados da segurança pública e da justiça, como a polícia, o Ministério Público, o Poder Judiciário e o sistema penitenciário. A saúde pública, por sua vez, nos remete às estruturas hospitalares, ao SUS, aos programas de vacinação e de combate ao aborto, às doenças sexualmente transmissíveis, etc.      Nas discussões travadas no interior dos conselhos de segurança pública ou nas audiências sobre segurança pública, a tônica do debate é invariavelmente o aumento de efetivo policial, o aumento de armamento e de prisões, a implantação de maior número de postos policiais, dentre outros temas afetos à repressão policial e ao recrudescimento da justiça criminal. Na área de saúde pública também os temas são específicos, como aumento de leitos, melhor estrutura física e humana para os profissionais dos setores e pacientes, de sorte que a violência é lembrada como algo relacionado a outros setores da sociedade. Não se fala em prevenção, interdisciplinaridade, integração,absolutamente. É como se fossem setores ou compartimentos estanques e absolutamente incomunicáveis.
            Ouso afirmar, e o faço com apoio da boa doutrina, que a violência é questão de saúde pública. A relação é direta e afeta a todos nós, individual e coletivamente. Com efeito,para a Organização Mundial de Saúde “a saúde pública constitui medida coletiva do Estado e da Sociedade Civil, visando a proteger e melhorar a saúde dos indivíduos”. Reforçando essa assertiva, Alberto Concha Eastman e Miguel Malo prelecionam que a saúde “é uma prática social de natureza multidisciplinar, capaz de enfatizar que a responsabilidade do setor de saúde não se limita a recuperar indivíduos doentes ou vítimas de traumatismos;pelo contrário, deve buscar o bem-estar da população como condição vital para o desenvolvimento pessoal e coletivo”. Por essas razões os autores entendem que a violência e a insegurança nas ruas são questões de saúde pública, em face do impacto na saúde física e psicológica de suas vítimas, bem como pelos efeitos sociais e econômicos que afetam o próprio desenvolvimento de uma sociedade.
            A violência representada por lesões e óbitos decorrentes de acidentes de trânsito e violência doméstica, bem como os homicídios e lesões corporais dolosas representam quase 2/3 da violência provocada por causas externas. Para se ter uma idéia da gravidade da situação, enquanto no Brasil,  em 2007,  a taxa de homicídios por cada 100 mil pessoas era de 26,8% , na Argentina era de 5,2% . A mortalidade decorrente do trânsito em 2007 no Brasil era de 23,5 por 100 mil pessoas. É grande a morbidade decorrente da violência doméstica, muito embora não ocorram muitas mortes de mulheres. As maiores vítimas são homens jovens, negros e pobres, sendo também, segundo a pesquisa, os maiores agressores. O Índice de Homicídios na Adolescência –IHA – é mais acentuado no Nordeste e nos municípios com mais de 100 mil habitantes, onde 4,28 adolescentes – pessoas entre 12 e 18 anos incompletos – serão vítimas de homicídio, antes de alcançarem 18 anos de idade. E o que é por demais preocupante, devido à proximidade,Itabuna liderou o ranking nacional como a cidade mais violenta no País para adolescentes, nos anos de 2009 e 2010, conforme dados fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Bahia e Alagoas figuraram como os Estados mais violentos do Brasil para adolescentes.
            Sem dúvida alguma, esses números se refletem na estrutura organizacional do sistema de saúde, em face da quantidade exacerbada de traumas, lesões e óbitos causados pela violência. Como aferir os custos sociais, econômicos e emocionais decorrentes da alta taxa de criminalidade? O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada anotou que a violência custou ao Brasil em 2004 US$ 30 bilhões. O custo com o setor público seria da ordem de US$ 28 bilhões. O SUS estima ter gastado US$ 39 milhões em 2004. A alta taxa de criminalidade e a sensação de insegurança potencializada pela mídia sensacionalista afeta o cotidiano das pessoas e a própria mobilidade urbana, disseminando o medo e o pânico, atingindo a qualidade de vida das pessoas e, por que não dizer, a saúde das pessoas. A violência e a insegurança, sem dúvida, destroem o capital social e reduz as possibilidades de investimentos naquela comunidade afetada. Quantas políticas públicas de controle e prevenção de doenças deixaram de ser implementadas pelo SUS por falta de recursos? Como fazer para diminuir o número de internações por lesões provocadas por causas externas como acidente de trânsito, violência doméstica e violência interpessoal? Esses questionamentos passaram a ser alvo de discussão e foram incluídos na agenda da Organização Mundial de Saúde, que estabeleceu as oito (8) metas do milênio para prevenir a violência, principalmente aquela praticada contra os grupos mais vulneráveis da sociedade, como mulheres, crianças e jovens. São elas: 1) erradicação da pobreza extrema e da fome; 2) atingir o ensino primário universal;3) promoção da igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher; 4) reduzir a mortalidade infantil;5) melhorar a saúde materna;6) combater HIV/AIDS, malária e outras doenças; 7) garantir a sustentabilidade ambiental; e, finalmente, 8) estabelecer uma parceria global para o desenvolvimento humano.
            Desta forma, diagnosticando a violência como fenômeno multifacetário e criando as condições para enfrentá-la, com enfoque preponderante no paradigma da prevenção, no âmbito de uma visão interdisciplinar, mediante a qual, setores da sociedade civil, segurança pública e saúde pública  possam compartilhar os problemas relacionados à violência e a (in)segurança pública, trabalhando numa linha integrativa, onde cada setor possa ter ciência do que acontece com o outro e estabelecer canais de diálogos, certamente, poderemos diminuir a violência provocada por causas externas, reduzindo assim o número de internamentos e contribuindo para o pleno desenvolvimento das pessoas na comunidade. A partir daí, creio, poderemos começar a sonhar com a cultura da paz.

* Juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Itabuna e mestrando em Segurança Pública, Justiça e Cidadania pela UFBA.