segunda-feira, 22 de março de 2010

PRESCRIÇÃO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS: incompatibilidade

PRESCRIÇÃO DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS: incompatibilidade

Parte considerável da doutrina nacional e da jurisprudência, inclusive do STJ, insiste em não reconhecer a tutela jurisdicional do ECA aplicada aos adolescentes em conflito com a lei, negando-lhes a sua autonomia científica, enxergando na medida socioeducativa uma pena. Com efeito, essa corrente não consegue dissociar o direito penal do direito infracional abordado pelo ECA, sustentando, por conseguinte, a prescrição com relação às medidas socioeducativas. O embasamento teórico dessa corrente funda-se na violação do princípio de igualdade, no caráter punitivo da medida socioeducativa, pois se trata de uma sanção imposta, possuindo, portanto, as mesmas características da pena. Logo, estaria impondo tratamento mais severo e rigoroso ao negar ao adolescente em conflito com a lei o benefício da prescrição. Castro e Tibyriçá perfilham desse entendimento:

Dessa forma, clara a aplicação do instituto da prescrição ao direito socioeducativo, até porque, caso não se reconheça tal possibilidade, estaríamos tratando o adolescente de forma mais severa que um imputável, a quem se reconhece esse direito, o que é vedado pelo art.227, § 3º, inc. IV e V da Constituição Federal.

O Des. Amaral e Silva , do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, decidindo favoravelmente à aplicação da prescrição nas medidas socioeducativas, assim se pronunciou:

O que não se admite no Estatuto (Direito Penal Juvenil) são respostas mais severas e duradouras do que em idênticas situações seriam impostas aos condenados adultos (...). Ora, se os adolescentes respondem por atos infracionais, submetendo-se às medidas restritivas de direitos até privativas de liberdade impostas através de ação judicial, é claro que tem direito subjetivo à prescrição. Do contrário, seria admitir para os adolescentes sistema mais rígido do que o dos adultos.

Os Tribunais brasileiros também vêm pontificando esse entendimento:

“ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – REMISSÃO – PRESCRIÇÃO – MEDIDA SOCIOEDUCATIVA.

As medidas socioeducativas perdem a razão de ser com o decurso do tempo. Conseqüentemente, a fortiori, tratando-se de menores, é de ser aplicado o instituto da prescrição. ( STJ – Resp. 226.379 – SC – 5ª T. – Rel. Min. Félix Fischer – Dju,08.10.2001).

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, encampando a corrente do direito penal juvenil, consolidou esse entendimento ao erigir a súmula 338, “ in verbis”:

Súmula 338 - A prescrição penal é aplicável nas Medidas Socioeducativa”



A prescrição das medidas socioeducativas, na visão de seus defensores, será calculada na forma do Art. 109 do Código Penal, reduzindo-se os prazos à metade em razão da menoridade, nos termos do Art.115 do mesmo diploma legal, considerando-se o prazo máximo da medida socioeducativa. Ocorre, entretanto, que os argumentos sustentados por essa corrente, embora impressionem num primeiro momento, não resistem à confrontação com os princípios constitucionais de proteção integral da criança e do adolescente e com a tutela diferenciada do ECA relativa aos atos infracionais, imputados aos adolescentes em conflito com a lei. Ad primam não se deve confundir medidas socioeducativas com pena. Esta é determinada, tem caráter retributivo e de prevenção geral e especial. Aquela, é indeterminada e, embora tenha caráter retributivo ( não se pode negar o seu caráter restritivo e privativo da liberdade), tem uma natureza jurídica preponderantemente pedagógica, ou seja, além daqueles objetivos de prevenção geral e especial, tem uma função eminentemente ressocializadora, pois visa reestruturar a vida do adolescente, que está na peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, no sentido de reverter os fatores criminógenos que carrega consigo e transformá-lo em um cidadão.

A idéia-força é mais de prevenção do que de repressão. A pena criminal é estabelecida em seus parâmetros quantitativos mínimos e máximos, correlacionando a conduta típica com determinada sanção, enquanto no sistema socioeducativo a normatividade é fluida e aberta, não havendo parâmetros determinados, já que a medida socioeducativa aplicada é por prazo indeterminado. Vê-se, todavia, que acima dessas regras existem princípios eleitos pelo legislador estatutário que são próprios das medidas socioeducativas e que não guardam qualquer compatibilidade com a pena, como, por exemplo, o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, a prioridade absoluta dos direitos das crianças e adolescentes, e a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, o que faz erigir, no particular, em face da especificidade desses valores, uma tutela jurisdicional diferenciada, especial.

Nesse diapasão, o Estado tem o dever de assegurar, como prioridade absoluta, a preservação dos direitos dos adolescentes, evitando-se que haja dano ou lesão, ou seja, a partir do momento em que se nega ao adolescente em conflito com a lei o direito de receber orientação pedagógica adequada, o Estado está se descurando dos seus deveres ao omitir-se, em face do transcurso do tempo, de atuar positivamente para evitar prioritariamente o resultado danoso para os direitos fundamentais dos adolescentes. A jurista e Promotora de Justiça Martha de Toledo Machado preleciona:

[...] é a estruturação especial do direito material de crianças e adolescentes (nos seus aspectos quantitativos e qualitativos), conformada no plano constitucional, que demanda e justifica a tutela jurisdicional diferenciada dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes [...] de outro lado, como as especificidades dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, no plano do direito material, estão fundadas na peculiar condição de pessoa em desenvolvimento [..], e na medida em que tais especificidades distinguem completamente os direitos fundamentais de crianças e adolescentes dos direitos fundamentais dos adultos, com maior razão me parecer que são elas que determinam as particularidades da tutela jurisdicional desses direitos.

Como se depreende, a prescrição, em sendo matéria de natureza material – penal – é incompatível com a natureza das medidas socioeducativas. Na prescrição da pena, o Estado, em face do decurso do tempo, perde o direito – poder-dever - de punir os imputáveis. No que se refere às medidas socioeducativas, o Estado não deve, em função de sua própria inércia, renunciar ao dever primário de reeducar o adolescente em conflito com a lei, na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, buscando à sua readaptação social.

Nem se argumente que o ECA prevê a sua aplicação subsidiária, pois na verdade o Art. 152 do ECA estabeleceu, restritivamente, a aplicação das normas de natureza processual penal, e não penal. Por outro lado, o Art. 226 do ECA admite a aplicação subsidiária das normas gerais do Código Penal, somente com relação aos crimes cometidos contra crianças e adolescentes e as infrações administrativas, não se aplicando aos atos infracionais praticados por adolescentes.

A ex-aluna da UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz – Jéssica Benjoíno Matos , na sua monografia intitulada “Prescrição de Medidas Sócio-Educativas: inadmissibilidade e aspectos inconstitucionais”, sustenta com argumentos sólidos e bastante desenvoltura a inaplicabilidade da prescrição nas medidas socioeducativas, como se pode observar pela leitura dos seguintes trechos extraídos de sua obra:

Sem qualquer esforço, pode-se extrair do excerto acima [...], que o Estatuto permitiu apenas a aplicação subsidiária das normas processuais penais e não das normas penais como querem.

A prescrição penal, no entanto, constitui matéria de direito material [...] de igual forma, o Art. 226 do ECA, situado no título VII, referente aos crimes e infrações administrativas, tem sido utilizado para fundamentar a prescrição de medidas sócio-educativas. Diz o referido artigo: “Art. 226. Aplicam-se aos crimes definidos nesta Lei as normas da parte geral do Código Penal e, quanto ao processo, as pertinentes ao Código de Processo Penal. Ora, o artigo citado faz clara referência aos crimes previstos no Capítulo I do título VII do Estatuto, e não aos atos infracionais praticados por adolescentes.



A monografista diferencia a natureza jurídica da pena em relação à natureza jurídica das medidas socioeducativas, salientando, com apoio em farto repertório doutrinário, que estas “são primordialmente pedagógicas e reeducativas”. Vale-se para melhor ilustrar à sua assertiva da transcrição do posicionamento do jurista Murilo José Digiácomo , o qual distingue, sutilmente, a natureza das medidas socioeducativas das penas, como se pode observar pela leitura do trecho extraído do seu artigo “Breves considerações sobre a proposta de lei de diretrizes socioeducativas”:

Com efeito, deve-se partir do princípio que a medida sócio-educativa, embora pertença ao gênero “sanção estatal”, posto que destinada unicamente a adolescentes que tenham comprovadamente praticado um ato infracional (conforme disposição expressa contida no Art. 114 da Lei nº 8.069/90), não possui natureza de pena, não estando sujeita aos parâmetros fixados pelo Código Penal para a aplicação de pena privativa de liberdade a imputáveis, tendo sua execução uma metodologia e um propósito também diferenciado (...) partindo do pressuposto elementar de que as medidas sócio-educativas, embora tenham uma certa carga retributiva (pois como dito se constituem numa resposta estatal reservada unicamente a adolescentes em conflito com a lei), não são nem se confundem com as penas prescritas aos imputáveis, não havendo qualquer prévia cominação de medida ao ato infracional praticado, seja ele de que natureza for, é óbvio que a medida sócio-educativa deve ser aplicada não em relação ao que o adolescente fez, numa perspectiva meramente retributivo-punitiva, mas sim em razão do que ele necessita para sua recuperação, de modo a evitar a reincidência.

A monografista conclui a sua obra, asseverando o seguinte:

Indiscutível, assim, que estender a aplicação da prescrição penal às medidas sócio-educativas é transgredir o necessário respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, abandonar a proteção integral que o Estado se comprometeu a proporcionar aos menores, bem como transpor para um segundo plano a questão infanto-juvenil, descartando a prioridade absoluta com que deveriam ser tratados os direitos da criança e do adolescente. É ofender, desse modo, princípios constitucionais de proteção à infância e juventude.

Alguns tribunais pátrios já vêm acolhendo esse entendimento ao não aceitar a prescrição nas medidas socioeducativas, como se observa:

MENOR – PRESCRIÇÃO – MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA.

Não se aplicam aos processos regidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente as normas do Código Penal que dizem respeito à prescrição.

Possuindo o menor bons antecedentes, tendo ele confessado o ato infracional praticado e inexistindo prejuízo para a vítima, que teve os objetos restituídos, outra não pode ser a medida aplicada senão a mais branda prevista no estatuto.

A maioridade atingida no correr do processo não afasta a possibilidade de aplicação das medidas previstas no ECA, desde que respeitado o limite de 21 anos ( TJMG – Acr. 288.211-6/00 – 3ª C. Crim – rel. Des. Mercêdo Moreira – DJMG 06.06.2003).



ECA. ATO INFRACIONAL. PRESCRIÇÃO. INADMISSIBILIDADE. Descabe a aplicação do instituto da prescrição da pretensão punitiva como forma de extinção da punibilidade da infração cometida por menor, conquanto o Artigo 152 do ECA preveja a aplicação subsidiária das normas gerais previstas na legislação processual. É que diferem os princípios em que se embasam o Direito Penal e o Direito da Criança e do Adolescente, sendo aquele instituto da prescrição afeito apenas ao primeiro. A prescrição da pretensão punitiva não se aplica aos procedimentos para a apuração de ato infracional, uma vez que o Estatuto Menorista, através de procedimento próprio, tem o objetivo de ressocializar o menor infrator para que ele possa remodelar o seu comportamento inadequado e, com isso, viver de acordo com as normas impostas pela sociedade.(TJRS, 2004).

Já que a prescrição, por ser matéria de natureza penal, é incompatível com a natureza peculiar das medidas socioeducativas e com os princípios constitucionais que informam a tutela diferenciada do ECA, como disciplinar a questão do decurso do tempo com relação às medidas socioeducativas? O ECA, na verdade, já previu o prazo máximo de cumprimento da medida de internação em três anos, a teor do que dispõe o § 3º do Art. 121 do ECA, o que pode ser estendido às demais medidas socioeducativas previstas no ECA, sendo certo que ninguém poderá cumpri-las após completar 21 anos de idade, nos termos estabelecidos no § 5º do mesmo dispositivo legal.

Ora, se não bastasse essa previsão legal, admitindo-se que o lapso de tempo ainda não ultrapassa três anos, ou o adolescente não completou 21 anos, o ECA permite, em face do caráter, predominantemente pedagógico das medidas soioeducativas, que o juiz deixe de aplicar a medida, por ser inócua e desnecessária, pedagogicamente. Nesse sentido, o Juiz fluminense e jurista Guaracy Vianna explicita:

Destarte, somente quando não se mostrar necessário proteger ou socio-educar pode o Estado-Juiz deixar de aplicar medidas protetivas ou sócio-educativas. Constatada essa circunstância, deixa-se de impor a medida ou de executá-la. Para isso inexiste um lapso pré-definido. É uma constatação concreta, caso a caso. Como as medidas são aplicadas levando-se em conta as necessidades pedagógicas (Art. 100 da Lei 8.069/90), já citado), pode-se afirmar, como o fez o ilustrado jurista público Caio Bessa Cyrino, Promotor de Justiça no Amazonas, numa conversa informal, que somente a ineficácia pedagógica pode impedir a aplicação de uma medida específica de proteção ou sócio-educativa. Na verdade, opera-se uma absoluta falta de interesse processual em continuar com o processo ou procedimento.

Como se infere pela argumentação trazida à colação, a prescrição é incompatível com os princípios – valores nucleares – que informam a natureza peculiar das medidas socioeducativas, pois violam, frontalmente, os princípios da proteção integral da criança e do adolescente, da prioridade absoluta dos direitos do adolescente, bem como a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, cuja sanção se diferencia por sua função, predominantemente pedagógica.

É dizer, não obstante a manifesta carga retributiva que é inerente à medida socioeducativa, como um sacrifício, restrição de direitos ou privação de liberdade em face do ato infracional que lhe é imputado, sua aplicabilidade está voltada menos para o ato infracional que praticou e mais para aquilo que o adolescente necessita para reestruturar sua conduta, buscando a real adaptação à sadia convivência familiar e comunitária, na esteira do que preconiza o Art. 100 do ECA.

Não há, como visto, qualquer dispositivo no ECA que autorize a aplicação subsidiária das normas gerais de direito penal, como v.g., a prescrição, com relação aos atos infracionais atribuídos aos adolescentes, de sorte que se entende, com a devida vênia do entendimento em contrário esposado por respeitáveis juristas e operadores do direito, que é inaplicável o instituto da prescrição nas medidas socioeducativas previstas no ECA.





5 comentários:

  1. Nós Agentes de Segurança Socioeducativo de Minas Gerais estamos enviando a "Voz do Agente" no endereço www.agentesocioeducativo.blogspot.com que é nossa ferramenta de luta para valorização da categoria.
    Mandamos um forte abraço

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  2. Não obstante a clareza e brilhantismo da argumentação aqui exposta, não há também de se aquilatar que o decurso temporal incide ainda com mais intensidade numa mente em formação, como é o caso dos adolescentes?
    Como o Magistrado poderia aferir, sob esta condição especial, da necessidade ou não de aplicação das medidas socioeducativas numa situação de grande interstício temporal?

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  3. Prezado leitor,
    Agradeço pela sua contribuição. A nossa posição é muito clara. Nós entendemos que o ECA é um microssistema, ou seja, é um direito novo, com postulados e princípios próprios, só devendo aceitar a aplicação subsidiária das disposições processuais pertinentes ( art. 152), naquilo que não contrariar suas diretrizes. O ECA, certamente, não é um direito penal de segunda categoria, ou "direito penalzinho', ou algo similar. O fato de valer-se de alguns instituto do direito penal, principalmente do garantismo penal, não o faz Direito Penal. Na verdade, a nova lei - 12.594, de 18/01/2012 - , e que entrará em vigor em abril sedimenta o nosso entendimento, na medida em que não elecou a prescrição como causa de extinção da medida socioeducativa. O art. 46 da nova lei estabelece que a medida socioeducativa será extinta: 1) pela morte do adolescente; 2)pela realização de sua finalidade;3)pela aplicação de pena privativa de liberdade, a ser cumprida em regime fechado ou semiaberto, em execução provisória ou definitiva;4) pela condição de doença grave que torne o adolescente incapaz de submter-se ao cumprimento da medida e nos demais casos previstos em lei. Assim, caro leitor, o juiz, verificando significativo interstício temporal, pode extinguir a medida por considerá-la inócua ou por ter atingido a sua finalidade, ou seja, o magistrado da infancia dispõe de outras alternativas para extinguir a medida, que não seja necessariamente a prescrição, que é , de fato, um instituto de Direito penal voltado para a pena, e medida socioeducativa, seguramente, não é pena. Esta, pelo menos, é nossa opinião.
    Um grande abraço
    Marcos Bandeira

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  4. Aleluia, até que enfim alguém saiu da geléia geral do direito penal juvenil! Parabéns, Marcos. O dia em que tivermos que nos socorrer do código penal de 1940 para encerrar uma ação sócio-educativa teremos que rasgar o Estatuto.
    Tenho remado contra a maré, mas agora vejo que não faço isso sozinho.
    Um abraço,
    Marcelo Gomes Silva
    Promotor de Justiça - SC

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  5. Boa noite! adorei este blog!!! Estou graduando em Direito e o tema da minha monografia fala exatamente sobre prescrição nas mediadas socioeducativas, apesar deste tema ter sido sumulado e bem Polemico. Gostaria que se possivel Pudesse me ajudar com materias referentes a este tema para enriquecer meu trabalho, estou lhe enviando meu e-mail
    carmem_celia@ig.com.br.
    desde ja agradeço.

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