A VIOLÊNCIA E A SAÚDE PÚBLICA
A priori, uma análise açodada sobre a
temática proposta para o presente artigo poderia levar algum incauto a afirmar
o paradoxo ou a contradição em associar violência à saúde pública.Afinal,
quando se fala de violência sempre voltamos a nossa atenção aos órgãos
encarregados da segurança pública e da justiça, como a polícia, o Ministério
Público, o Poder Judiciário e o sistema penitenciário. A saúde pública, por sua
vez, nos remete às estruturas hospitalares, ao SUS, aos programas de vacinação
e de combate ao aborto, às doenças sexualmente transmissíveis, etc. Nas discussões travadas no interior dos
conselhos de segurança pública ou nas audiências sobre segurança pública, a
tônica do debate é invariavelmente o aumento de efetivo policial, o aumento de
armamento e de prisões, a implantação de maior número de postos policiais,
dentre outros temas afetos à repressão policial e ao recrudescimento da justiça
criminal. Na área de saúde pública também os temas são específicos, como
aumento de leitos, melhor estrutura física e humana para os profissionais dos setores
e pacientes, de sorte que a violência é lembrada como algo relacionado a outros
setores da sociedade. Não se fala em prevenção, interdisciplinaridade,
integração,absolutamente. É como se fossem setores ou compartimentos estanques
e absolutamente incomunicáveis.
Ouso afirmar,
e o faço com apoio da boa doutrina, que a violência é questão de saúde pública.
A relação é direta e afeta a todos nós, individual e coletivamente. Com
efeito,para a Organização Mundial de Saúde “a saúde pública constitui medida coletiva do Estado e da Sociedade
Civil, visando a proteger e melhorar a saúde dos indivíduos”. Reforçando
essa assertiva, Alberto Concha Eastman e Miguel Malo prelecionam que a saúde “é uma prática social de natureza
multidisciplinar, capaz de enfatizar que a responsabilidade do setor de saúde
não se limita a recuperar indivíduos doentes ou vítimas de traumatismos;pelo
contrário, deve buscar o bem-estar da população como condição vital para o
desenvolvimento pessoal e coletivo”. Por essas razões os autores entendem
que a violência e a insegurança nas ruas são questões de saúde pública, em face
do impacto na saúde física e psicológica de suas vítimas, bem como pelos
efeitos sociais e econômicos que afetam o próprio desenvolvimento de uma
sociedade.
A violência
representada por lesões e óbitos decorrentes de acidentes de trânsito e
violência doméstica, bem como os homicídios e lesões corporais dolosas
representam quase 2/3 da violência provocada por causas externas. Para se ter
uma idéia da gravidade da situação, enquanto no Brasil, em 2007,
a taxa de homicídios por cada 100 mil pessoas era de 26,8% , na
Argentina era de 5,2% . A mortalidade decorrente do trânsito em 2007 no Brasil
era de 23,5 por 100 mil pessoas. É grande a morbidade decorrente da violência
doméstica, muito embora não ocorram muitas mortes de mulheres. As maiores
vítimas são homens jovens, negros e pobres, sendo também, segundo a pesquisa,
os maiores agressores. O Índice de Homicídios na Adolescência –IHA – é mais
acentuado no Nordeste e nos municípios com mais de 100 mil habitantes, onde
4,28 adolescentes – pessoas entre 12 e 18 anos incompletos – serão vítimas de
homicídio, antes de alcançarem 18 anos de idade. E o que é por demais
preocupante, devido à proximidade,Itabuna liderou o ranking nacional como a
cidade mais violenta no País para adolescentes, nos anos de 2009 e 2010,
conforme dados fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República. Bahia e Alagoas figuraram como os Estados mais violentos do Brasil
para adolescentes.
Sem dúvida alguma,
esses números se refletem na estrutura organizacional do sistema de saúde, em
face da quantidade exacerbada de traumas, lesões e óbitos causados pela
violência. Como aferir os custos sociais, econômicos e emocionais decorrentes
da alta taxa de criminalidade? O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada anotou
que a violência custou ao Brasil em 2004 US$ 30 bilhões. O custo com o setor
público seria da ordem de US$ 28 bilhões. O SUS estima ter gastado US$ 39
milhões em 2004. A alta taxa de criminalidade e a sensação de insegurança
potencializada pela mídia sensacionalista afeta o cotidiano das pessoas e a
própria mobilidade urbana, disseminando o medo e o pânico, atingindo a
qualidade de vida das pessoas e, por que não dizer, a saúde das pessoas. A
violência e a insegurança, sem dúvida, destroem o capital social e reduz as
possibilidades de investimentos naquela comunidade afetada. Quantas políticas
públicas de controle e prevenção de doenças deixaram de ser implementadas pelo
SUS por falta de recursos? Como fazer para diminuir o número de internações por
lesões provocadas por causas externas como acidente de trânsito, violência
doméstica e violência interpessoal? Esses questionamentos passaram a ser alvo
de discussão e foram incluídos na agenda da Organização Mundial de Saúde, que
estabeleceu as oito (8) metas do milênio para prevenir a violência,
principalmente aquela praticada contra os grupos mais vulneráveis da sociedade,
como mulheres, crianças e jovens. São elas: 1) erradicação da pobreza extrema e
da fome; 2) atingir o ensino primário universal;3) promoção da igualdade entre
os sexos e a autonomia da mulher; 4) reduzir a mortalidade infantil;5) melhorar
a saúde materna;6) combater HIV/AIDS, malária e outras doenças; 7) garantir a
sustentabilidade ambiental; e, finalmente, 8) estabelecer uma parceria global
para o desenvolvimento humano.
Desta
forma, diagnosticando a violência como fenômeno multifacetário e criando as
condições para enfrentá-la, com enfoque preponderante no paradigma da
prevenção, no âmbito de uma visão interdisciplinar, mediante a qual, setores da
sociedade civil, segurança pública e saúde pública possam compartilhar os problemas relacionados
à violência e a (in)segurança pública, trabalhando numa linha integrativa, onde
cada setor possa ter ciência do que acontece com o outro e estabelecer canais
de diálogos, certamente, poderemos diminuir a violência provocada por causas
externas, reduzindo assim o número de internamentos e
contribuindo para o pleno desenvolvimento das pessoas na comunidade. A partir
daí, creio, poderemos começar a sonhar com a cultura da paz.
* Juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Itabuna e
mestrando em Segurança Pública, Justiça e Cidadania pela UFBA.
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