terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A LEI DO PAI NOSSO

A LEI DO PAI NOSSO





Não sei o que motivou o ilustre vereador de Ilhéus a elaborar projeto de lei criando a lei que torna obrigatória para os alunos a oração do Pai nosso nas dependências das escolas municipais . Creio até que tenha sido movido por motivo nobre, por se tratar, possivelmente, de uma pessoa religiosa. Não creio que tenha sido no sentido de ganhar notoriedade.

Se foi esse o sentido, quero dizer que a notícia foi divulgada na folha de São Paulo e atravessou fronteiras, alcançando, assim, o seu desiderato, chegando a ser mencionada numa sala de aula de doutorado em Direito, em Buenos Aires. As pessoas ficaram perplexas e indagaram se o Brasil não é um país laico. A argentina adotou em sua Constituição a religião católica como sua religião oficial, mas nem por isso obriga as pessoas a orar o Pai nosso nos espaços públicos , pois entende que, sem embargo da religião oficial do Estado ser católica, as pessoas têm o direito de escolher a sua crença e professar a sua fé, sejam elas quais forem, ou mesmo não ter qualquer crença. Alguém obtemperou, citando um grande governador da Bahia, chamado Otávio Mangabeira, que governou a Bahia no período de 1947 a 1951, também conhecido por suas tiradas filosóficas, que ele teria dito:“mostre-me um absurdo: na Bahia há precedentes” . Tentamos argumentar que a Bahia de Ruy Barbosa, Castro Alves Josaphah Marinho, Milton Santos, João Ubaldo Ribeiro, Caetano Veloso e tantos outros ilustres intelectuais também produz coisas boas, seja na área do Direito, da prosa ou da poesia. O grapiúna Jorge Amado, cujo centenário acontece no mês de agosto deste ano, é um dos escritores brasileiros mais lidos no mundo. O saudoso escritor, que também foi deputado federal, embora nascido em Ferradas, município de Itabuna, em 1912, foi em Ilhéus que se inspirou para elaborar boa parte de suas obras que venceram as fronteiras de mais de 40 países.Ele é da Bahia. Aqui existe um patrimônio de valores culturais e artísticos para se admirar e que nos obriga a revelar em toda a sua plenitude o orgulho de ser baiano. Dizem alguns que a baianidade é um estado de espírito.

Não entendemos como uma lei deste jaez, flagrantemente inconstitucional, passa pelo crivo da Comissão de Justiça da Câmara de Vereadores de Ilhéus. E, pior, é sancionada pelo Poder Executivo Municipal.

A chamada “idade das trevas” que atravessou toda a Idade Média foi caracterizada pela grande influência da igreja católica na monopolização do poder, misturando as ideias de delito e pecado, sobressaindo-se o caráter religioso ou divino do Poder. Esse foi um dos períodos mais violentos e autoritários da história humanidade, cujos postulados estavam assentados nas bulas papais que serviam de guia para os tribunais de inquisição na perseguição aos hereges. O processo de laicização, que é precisamente a separação entre ciência e religião, começa em 1440, com a obra de Nicolau de Cusa, denominada “ De Docta ignorantia”, passando por Emanuel Kant( A crítica da razão pura) e culmina com Nietizsche, com “ A morte de Deus”.

Entre nós, brasileiros, na época do império, o Estado Brasileiro era oficialmente católico, entretanto a Constituição da República do Brasil de 1891 já estabelecia a separação entre Igreja e Estado. Muito embora a maioria das Constituições Brasileiras, inclusive a de 1988, faça invocação a DEUS, não há dúvida de que o legislador constituinte fez a opção por um Estado Democrático de Direito Laico, onde deve ser assegurada a cada cidadão, a liberdade de consciência e de crença. Nesse sentido é explícito o inc. VI do art. 5º de Nossa Constituição Federal, quando reza: “ é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida , na forma da lei,a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

A exigibilidade de que os alunos rezem o Pai nosso nas escolas municipais de Ilhéus, em nossa modesta opinião, conspurca, viola essa liberdade de crença e de consciência assegurada constitucionalmente, pois até mesmo para o aluno católico a oração como uma manifestação pura de fé, não pode ser imposta, ou seja, não pode vir de fora para dentro, mas brotar de dentro para fora. E como ficam os alunos que são agnósticos, ateus, fiéis do judaísmo ou islamismo, ou de alguma religião que não utiliza a oração do Pai nosso em seus rituais? Sem dúvida alguma, tal lei vai de encontro ao processo de secularização e na contra-mão do Estado Democrático de Direito Laico. Não há dúvida de que a maioria de nossa população é católica, como é também o articulista deste artigo que reza o Pai nosso todo dia, em secreto, como manda a Bíblia, mas daí a impor aos outros a minha crença, obrigando a rezar uma oração na qual não acredita ou que não adota em seus rituais é violar o seu direito à liberdade de crença, e voltar à idade das trevas ao tentar novamente impor determinado postulado religioso a toda uma sociedade livre e democrática.

Creio que a ideia não foi boa. Como afirmei no exórdio, se foi para obter notoriedade o nobre vereador alcançou o objetivo, mas de forma negativa. É como o atacante David do flamengo que, por mais gols que venha a fazer daqui por diante, será sempre lembrado negativamente pelo gol inacreditável que deixou de converter. Ilhéus, linda por natureza e admirada pelo seu rico patrimônio histórico e cultural, necessita realmente de muitas orações para que seus gestores não a maltratem mais e que DEUS na sua infinita misericórdia a proteja de todo o mal, preparando-a para os novos desafios na saúde, educação e no desenvolvimento urbano, principalmente, no seu sistema de transporte tão caótico, cuja deficiência fica à mostra nos feriados e finais de semana. Oremos por Ilhéus, mas deixemos que cada um professe livremente a sua fé, ou o sagrado direito de não ter crença. Que DEUS nos proteja.

Marcos Bandeira é Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Itabuna, professor de Direito da UESC e membro da Academia de Letras de Itabuna.





2 comentários:

  1. Ceres Marylise Rebouças de Souza29 de fevereiro de 2012 às 18:30

    Dr. Marcos

    Li e reli o texto, detendo-me na clareza de sua argumentação sobre a escola laica. Não sabia que o projeto de lei do vereador havia transposto nossas fronteiras.
    Lembrei-me, repentinamente, das aulas de História da Educação que ministrava na universidade, pois a minha formação superior inicial é de pedagoga, com duas habilitações, pela nossa amada UESC. A formação em Linguística ( Aquisição da Linguagem), veio posteriormente, em outras instituições de ensino superior.
    Realmente, desde o final do século XIX e início do século XX, os movimentos por reformas educacionais para desatrelar a escola do monopólio da educação cristã católica, fez-se realidade, pois é grande a diversidade religiosa no Brasil. O sincretismo religioso revela a integração das diferentes culturas do povo brasileiro... mas não quero me aprofundar em argumentos já tão bem explicitados pelo nobre magistrado e professor.
    Penso que o vereador em questão, por desconhecer essas informações, e, observando a necessidade de algum suporte educacional que fizesse melhorar o desastre em que se encontra a educação atual com a falta de respeito de muitos alunos (sem generalizar), com os professores e por conseguinte, com a sociedade, o fez crer que a oração seria um freio nesse sentido.
    Posso afirmar que nas longínquas escolas desse nosso Brasil essa pratica diária ainda acontece...e não apenas por professores leigos que ainda existem e bastante, apesar das exigências da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mas até com professores de nível superior que mecanicamente repetem práticas tradicionais nas escolas.
    Um grande abraço desta amiga, sempre aprendiz e leitora das aulas contidas neste blog.

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  2. Muito bom o texto. Eu como ateu, aspirante a professor e defensor da laicidade do Estado e principalmente da escola, repudiei a aprovação desta lei. Espero que com um caso de notoriedade como esse nossos políticos comecem a analisar melhor o que estão aprovando. Me saltou aos olhos o fato de ter passado pela comissão de justiça algo tão claramente alheio a constituição.

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