segunda-feira, 18 de abril de 2011

A GUARDA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A LEI PREVIDENCIÁRIA 9.528/97: O GRANDE PARADOXO.

A GUARDA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A LEI PREVIDENCIÁRIA 9.528/97: O GRANDE PARADOXO






INTRODUÇÃO







É assente na doutrina que o ordenamento jurídico, como um grande sistema que normatiza as relações entre as pessoas, e entre estas e o Estado, não pode conter contradições ou paradoxos, a dizer, se um dispositivo legal reconhece determinado direito não pode outro dispositivo denegar esse mesmo direito, ou desconsiderá-lo. Evidentemente, que existem os critérios de interpretação do texto legal, que podem superar essas antinomias, como o princípio da especialidade ou da derrogação da lei posterior que podem ser utilizados como instrumentos para extrair o verdadeiro sentido da norma em determinada situação. Todavia, como demonstraremos no decorrer deste trabalho, a contradição verificada entre a doutrina da proteção integral e alguns dispositivos do ECA com relação a Lei nº 9.529/97 é inconciliável e não será solucionada com esses critérios interpretativos, pois entendemos que o dispositivo que excluiu a criança ou adolescente sob guarda judicial do rol de beneficiários da previdência social padece de vicio de inconstitucionalidade.

DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL : O NOVO PARADIGMA

O nascimento do Estatuto da Criança e do Adolescente em 13 de julho de 1989 inaugura no Brasil um novo paradigma com relação aos direitos infanto-juvenis, fazendo brotar a doutrina da proteção integral e sepultando, definitivamente, a doutrina da situação irregular. Os denominados “menores”, então meros objetos de direitos, passaram a ser crianças e adolescentes como verdadeiros sujeitos de direitos e protagonistas de suas próprias histórias. A doutrina da proteção integral insculpida no art. 227 da CF e no art. 4° do ECA , confere às crianças e adolescentes os direitos fundamentais da vida, alimentação, educação, saúde, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, e à convivência familiar e comunitária, cujos direitos devem ser assegurados, como prioridade absoluta, pela família, sociedade e pelo poder público. Logo, se a prioridade é absoluta para a garantia desses direitos fundamentais, e se ela tem status constitucional, é de se supor que essa garantia, nos termos do Parágrafo único do art. 4º do ECA, compreenda a “primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstancias”, precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, bem como preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas, e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. A lei não deve conter expressões inúteis, de sorte que não temos dúvida em afirmar que “ a prioridade absoluta” tem força de imperatividade.

Nesse contexto de proteção integral o legislador estatutário regulamentou a guarda nos arts. 33 a 35 do ECA, como uma das modalidades de colocação de criança ou adolescente em lar substituto, concretizando o direito constitucional da convivência familiar assegurado à criança e ao adolescente. É consabido que a guarda coexiste com o poder familiar, ou seja, para a concessão da guarda não há necessidade de suspensão ou destituição do poder familiar por parte do Poder Judiciário. Nesse sentido é lapidar a lição de Yussef Said Chali , como se pode observar:

“ Tem-se ressaltado que a guarda dos filhos não é da essência , mas tão-somente da natureza do pátrio poder; em outros termos, a guarda é um dos atributos do pátrio poder, mas não se exaure nele nem com ele se confunde; em condições tais, a guarda pode coexistir sem o pátrio poder, como reciprocamente, este pode ser exercido sem a guarda.

O símile da posse e propriedade é posto em confronto pela doutrina: assim como a posse é exercício de fato de alguns dos poderes inerentes ao domínio, mas com este não se confunde, assim também a guarda do menor é o exercício de fato de um dos atributos inerentes ao pátrio poder, mas não se confunde com este podendo ambos, também aqui, ser exercidos concomitantemente por pessoas diversas;o exercício da posse não extingue o direito de propriedade, assim como a concessão da guarda do menor a terceira pessoa não elimina o pátrio poder do respectivo titular”.

Não obstante o decurso do tempo, o presente texto, que ainda se vale da expressão “ pátrio poder”, característica de um período marcantemente machista, é atual e guarda perfeita sintonia com o tema . Com efeito, a guarda confere ao guardião o dever de prestar assistência material, moral e educacional à criança ou adolescentes, sendo deferido ao guardião o direito de representação para determinados atos, inclusive o direito de opor-se a terceiros e aos pais biológicos. O § 3º do art. 33 do ECA reza o seguinte, “ in verbis”:

§ 3º . A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.

O art. 34 do mesmo diploma legal assim estabelece: “ O poder Público estimulará , por meio de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, o acolhimento , sob a forma de guarda, de criança ou adolescente afastado do convívio familiar”.

O jurista Yussef Said Cahali comentando o referido artigo, assim explicita:

“ De qualquer forma, o dispositivo serve para reafirmar a opção do legislador pelo sistema de guarda do menor em família substituta como sendo a melhor maneira de ensejar à criança ou adolescente órfão ou abandonado, a preservação de uma ambiente familiar propício ao seu desenvolvimento pessoal, afetivo e psicológico, em consonância , aliás, com o princípio enunciado no art. 19 do Estatuto: “ toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”

Em realidade, o legislador, aqui, compromete-se a estimular guarda como modalidade mais simples e corriqueira, principalmente do menor órfão ou abandonado, de colocação do mesmo em família substituta – ao lado da tutela e da adoção, modalidades mais complexas e menos usuais dessa colocação”.

Ora, como sabemos, em nosso contexto social, a guarda faz parte de nossa cultura e, sem dúvidas, é a forma de colocação em lar substituto mais recorrente no Brasil, principalmente quando se trata de crianças e adolescentes em situação de risco. Ora, como o legislador pode falar em estímulo a essa modalidade de acolhimento, se é negado à criança e ao adolescente o direito fundamental de auferir os benefícios previdenciários, na condição de dependente econômico do guardião? Como se depreende, a malfadada lei previdenciária – lei nº 9.528/97 vai de encontro a diretriz deste dispositivo legal também. A nova Lei de adoção deu prevalência ao acolhimento familiar, na forma de guarda, em relação ao acolhimento institucional, inclusive estimulando essa modalidade de colocação de criança e adolescente em família acolhedoras, na forma de guarda. Vale ressaltar que vários Estados Brasileiros tem leis regulamentando o acolhimento familiar e estipulando um estipêndio para ajudar o guardião nas despesas decorrente da convivência com a criança ou adolescente. Vários dispositivos do ECA prioriza a convivência familiar, o que inclui a guarda judicial, estimulando essa modalidade de colocação de crianças e adolescentes em família substituta.

Como conciliar esses direitos fundamentais assegurados como prioridade absoluta pelo ECA e pela Constituição Federal com os preceitos da Lei nº.9.528/97, que simplesmente desconsidera a doutrina da proteção integral e nega a condição de dependente previdenciário de criança ou adolescente acolhida sob a forma de guarda? Como falar em incentivo e estímulo a modalidade de guarda, se a lei nº 9.528/97 não permite que o guardião coloque a criança ou adolescente que está sob o seu poder como dependente para efeitos previdenciários? Trata-se de uma contradição solar que fere de morte a doutrina da proteção integral, deixando desprotegida a criança e o adolescente que estiver sob guarda de alguém. Com efeito, essa criança que está sob a guarda de alguém não poderá ser colocada como dependente para efeito de auferir os benefícios previdenciários, ou seja, se a guardiã morrer essa criança ou adolescente não poderá receber a pensão por morte, bem como outros benefícios de caráter previdenciário, que em última análise, acaba comprometendo o próprio direito à vida, á alimentação, á saúde e outros direitos fundamentais, corolário da doutrina da proteção integral. A criança e o adolescente até 18 anos de idade era equiparado a filho para efeito de ser inserido no Regime Geral de Previdência Social, como dependente do guardião, nos termos do § 2º do art. 16 da Lei nº 8.213/91, entretanto, a Lei 9.528/97 revogou o referido dispositivo, excluindo a criança ou adolescente sob guarda judicial da condição de dependente .

Como sustentar a proteção integral e o princípio constitucional da prioridade absoluta em relação aos direitos fundamentais de crianças e adolescente se a ele não é conferido um direito tão importante e fundamental como o direito previdenciário? Creio que o advento da referida lei trouxe para o ordenamento jurídico um paradoxo incontornável, ainda não reconhecido por nossos pretórios pátrios, que tem entendido que a lei nº 9.528/97, por ser norma previdenciária de natureza específica, deve prevalecer sobre a norma do ECA, contida no § 3º do art. 33. Nesse sentido, merece transcrição os seguintes arestos:

JURISPRUDENCIA. GUARDA. PENSÃO POR MORTE. LEI ESPECÍFICA. NÃO APLICAÇÃO DO ECA. EMBARGOS DE DIVERGENCIA EM RESP Nº 727.716 – CE. REL. MINISTRO CELSO LIMONGI. STJ.

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA. ECA. ROL DE DEPENDENTES. EXCLUSÃO. PREVALÊNCIA DA NORMA PREVIDENCIÁRIA. Em consonância com julgados prolatados pela Terceira Seção deste Tribunal, a alteração trazida pela lei nº 9.528/97, norma previdenciária de natureza específica, deve prevalecer sobre o disposto no art. 33, § 3º , do Estatuto da Criança e do Adolescente. Embargos de Divergência acolhidos.( Resp 869635/RN, rela. Mina Jane Silva Desembargadora Convocada do TJ/MG). Terceira Seção, DJE 06/04/2009).

Com a devida vênia do entendimento esposado pela 3ª Turma do STJ, acreditamos que a referida interpretação desconsidera todo o conteúdo axiológico da doutrina da proteção integral insculpida no art. 227 da CF, fulcrada nas convenções internacionais sobre os direitos das crianças, das quais o Brasil é signatário, bem como no princípio da dignidade da pessoa humana, negando à criança e ao adolescente, principalmente, aquele em situação de risco, um direito fundamental que lhe é assegurado, como prioridade absoluta, que é, precisamente , o de auferir de todos os benefícios previdenciários na condição de dependente do guardião. Em contrapartida, cabe não somente a família, a sociedade, sobretudo o Estado assegurar o respeito a esse direito fundamental, cujo titular é a criança e o adolescente sob guarda judicial, como seres humanos na peculiar condição de desenvolvimento, como pressuposto para o seu pleno desenvolvimento físico, intelectual, moral e espiritual. A despeito de sua manifesta inconstitucionalidade, a lei nº 9.528/97, por ser incompatível com os princípios e regras da doutrina da proteção integral estabelecida no art. 227 da CF, o referido dispositivo, no mínimo, é discriminatório, pois como justificar que na tutela e adoção os dependentes dos tutores e dos pais sejam contemplados com todos os benefícios previdenciários, enquanto na guarda judicial, que é também uma das modalidades de colocação de crianças e adolescentes em família substituta, o dependente fique fora do alcance desses benefícios? A rigor, a guarda, como a tutela e a adoção, concretiza o princípio da convivência familiar. Destarte, não se entende porque uma criança ou adolescente que está sob a guarda judicial de alguém, que lhe supre todas as necessidades, seja material ou afetiva, no âmbito de uma convivência familiar equiparada aquela que existe entre pais e filho, possa colocá-lo como seu dependente para o efeito de dedução de imposto de renda, porque é de fato dependente econômico, e não o possa inserí-lo como dependente no Regime Geral de Previdência Social. Como se infere, o paradoxo é inconciliável.

Todavia, o direito é uma ciência social e mercê de se tratar de algo vivo e dinâmico, o seu caráter dialético e crítico permite que as questões decididas pelos diversos órgãos jurisdicionais, inclusive os pretórios superiores, não se transforme em dogmas. Na verdade, é da essência da ciência a discutibilidade e verificabilidade de seu objeto. O Tribunal de Justiça de Pernambuco, tendo como relator o insigne desembargador e jurista, Luiz Carlos de Barros Figueiredo, enfrentou a questão e decidiu contrariamente ao acórdão prolatado pelo Superior Tribunal de Justiça, como se pode observar pelo seguinte aresto:

Direito constitucional. Direito da Infância e Adolescência. Ação de Guarda. Guarda Provisória. Avó. Habilitação das crianças como beneficiárias da guardiã. IRH. Indeferimento do pleito administrativo. Petição nos autos da ação de guarda.Deferimento pelo juízo sob argumento de que a guarda abrange fins previdenciários. Guardião é o mantenedor. Natureza excepcional da ação de guarda. Critérios legais rigorosos. Âmbito federal. Lei 8.213/91. Lei 9.528/97. Artigo 33, § 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não revogação. Ausência de colisão entre leis. Convenção dos Direitos da Criança de Nova York. Brasil signatário. Lei local tem supremacia sobre norma internacional apenas quando conferir mais direitos.Inadmissibilidade da prevalência de interpretação pretoriana ou norma geral que suprima direitos resguardados por norma internacional a que aderiu espontaneamente, salvo se houver denúncia da adesão. Constituição Federal. Universalização dos direitos sociais. Transmudação do princípio em norma. Impossibilidade de retrocesso, mormente quando o beneficiário da tutela for menor de 18 anos que goza de proteção integral e prioridade absoluta, nos moldes do art. 227 da Constituição Federal.( TJPE – 7ª Câm. Civ. MS 97.609-9 – Rel. João Bosco Gouveia de Melo – Rel. do Acórdão Luiz Carlos de Barros Figueiredo – j. em 14.04.2009).

O jurista Luiz Carlos Figueiredo, reconhecendo o retrocesso dos julgados do STJ em relação a doutrina da proteção integral, precisamente sobre a prevalência da norma previdenciária sobre o § 3º do art. 33 do ECA,assim se posicionou em sua obra :

...Tive a coragem cívica de me posicionar, com argumentos sólidos, contra o pensamento hoje dominante nas Cortes Superiores. Como foi dada repercussão geral ao tema, resta a todos nós esperar que DEUS ilumine os nosso Ministros do Supremo Tribunal para que seja reparado tão grave prejuízo causado às crianças e adolescentes brasileiros.



A doutrina da proteção integral está apoiada numa rede de atendimento integrado, que tem como fundamento a incompletude institucional, de sorte que os diversos órgãos e atores do sistema de garantias de direito devem atuar, dentro do âmbito da intersetorialidade, cada um na sua área respectiva, mas em diálogo permanente com os demais atores, para que sejam preservados e efetivados os direitos da criança e do adolescente.Trata-se de uma grande rede de atendimento dos direitos da criança e adolescente.Com efeito, os sistemas do SUS, do SUAS, da Educação, da segurança e justiça, devem atuar conjuntamente para atender as exigências da doutrina da proteção integral. Logo, a resposta de apenas um ou alguns dos órgãos do sistema de garantias de direito é incompleta, insuficiente.

Alguns poderiam objetar que o Judiciário tem sido porta aberta para a proliferação da guarda para efeitos meramente previdenciários, ou seja, a criança, embora esteja em companhia de um dos genitores, ou de ambos, é colocada como dependente da algum parente, como avó, por exemplo, para fins meramente previdenciários, burlando assim o verdadeiro sentido da norma estatutária. Evidentemente, que esse procedimento espúrio ainda existe em alguns lugares, entretanto, os juízes e membros do ministério públicos estaduais têm sido ultimamente muitos rigorosos com relação a essa situação, negando, invariavelmente, a guarda para efeitos previdenciários. Na verdade, não se pode “matar um direito” fundamental ao desenvolvimento de criança e adolescente, em face de um procedimento espúrio não autorizado por lei. Nesse caso, poder-se-ia criar mecanismos de aumentar a fiscalização, para evitar essa prática fraudulenta, todavia, mantendo incólume esse direito fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta forma, sustentamos que a lei nº 9.528/97, de natureza previdenciária, é inconstitucional, porquanto incompatível e discriminatória com a doutrina da proteção integral e com vários dispositivos do ECA. A doutrina da proteção integral transformou criança e adolescentes, até então como meros objetos de intervenção do Estado, em verdadeiros sujeitos de direitos, sendo, portanto, titulares de direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, nas convenções internacionais e no ECA. Com efeito, o direito previdenciário, assegurado à criança ou adolescente sob guarda judicial pelo § 3º do art. 33 do ECA, como prioridade absoluta, e pela doutrina da proteção integral insculpida no art. 227 da CF, deve prevalecer sobre a norma previdenciária constante da Lei 9.528/97, que é flagrantemente inconstitucional, em face do conjunto axiológico que ornamenta a doutrina da proteção integral, também consagrada nas convenções internacionais integradas ao ordenamento jurídico Brasileiro e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

AUTOR: MARCOS BANDEIRA



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1.CAHALI, Yussef Said. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários Jurídicos e sociais. Coordenador:Munir Cury. 7ª Ed. Malheiros: São Paulo, 2005.

2. FIGUEIREDO, Luiz Carlos de Barros. Comentários à Nova Lei Nacional de Adoção. Lei 12.010 de 2009.Curitiba: Juruá, 2009 .





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