segunda-feira, 28 de setembro de 2009

JUSTIÇA CONSENSUALIZADA NA APRECIAÇÃO DOS ATOS INFRACIONAIS E A EXECUÇÃO DE MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS EM MEIO ABERTO

JUSTIÇA CONSENSUALIZADA NA APRECIAÇÃO DOS ATOS INFRACIONAIS E A EXECUÇÃO DE MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS EM MEIO ABERTO

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 16-08-2005

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JUSTIÇA CONSENSUALIZADA NA APRECIAÇÃO DOS ATOS INFRACIONAIS E A EXECUÇÃO DE MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS EM MEIO ABERTO.

Marcos Antonio Santos Bandeira*


1. Introdução 2.

1 INTRODUÇÃO

“ Chore, criança abandonada, desesperada,
que , talvez, o seu grito de orfandade
desperte a nossa sociedade, pois já é tempo
de sensibilizar o coração do seu irmão,
fazê-lo sentir que foi justamente por não ouvir
o seu choro, que hoje os homens, em coro,
lamentam os seus crimes, a sua agressividade,
e se julgam também culpados, por terem gerado,
com tanta indiferença, à sua nefasta presença,
de homem revoltado, delinqüente, afeito à maldade,
como fruto da nossa própria comunidade”(Paulo Lúcio Nogueira)[1]

O assunto a ser colocado em pauta diz respeito à efetividade das medidas sócio-educativas previstas no ECA, especialmente às cumpridas em meio aberto e semi-aberto, diagnosticando a crise do modelo clássico estatal de dizer coercitivamente o direito e apresentar alternativas consensualizadas e sintonizadas com as tendências contemporâneas do direito.

Na verdade, a temática certamente não constitui nenhuma novidade, pois já está na Lei desde a entrada em vigor do ECA, ocorrida no dia 14 de outubro de 1990. Todavia, boa parte dos operadores do direito, muitas vezes em face da sobrecarga de trabalho verificado em suas Varas, ainda não se deu conta da profundidade de seu conteúdo e da sua importância para a resolução dos conflitos envolvendo adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais. Destarte, precisamos quebrar paradigmas e isto implica necessariamente em mergulharmos em nosso interior, mudarmos de atitude e enxergarmos que além do modelo clássico de jurisdição – dizer o direito existe um outro modelo, cuja base é o consenso como verdadeiro instrumento de resolução dos conflitos envolvendo adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais. Pode-se afirmar que esse modelo, o qual José Luiz Bolzan Moraes denomina de jurisconstrução, pode ser aplicado em 95% dos casos ocorridos na Vara da Infância e Juventude e representa uma das tendências do direito contemporâneo, a exemplo do que já ocorre no direito americano (com a Alternative Dispute resolution), na Franca, entre outros países. O juiz, que comumente realiza duas ou três audiências no sistema tradicional para aplicar medidas sócio-educativas em meio aberto – liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade -, pode realizar, numa assentada, num turno, cerca de 15 a 20 audiências para obter, pela lei do menor esforço, sem ouvida de testemunhas, alegações finais, sentença, etc., a mesma resposta – medida sócio-educativa -, só que esta construída pelo consenso e responsabilidade das partes envolvidas e com o parecer técnico da equipe interdisciplinar.

Este é o ponto de partida para mudarmos a nossa mentalidade e o nosso posicionamento, abandonando parcialmente o velho sistema clássico, caracterizado pela lentidão dos procedimentos, repressão, oneração, inflexibilidade, e o que é mais grave, ineficiente para responder adequadamente aos conflitos que lhe são submetidos, e abraçarmos uma nova postura consentânea com a personalidade em desenvolvimento do adolescente, qualificada pelo consenso construído pelo juiz, promotor, adolescente e seu defensor, seus pais ou responsável, equipe interprofissional, em busca de uma resposta – medida sócio-educativa – que seja adequada e suficiente para que o adolescente reflita sobre o ato que cometeu e possa, com a ajuda dos operadores sociais, injetar valores que o credenciem a se distanciar do mundo das drogas e dos atos infracionais, caminhando seguro em direção à cidadania.

Nesse diapasão, é curial que se afirme que o modelo tradicional repressivo-correcional está em crise, pois manifestamente insuficiente para responder o grande fluxo de demandas, acentuado pela globalização da economia que fez do Brasil o vice-campeão em desigualdade social, só perdendo para Serra Leoa na África, aumentando assim os bolsões de miséria e a violência, principalmente a praticada por adolescentes. Com efeito, verifica-se que a maioria dos atos infracionais praticados por adolescentes tem motivação econômica, o que torna seletiva a nossa clientela, ou seja, a classe marginalizada ou dos excluídos, daqueles que, segundo o juiz mineiro Tarcísio José Martins[2],

“historicamente jamais tiveram acesso a condições mínimas de bem-estar e de dignidade, e que, portanto, nunca se reconheceram ou foram reconhecidos como cidadãos plenos pela sociedade e o Estado”.

O jurista Juarez Cirino dos Santos[3] ao discorrer sobre a seletividade, precisamente sobre o direito penal dos pobres, explicita:

“..Sem dúvida, são eles que constituem a clientela do sistema e são por ele, virtualmente, oprimidos. Só os pobres sofrem os processos de vadiagem e só eles são vítimas das batidas policiais com o seu cortejo de ofensas e humilhações. Só os pobres são ilegalmente presos para averiguações, enquanto os ricos, que nunca vão para as prisões, livram-se facilmente, contratando bons advogados, recorrendo ao tráfico de influência e à corrupção. Em situações excepcionais quando isso vem a suceder, logo ficam doentes e são internados nos hospitais. Parece certo que a realização do sistema punitivo funciona como um processo de marginalização social, para atingir uma determinada clientela, que está precisamente, entre os mais desfavorecidos da sociedade”.

O Brasil, segundo dados de recente pesquisa da ONU tem 57,6 milhões de crianças, o que representa 35, 9% da população. Há 54 milhões de indigentes – pessoas que sobrevivem com menos de R$ 100,00 –, ou seja, para quase três brasileiros um vive na linha da pobreza; Cerca de 3,5 milhões de crianças nascem no país todos os anos, sendo que, em cada quatro, uma vive em absoluta pobreza. Uma criança em 100 deixará de receber a vacina contra sarampo e poliemelite no seu primeiro ano de vida; 10% sofrerá de desnutrição nos primeiros cinco anos; 6% vive sem água potável e 14% sem saneamento básico; 10% dos adolescentes entre 15 a 17 anos deixará de estudar para trabalhar. A desigualdade social é gritante: 10% dos mais ricos detém cerca de 50% da renda nacional, enquanto 50% dos mais pobres detém menos de 10% da renda[4].

É sabido que além dos fatores econômicos e sociais, o ato infracional é causado por fatores endógenos como a inteligência, perturbações afetivas ou emocionais, sentimentos de perdas e grau de frustração. Todavia, os excluídos, a que certos setores da cidade, segundo Viviane Forrestier[5], consideram como “cidadãos descartáveis, incapazes de consumir ou se integrar ao mercado” constituem, sem dúvidas, a maior clientela da Vara da Infância e Juventude na área infracional.

Não podemos, neste novo milênio, tratar o direito infracional juvenil com eufemismo, a exemplo de direito penal juvenil, “direito penalzinho”, “peninha”, ”trombadinhas” e expressões que estigmatizam o adolescente, tratando-o como se fosse imputável, ou mesmo considerando-o como mero objeto, e não sujeito de direito, como proclamado nas regras de Beijing, acolhido pela Constituição Federal e pelo ECA, aceitando assim passivamente a ideologia expiatória do Código de Menores de 1979, representado simbolicamente pela desumanidade do que acontece na FEBEM, que é um modelo fracassado, ultrapassado e que já deveria ter sido implodido como foi o Carandiru, pois não tem qualquer sustentação num Estado Democrático de Direito. Devemos tratar o Direito Infracional Juvenil como ele ontologicamente é, ramo diferenciado da Justiça, e a Vara da Infância como Vara especializada, a exigir uma postura diferenciada dos juízes, promotores e advogados, na medida que compreendam que as questões conflituosas envolvendo adolescentes não são simplesmente questões jurídicas. São muito mais que isso, são multifacetárias e exigem a concorrência de operadores sociais – assistentes sociais, psicólogos e pedagogos, psiquiatras – para que seja construída uma resposta adequada para determinada conduta típica praticada pelo adolescente. A questão é transindividual e exige a concorrência de todos os protagonistas para a busca da medida sócio-educativa e/ou protetiva ideal para determinado caso concreto.

Vê-se que o sistema consensualizado oferece vantagens inúmeras e se nos afigura mais adequado para a resolução dos conflitos na área infracional juvenil, pois é mais célere, flexível, prepondera o princípio da oralidade, diminui os custos e é eficiente. Nesse sentido, José Luis Bolzan[6] na obra já citada explicita:

“Aparecem , assim, os mecanismos consensuais – apesar de suas distinções – como outra justiça na qual, ao invés da delegação do poder de resposta, há aproximação pelos envolvidos do poder de geri-los, caracterizando-se pela proximidade, oralidade, ausência/diminuição de custos, rapidez e negociação, como já dito, quando, na discussão do conflito, são trazidos à luz todos os aspectos que o envolvem, não se restringindo apenas àqueles dados deduzidos na petição inicial e na resposta de uma ação judicial cujo conteúdo vem pré-definido pelo direito positivo.

“A questão que sobressai, aqui, é a de diferenciar a estrutura desses procedimentos, deixando de lado o caráter triádico da jurisdição tradicional, onde um terceiro alheio à disputa impõe uma decisão a partir da função do Estado de dizer o Direito, e assumindo uma função díade/dicotômica, na qual a resposta à disputa seja construída pelos próprios envolvidos.

“É por isso que propomos como gênero o estereótipo jurisconstrução, na medida em que essa nomenclatura permite supor distinção fundamental entre os dois grandes métodos. De um lado, o dizer o Direito próprio do Estado, que caracteriza a jurisdição como poder/função estatal e, de outro, o elaborar/concertar/pactar/construir a resposta para o conflito que reúne as partes”.

Nessa linha de raciocínio o professor e doutor em Direito Paulo Bezerra[7], em sua obra “Acesso à Justiça”, já convencido da ineficiência do combalido modelo clássico de dizer o direito, vaticinando, manifesta a tendência moderna de se procurar o consenso como forma de solucionar os litígios. Vejamos:

“Alem disso, não é de ninguém desconhecido que, modernamente, a tendência é abandonar soluções ditadas por terceiros, principalmente pelo Estado-juiz, buscando-se a paz por meio do consenso e da própria vontade. Isso tem conduzido os atores às formas autocompositivas de solução de conflitos, principalmente a negociação e a mediação, sendo vistos o Estado como parceiro na resolução dos conflitos, já não como solucionador”.

Transpondo-se essas premissas para a área da infância e juventude, vê-se que o ECA nos seus §§ 1º e 2º do art. 186, já previa o consenso nos moldes da “transação penal” prevista na Lei nº 9.099/95, como forma de solucionar os litígios. Numa linguagem mais clara, previu a possibilidade do adolescente apontado como autor de um ato infracional não ser privado de sua liberdade, nem de forma semi-plena, desde que tenha aptidão e concorde juntamente com o seu pai ou responsável em cumprir uma medida sócio-educativa em meio aberto, seja liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade ou entidade pública. A remissão clausulada ou vinculada nada mais é na sua essência do que a transação penal, só que no ECA sobressai o seu lado pedagógico voltado para a condição peculiar do adolescente como sujeito de personalidade em formação, o que nos leva a denominar de transação sócio-educativa. Na verdade, antes da Lei nº 9.099/95, o ECA já previa a transação como forma de compor litígios envolvendo adolescentes. O jus libertati do adolescente é preservado, mas a medida busca despertar o senso de responsabilidade do jovem diante do ato que lhe é imputado, objetivando o afloramento de valores que dignifiquem o ser humano, como respeito ao próximo, honestidade, educação, trabalho, orientação espiritual, ao tempo em que procura inseri-lo na sociedade que o deixou à margem, através da educação e da inserção no mercado de trabalho.

Como se observa, o legislador previu um ritual para os casos considerados graves – o que deve ser analisado caso a caso – estabelecendo o seguinte “in verbis”:

Art. 186 – omissis

§ 1º - omissis

§ 2º - Sendo o fato grave, passível de aplicação de medida de internação ou colocação em regime de semi-liberdade, a autoridade judiciária, verificando que o adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor, designando , desde logo, audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligências e estudo do caso.

Como se depreende, a “contrario sensu”, não sendo o caso grave, ou seja, desde que o ato infracional imputado ao adolescente seja de pequeno ou médio potencial ofensivo, o Juiz, na própria audiência de apresentação, quando o Ministério Público não utilizar da prerrogativa do art.180, I do ECA, requerendo a remissão clausulada, deverá ouvi-lo no ato de audiência, nos termos preconizados pelo § 1º do art. 186 da Lei nº 8.069/90, a respeito da possibilidade da remissão, ouvindo em seguido o adolescente e seus pais ou responsável, bem como seu defensor, e depois, juntos com o assessoramento de equipe técnica – pedagogos, psicólogos e assistentes sociais – deverão juntos buscar a medida mais adequada para aquele caso. É bem de ver, conforme o escólio do Promotor Roberto Decomain[8], de Santa Catarina, que a expressão “conceder” descrita no art. 180, II do ECA não traduz juridicamente o seu sentido vernacular, pois não passa de uma proposta ou sugestão de remissão. Assim preleciona o ilustre representante do Ministério Público:

“Exigida que é a homologação judicial da remissão ‘concedida’ pelo Ministério Público, venha ela ou não acompanhada da proposta de aplicação de medida sócio-educativa ao adolescente, bem se vê que o conteúdo da expressão “conceder” não corresponde a uma faculdade exclusiva, privativa, irrestrita e auto-executável do Ministério Público. Guarda ela os contornos de verdadeira sugestão.

Funciona, em verdade, como proposta de aplicação imediata de medida sócio-educativa ao adolescente, com o objetivo de evitar-se a instauração do procedimento subseqüente à oferta da representação.

Noutras palavras, na verdade, quem concede a remissão, seja ela pura e simples, seja acompanhada de medida sócio-educativa, não é o Ministério Público....quem na verdade concede, em última análise, a remissão, é a própria autoridade judiciária. Do mesmo modo, é ela quem aplica a medida sócio-educativa proposta”.

O instituto da Remissão está previsto nos seguintes dispositivos:

Art. 126 – Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração do ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como a personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.

Parágrafo Único – Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

Art. 127 – a Remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação de culpabilidade, nem prevalece para efeitos de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.

Impõe-se enfatizar que, dadas as peculiaridades do caso, as circunstâncias, o contexto social e a personalidade do adolescente, é possível a remissão clausulada, mesmo em casos graves, praticados com violência ou grave ameaça, como v.g., no caso de homicídio, no qual se afigura possível uma justificativa – legítima defesa, legítima defesa putativa, inexigibilidade de conduta diversa – e o adolescente, com a anuência do seu representante legal e com a assistência jurídica do seu defensor, concordam em cumprir alguma medida sócio-educativa em meio aberto, como liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade, para não discutir o “meritum causae” e as condições familiares e sociais do adolescente indiquem o cumprimento de medida sócio-educativa em meio aberto como resposta pedagógica adequada. Neste caso, o Promotor, entendendo que a medida em meio aberto é adequada, já que o adolescente não encarna o perfil de jovem periculoso e familiarizado com o mundo do crime e que, ao contrário, o fato foi isolado e as circunstâncias do ato infracional não descartam a possibilidade de que o mesmo tenha utilizado de alguma excludente de criminalidade ou culpabilidade, pode propor a aplicação da remissão cumulada com medida sócio-educativa e/ou protetiva. Essa mesma inferência pode ser aplicada em alguns casos praticados com violência ou grave ameaça, principalmente se o jovem foi um mero partícipe, pois nem sempre a gravidade do ato infracional ensejará a aplicação da medida sócio-educativa de internamento. Impõe-se diferenciar a conduta do imputável que comete crime ou contravenção daquela praticada pelo adolescente. O ex-estudante da UESC, Rafael Fernandes Pimentel[9], com sutileza, expressou:

“Importante é lembrarmos que a transgressão é um fenômeno intrínseco à adolescência. A rebeldia e a contestação caminham paralelas a esta fase da vida do indivíduo. A conduta impulsiva típica do adolescente decorre necessariamente da crise de identidade em que passa. Contrastam, formando uma verdadeira mixórdia, as naturais transformações psíquicas e hormonal, o conseqüente comportamento transgressivo e questionador...por tudo isso, olhar para o adolescente reconhecendo sua diferença implica redimensionar o significado de seus atos, entendendo melhor a realidade para nela intervir eficazmente”.

É necessário, portanto, que o juiz conheça bem o contexto, a história do adolescente e fundamente a escolha pela internação, explicitando o motivo pelo qual não aplicou uma medida mais branda ao adolescente. Nesse sentido, o STJ[10] vem se posicionando unissonamente, senão vejamos:

“O cotejo entre o comportamento do menor e aquele descrito como crime ou como contravenção atua apenas como critério para identificar os fatos possíveis de relevância infracional, dentro da sistemática do ECA. Exatamente porque ao menor infrator se aplicam medidas outras de caráter educativo e protetivo sem critérios rígidos de duração, já que vinculados exclusivamente à sua finalidade essencial” (HC 10.679)

“Se o adolescente, além de trabalhar e estudar, cumprir toda a medida sócio-educativa de liberdade assistida, tendo o relatório técnico da FEBEN informado não revelar mais tendência infracional e ter condições de convívio social, o fundamento básico do acórdão atacado, gravidade da conduta (tentativa de latrocínio) não têm força bastante para afastar essas constatações, mesmo porque, a internação é medida extrema, cabível quando o caso não comporta outra menos grave”.

“O fundamento básico do acórdão, que consubstanciou-se na gravidade da conduta – não é suficiente para motivar a privação total da liberdade do menor, tendo em vista a própria excepcionalidade da medida de internação”.

Como se depreende, a remissão clausulada não implica em reconhecimento de culpa e nem configura antecedentes, podendo ser utilizada várias vezes, desde que o jovem tenha efetivamente condições de cumprir a medida sócio-edcuativa que vier acompanhada em meio aberto. Com efeito, podemos afirmar que esta forma de composição de litígios não elimina o modelo tradicional, pois haverá casos em que o Promotor não entenderá cabível o cumprimento da medida em meio aberto ou preferirá o devido processo legal. Da mesma forma, se o defensor do adolescente sustentar a tese da negativa de autoria ou da existência de alguma excludente de ilicitude e manifestar o propósito de provar sua inocência a qualquer custo, no âmbito do devido processo legal e da mais ampla defesa, será necessário o procedimento. Verificar-se-á, entretanto, que poucos serão os casos reservados para o modelo clássico, pouco mais de 5%, o que, sem dúvida, é muito pouco e confirmará apenas a supremacia do modelo consensual de composição de litígios. O modelo consensual, por sua vez, contribuirá para desemperrar a máquina judiciária, fazendo incidir o princípio da economia processual e da corrente minimalista do direito infracional juvenil, reservando-se para a semi-liberdade e o internamento os fatos comprovadamente graves e praticados com grave ameaça ou violência, e que demonstrem a necessidade de medidas que atinja o status libertatis do jovem autor de ato infracional. O internamento é regido pelo princípio da legalidade estrita e só deve ser aplicado aos casos taxativamente previstos no art. 122 do ECA, já que se trata de medida excepcional e que não admite interpretação extensiva. Assim vêm reconhecendo alguns julgados do STJ, que considera ilegal o internamento de adolescente primário no caso de tráfico de drogas[11]. Portanto, o internamento deve ser a ultima ratio e reservado exclusivamente quando houver violação de bens jurídicos relevantes na comunidade – homicídio, estupro, roubo, extorsão mediante seqüestro, etc., e que numa análise geral do caso seja inviável o cumprimento da medida em meio aberto ou semi-aberto, seja porque o jovem, familiarizado com o mundo das drogas e dos atos infracionais, revele inaptidão para o convívio social, seja porque fatores endógenos – inteligência, perturbações afetivas ou emocionais, predisposição do adolescente à deliquência, sentimento de perda no grau de frustração, dentre outros – adicionados à gravidade da conduta recomendem o internamento, como forma necessária e preparatória para a progressão para a semi-liberdade ou meio aberto.

Na verdade, mesmo fora dos casos de remissão clausulada – transação sócio-educativa – é possível o consenso com relação à aplicação da medida de semi-liberdade, desde que comprovada a autoria e materialidade do ato infracional, o defensor do acusado, durante a audiência de instrução, apoiado em relatório técnico, se convença que a semi-liberdade seja, de fato, a medida mais adequada para aquele caso. É possível até que o defensor do acusado, após a confissão do representado, não havendo dúvidas sobre a autoria e demais circunstâncias do fato, entenda desinfluente a ouvida das testemunhas arroladas na defesa prévia e as dispense, abreviando assim o procedimento, sem que sejam violados os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, ensejando que o juiz aplique a medida de semi-liberdade em consonância com o pensamento do Ministério Público, do adolescente e de seu respectivo defensor. Pode-se ainda alinhar mais um motivo plausível para excepcionarmos o internamento, e preferirmos o cumprimento da medida sócio-educativa em meio aberto ou semi-aberto, mercê da condição natural de liberdade do jovem em desenvolvimento. É o seu alto custo, que segundo estudos desenvolvidos em alguns Estados fica na ordem de R$ 1.500,00 por adolescente e a reincidência em alguns casos chega a 70%[12], enquanto o cumprimento da liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade em alguns Estados, onde são aplicadas corretamente, como em Joinvile-SC, além do custo bem menor, os índices de reincidência em 1999 ficaram na ordem, respectiva, de 7 e 5%.

O importante é que tenhamos uma estrutura física e humana capaz de executar as medidas sócio-educativas em meio aberto e semi-aberto, preenchendo assim uma lacuna que os juízes e promotores da Vara da Infância e Juventude enfrentam no seu dia-a-dia da atividade forense, utilizando-se muitas vezes da improvisação e amadorismo para suprir suas carências. Na Bahia, felizmente, a Fundação Reconto e a Fundac, de forma revolucionária, vêm executando medidas sócio-educativas em meio aberto e semi-aberto, em Canavieiras, Ilhéus e Itabuna, com resultados expressivos e fundado na metodologia da Escola Dinâmica Energética do Psiquismo e na Pedagogia da Presença,

“que busca fazer-se presente e forma construtiva na vida do adolescente, educando-o e auxiliando-o a resgatar à sua auto-estima, a crescer, a progredir, a assumir a vida e a perceber a grande possibilidade que é a vida e aprender a viver conscientemente”[13],

tornando-o assim protagonista de sua própria história. A idéia da vingança e da mera expiação é substituída pela presença construtiva do educador na vida do jovem infrator, estabelecendo um vínculo de confiança, respeito e tolerância, pelo qual será perfurada a couraça do adolescente e tocada à centelha divina que está em cada um desses jovens, fazendo-o enxergar os seus limites, reconhecer o seu potencial e atingir as metas estabelecidas pelo educador. Os operadores sociais, dependendo da medida a ser aplicada – liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade ou semi-liberdade, estudam cada caso, fazem trabalho de redes e parcerias, acompanham o jovem na sua relação familiar e na escola, fortalecem os vínculos familiares, inserem em oficinas profissionalizantes, de conformidade com a aptidão de cada um, acompanham o aproveitamento escolar e promovem socialmente o jovem, fazendo o trabalho de inclusão social e preparando-o para ser verdadeiramente um cidadão.

Este na verdade é o grande desafio de todos que mourejam nas Varas da Infância e Juventude, evitar que o adolescente, cuja personalidade ainda está em formação, transforme-se em um delinqüente. Assim teremos motivos de sobra para sonhar e acreditar que o amanhã será bem melhor para futuras gerações, como disse Juarez Oliveira prefaciando a obra de Paulo Lúcio Nogueira[14],

“Antes do sonho há um dever a ser cumprido, dever que é de todos nós. O menor é nosso; seu problema é nosso, como o dever de sua melhor construção também é nosso”.

* Autor: Marcos Bandeira – Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Itabuna.

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[1]NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. São Paulo: Saraiva, 1991.

[2]COSTA, Tarcísio José Martins. Aplicabilidade das Normas aos Grupos Subculturais da Menoridade Marginalizada. Internet: www. Em

[3]SANTOS, Juarez Cirino. Violência Institucional. Revista de Direito Penal; Forense, vol 28, pp. 43

[4]REVISTA VEJA – IBGE

[5]FORRESTIER, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo; Editora UNESP, 1996

[6]AGRA, Walber de Moura, e outros. Comentários à Reforma do Poder Judiciário. Rio de Janeiro; Forense, 2005:pp 4 a 12

[7]BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso à Justiça. Um problema ético-social no plano da realização do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 63.

[8]DECOIMAN, Roberto.Ato infracional por adolescente – Remissão e Medida sócio-educativa(Aplicação pelo Ministério Público? uma proposta de interpretação). www.jusnavegandi.com.br

[9]PIMENTEL, Rafael Fernandes. Ato infracional e medidas sócio-educativas na leitura criminológica. Diké – Revista Jurídica do curso de Direito da UESC. Ilhéus, UESC, 2003, pp 142

[10]STJ

[11]FRASSETO, Flávio Américo. Ato infracional, medida sócio-educativa e processo: a nova jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista ____de ciências criminais trimestral. Ano 9. nº33, janeiro-março de 2001, pp 178 a 202

[12]FRASSETO, Flávio Américo. “Ato infracional: Tráfico de entorpecentes. Internação. Ilegalidade. Lei nº8.069/90” HC 10.294. Revista ____de ciências criminais trimestral. Ano 9. nº33, janeiro-março de 2001, pp 192

[13]AMARAL, Luiz Otávio de O. A redução da imputabilidade penal. Revista Jurídica Consulex, ano VII, nº 166 de 15 de dezembro de 2003. Brasília-DF. Pp 23

“Ao contrário do que se possa pensar, o sistema penal (que abrange o prisional) empurra os adultos ainda mais para a marginalidade, tendo reincidências de 40 a 70% após saírem da prisão. Enquanto o ECA pode dar respostas adequadas quando aplicado corretamente, por exemplo, os programas de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade em Joinville (SC), no ano de 1999, que tiveram índice de reincidência de apenas 7 e 5%, respectivamente (reincidência é a prática de outro ato infracional quando o adolescente já cumpriu medida sócio-educativa)”.

[14]NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. São Paulo: Saraiva, 1991

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