terça-feira, 1 de novembro de 2011

A INCONSTITUCIONALIDADE DO REEXAME NECESSÁRIO

 A INCONSTITUCIONALIDADE DO REEXAME NECESSÁRIO.




É pacífico o entendimento de que o Brasil, após o advento da Constituição Federal de 1988, adotou o sistema acusatório no processo penal Brasileiro, caracterizado principalmente pela separação das funções de investigar, acusar, julgar e defender. Com efeito, essas funções foram destinadas a órgãos distintos, evitando-se assim a concentração de poderes num único órgão, como o juiz por exemplo, o que acabava afetando o princípio da imparcialidade do julgador. O sistema acusatório também se caracteriza pela incidência no processo dos princípios e garantias constitucionais como o contraditório, ampla defesa, publicidade dos atos, dentre outros. É bem de ver que convivemos ainda com dispositivos emanados do Código de Processo Penal de 1941, de feição eminentemente inquisitorial, o que vem levando alguns jurista a sustentar que o nosso modelo é misto30 , todavia, em face do princípio da supremacia da Constituição e da hermenêutica constitucional, que determinam que toda norma infraconstitucional deve ser filtrada pela Carta magna para aferir de sua validade na nova ordem constitucional estabelecida pelo Estado Democrático de Direito, sustentamos que o nosso sistema é acusatório.

Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 extinguiu o procedimento judicialiforme, pelo qual o juiz poderia praticar atos postulatórios, ou seja, o juiz através de portaria deflagrava a ação penal nos crimes de homicídio e lesões corporais culposas, exercendo cumulativamente as funções de acusar e julgar, uma combinação imperfeita e sem qualquer preocupação com a justiça da decisão e que foi expurgada do nosso ordenamento jurídico pela entrada em vigor do art. 129, I da CF,o qual conferiu ao Ministério Público a legitimidade exclusiva para propor a ação penal pública.

Nessa perspectiva pode-se afirmar que o “recurso ex-officio” ou o reexame necessário decorrente da absolvição sumária nos procedimentos do Tribunal do Júri é uma reminiscência do sistema inquisitorial anterior a CF de 1988 e não tem qualquer sustentação no âmbito de um Estado Democrático de Direito que consagrou o sistema acusatório, pois o ato de recorrer da própria decisão, além de ser em si um ato paradoxal, colocando em dúvida o próprio convencimento do magistrado, é postulatório, e o juiz nesse sistema não pode praticar atos dessa natureza. O reexame necessário é um entulho autoritário do CPP de 1941 inspirado no princípio da presunção da culpabilidade, considerando que o legislador de antanho desconfiado da imaturidade do juiz de primeiro grau introduziu maiores rigores para que o acusado – mero objeto da intervenção do Estado – provasse à sua inocência perante o órgão ad quem. Ressalte-se que na maioria dos casos que são levados ao órgão ad quem há concordância do titular da ação penal – Ministério Público – que pugna pela absolvição sumária do acusado, entretanto, o trânsito em julgado da decisão só ocorre após a confirmação da decisão pelo órgão superior, ou seja, os autos só sobem a superior instância por uma provocação do juiz, que exerce, sem dúvidas, uma função inerente às partes, incompatível com a sua função de julgador, além de violar com esse esdrúxulo expediente o princípio da plenitude da defesa afeto aos procedimentos do Tribunal do Júri. Nessa trilha, o magistrado Aramis Nassif, da 2ª Vara do Júri de Porto Alegre, citado por Lênio Streck , reconheceu a inconstitucionalidade do art. 411 do Código de Processo Penal nos autos do Proc. de nº 01393087125, prolatada nos seguintes termos:

“Alerto que deixo de recorrer de ofício, tal como determina o art. 411 , do CPP, por reconhecer que , assim agindo, estaria ferindo o princípio da plenitude da defesa garantida constitucionalmente aos acusados de crimes dolosos contra a vida, inclusive no tanto que diferencia esta garantia fundamental da outra, ou seja, ampla defesa, assegurada a todos os cidadãos; por reconhecer que , recorrendo, estaria colocando em dúvida o meu convencimento e minha capacidade de exercer a jurisdição; e, finalmente, por entender que, ungido o Ministério Público de funções constitucionais que dilargaram suas atribuições, mormente no que diz respeito à titularidade da ação penal, não compete ao juiz investir-se deste exercício privativo do parquet, sob pena de ofender os agora comezinhos princípios da relação processual. Assim, presentes os dispostos nos arts. 5º, incisos XXXVIII, a, e XVI, e 129, I , da Constituição Federal, tenho por presente antinomia com a regra do artigo 411, in fine, do CPP, o que prostra inconstitucional”.



O jurista Lênio Streck na obra já citada compartilha do mesmo entendimento do magistrado gaucho ao comentar o art. 411 do CPP relativo ao reexame necessário:



“O dispositivo sob comento, à evidência, coloca em dúvida o convencimento do juiz da causa, uma vez que sua sentença fica a mercê do assim chamado reexame necessário...sendo a ação penal privativa do Ministério Público, não cabe ao juiz prolator da sentença de pronúncia (sic) recorrer de sua própria decisão à instância superior, em nome da sociedade (...), pela simples razão de que essa tarefa foi reservada, de forma exclusiva, pela Constituição Federal, ao Ministério Público...é razoável afirmar que todos os recursos na modalidade ex officio foram abolidos pela Constituição de 1988. Como se sabe, a Constituição estabeleceu o sistema acusatório como corolário da persecutio criminis”.

Desta forma, como se infere, o recurso de officio ou o reexame necessário, como é mais conhecido na doutrina atualizada, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, por ferir o sistema acusatório adotado pelo Estado Democrático de Direito na nova ordem normativa do Brasil e também por ferir o princípio constitucional da plenitude da defesa nos crimes dolosos contra a vida, violando assim, respectivamente, os arts. 129, I, 5º, XXXVIII, a da CF de 1988.

A lei nº 11.689/2008 em boa hora extinguiu o esdrúxulo recuros de ofício ou reexame necessário na  absolvição sumária, cuja decisão desafia tão-somente o recurso voluntário de apelação. Não obstante, o professor e jursita Andrey Borges Mendonça( 2008), compartilhando o pensamento de Nestor Távora e Rosnar de Alencar, entende que o referido recurso não foi extinto, sob o fundamento de que foi mantido o art. 572, II do CPP. Discordo do entendimento adotado pelos referidos e respeitáveis juristas, porquanto o referido dispositivo , antigo art. 574, II do CPP, encontra-se implicitamente revogado no tocante à sentença que absolver sumariamente o acusado, vez que o legislador na seção correspondente não mais previu o recurso de ofício, como o fez com relação ao antigo art. 411 do CPP, deixando bem clara a sua intenção de expurgar o reexame necessário ao estabelecer expressamente no art. 416 da Lei nº 11.689/2008, que " contra sentença de impronúncia e absolvição sumária caberá apelação" Ora, data venia , o legislador não poderia ser mais claro, pois se desejasse manter o famigerado recurso de ofício, tê-lo-ia mencionado ou feito alguma ressalva no dispositivo. Ademais, o denominado reexame necessário já vinha sendo repudiado pelo boa doutrina e também por alguns juízes criminais, que já sustentavam a sua inconstitucionalidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário