segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O TRIBUNAL DO JÚRI DO SÉCULO XXI

O TRIBUNAL DO JÚRI DO SÉCULO XXI

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 29-07-2008

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O TRIBUNAL DO JÚRI DO SÉCULO XXI

A vetusta e tradicional instituição do Júri, sem dúvida, é a mais democrática do nosso país. Por meio dela, o povo exerce, diretamente, parte da soberania do Estado, consubstanciada no poder de julgar os seus pares nos crimes dolosos contra a vida.

O Júri foi instituído por decreto de D. Pedro, datado de 18.06.1822, para julgar exclusivamente crimes de imprensa. Era, então, composto por 24 jurados. Ao longo de quase 180 anos, a instituição sofreu várias modificações até chegar ao modelo atual, em que o corpo de jurados é composto por sete pessoas capazes e de comprovada idoneidade moral.

Não obstante as críticas arrematadas contra o Júri, principalmente sob o fundamento de que pessoas leigas não podem substituir juizes togados e preparados para julgar, a instituição sobrevive. Hoje, só nos Estados Unidos são realizadas cerca de 120.000 sessões de julgamento por ano, para a resolução de questões cíveis e criminais.

A bem da verdade, o jurado, extraído do meio social onde vivem também o réu e a vítima, despojado do tecnicismo jurídico que limita o juiz togado, domina os anseios e os sentimentos da comunidade, reunindo, assim, melhores condições de avaliar as circunstâncias pessoais e sociais que determinaram a conduta típica do acusado, a fim de propiciar um julgamento justo.

A instituição do Júri, entretanto, necessita amoldar-se às novas exigências constitucionais, quer em sua parte estrutural, quer funcional, à guisa dos princípios e garantias estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e nas convenções ou pactos internacionais aprovados por nosso País.

Destarte, não tem mais sentido a manutenção da esdrúxula e discriminatória cadeira do réu. Esta, como se sabe, estigmatiza e simboliza o princípio da presunção da culpabilidade, um dos pilares do CPP de 1941, de feição autoritária, já que inspirado no fascista Código Italiano. Na verdade, o acusado, como em qualquer julgamento, deve sentar-se ao lado de seu advogado, fornecendo-lhe informações para inquirir ou contraditar testemunhas, enfim, para exercer o direito à mais ampla defesa (CF, artigo 5º, LV) e assegurar a aplicação do princípio da presunção de inocência (CF, artigo 5º, LVII).

Perfilhando essa nova orientação e no sentido de garantir a paridade de armas, assegurando-se, em toda a plenitude, o direito de igualdade das partes, o juiz-presidente deve ser ladeado pela acusação e defesa, e não apenas pela acusação, o que aos olhos dos juizes leigos poderá exercer inegável influência no julgamento, mesmo porque as “feras” – os sete jurados – não precisam, como os juizes togados, motivar suas decisões, visto que decidem por convicção íntima. Isto sim, creio, ajustar-se-ia ao comando principiológico isonômico, preceituado no artigo 5º da Constituição Federal.

O interrogatório do réu, por força da nova redação dada ao artigo 188 do CPP pela Lei 10.792/03, não é mais considerado ato pessoal do juiz. Devido á incidência do princípio do contraditório, é facultado à acusação, defesa e jurados formular reperguntas ao acusado, relativas a algum ponto não coberto palas perguntas inicialmente feitas pelo juiz-presidente, constituindo-se, assim, em importante fonte para se construir a verdade processual, principalmente quando se tratar de co-autores, cuja única prova seja a delação. Impõe-se assinalar, entretanto, que deve ser garantido ao réu o direito ao silencio – autodefesa oriunda do Pacto de San José da Costa Rica, pelo qual “ninguém tem o dever de se auto-incriminar” e que já integra o nosso ordenamento jurídico por força do Decreto nº 678/92.

Em suma, antes de ser meio de prova, o interrogatório é meio de defesa. Não se pode coagir ou prender uma pessoa, obrigando-a a confessar a “verdade”, tampouco se pode inferir que o seu silêncio acarretará prejuízos à defesa. O Estado é que tem o ônus de provar a culpabilidade do réu, sendo este considerado inocente até prova em contrário, ou seja, até que haja sentença condenatória transitada em julgado.

Abraçando essa linha de raciocínio, nossos Pretórios já vinham há algum tempo interpretando a ausência do réu à sessão do julgamento do Tribunal do Júri, quando devidamente intimado, como seu direito de silenciar-se (RT nº 710/344). Com o advento da Lei nº 9.271, de 17.04.96, que deu nova redação ao artigo 367 do CPP, não há mais dúvida de que o julgamento pode realizar-se sem a presença do acusado, mesmo em se tratando de crime inafiançável (homicídio, v.g.), quando este, devidamente intimado para aquele ato, deixa de comparecer à sessão respectiva. Na verdade, o que é indispensável no processo penal brasileiro é a defesa técnica, e não a autodefesa, que fica ao alvedrio ou conveniência do acusado, como garantia de sua mais ampla defesa.

Desta forma, entendemos, em apertada síntese, que a instituição do Júri deve ser não apenas preservada, mas aprimorada à luz dos princípios constitucionais, no sentido de se adequar às exigências atuais, podendo, inclusive, ampliar a sua competência para julgar outros delitos além daqueles contra a vida, a fim de que continue a exercer soberanamente o excelso desiderato de realização da justiça humana, no âmbito do Estado Democrático de Direito.

O projeto de reforma do Código de Processo Penal, elaborado por uma comissão de juristas notáveis, dentre outros: Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes, Luiz Flavio Gomes, René Ariel Dotti e Rogério Lauri Tucci, anuncia algumas inovações na estrutura procedimental do Júri, como a sumarização do procedimento, a supressão do libelo, a remessa do relatório do processo aos jurados por ocasião de sua convocação, o registro do interrogatório e dos depoimentos das testemunhas pelo sistema de gravação, simplificação da quesitação, etc., o que, sem dúvida, contribuirá para o aprimoramento da instituição e sua adequação à nova ordem constitucional. Livrando-se das formalidades desnecessárias, tornar-se-á mais simples, constituindo-se num verdadeiro instrumento de efetividade da Justiça.

Não obstante essas importantes inovações, é curial que o Tribunal do Júri se torne um instrumento de acesso à Justiça, em sentido amplo, redimensionando o seu aspecto dinâmico, capaz de transformá-lo numa instituição flexível, aberta e ainda mais democrática.

Com efeito, é necessário que se modifique a estrutura conservadora, pesada, marcada por um recinto hermético e excludente em relação às pessoas mais simples da comunidade. É necessário que o Tribunal do Júri saia de sua redoma e vá ao encontro do povo, ou seja, as sessões de julgamento devem ser descentralizadas – realizadas no local onde ocorreu o crime doloso contra a vida, principalmente nos bairros periféricos de médias e grandes cidades, onde o Estado, normalmente ausente, é substituído pelos traficantes ou organizações criminosas.

Consoante recente relatório da ONU, existem no Brasil pouco mais de 50 milhões de pessoas indigentes – aquelas que sobrevivem com cerca de R$ 80,00 por mês – de sorte que, proporcionalmente, para cada três brasileiros, em media, um é miserável, valendo ressaltar que o Brasil só perde para a Serra Leoa, na África, no que toca ao tema desigualdade social. Destarte, esse cinturão de excluídos e miseráveis se concentra principalmente nos bairros periféricos, onde reinam o sentimento de impunidade e o descrédito nas instituições.

Diante desse diagnostico, implantamos, em 2001, na Comarca de Itabuna-BA, o projeto “Júri nos Bairros”, pelo qual toda a estrutura – juizes, promotores, advogados, serventuários, auxiliares de apoio, jurados e efetivo policial – é deslocada para um bairro periférico, onde tenha ocorrido o crime doloso contra a vida e que ofereça espaço adequado e seguro para a realização da sessão de julgamento.

Impõe-se assinalar que os bairros integram a sede da Comarca, de sorte que o projeto “Júri nos Bairros” não fere qualquer dispositivo da Lei de Organização Judiciária, que exige tão-somente que a sessão de julgamento seja realizada na sede da Comarca. Utiliza-se normalmente um local público, como um colégio, no qual é montada toda a estrutura – sala secreta, assembléia, palco, sala de refeição, sanitários, computadores, etc., sendo apenas reforçado o efetivo policial.

Na Comarca de Itabuna a experiência vem sendo coroada de êxito, com a realização de sessões de julgamento em vários bairros da cidade, como Ferradas (local onde nasceu o escritor Jorge Amado), São Caetano, Lomanto Junior e Mangabinha, as quais contam com a participação maciça da população, composta principalmente de pessoas simples e pobres, que muitas vezes não dispõem de numerário suficiente para pagar uma condução que as leve à sessão do Júri, no fórum da cidade. Alguns nunca assistiram a um julgamento, outros não conheciam o trabalho do juiz, do promotor ou do advogado, nem sabiam que as pessoas que cometem crimes dolosos contra a vida, em especial tentativa de homicídio, submetem-se a júri popular.

Nessa perspectiva, a instituição Justiça, tachada de “caixa-preta”, vai ao encontro do povo e mostra a sua cara.

O Tribunal do Júri, como órgão do Poder Judiciário, independentemente do resultado da sessão, propicia as condições para o acesso à Justiça, desnudando-o e mostrando a todos como são julgados seus pares. Contribui, desta forma, para resgatar a sua credibilidade, tão combalida atualmente, fazendo preponderar o império da verdadeira justiça humana.

Marcos Bandeira - Juiz da Vara do Júri da Comarca de Itabuna - 15 de dezembro de 2005

O MITO DA NEUTRALIDADE DO JULGADOR

O MITO DA NEUTRALIDADE DO JULGADOR

Por Marcos Antonio Santos Bandeira

publicado em 29-07-2008

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O MITO DA NEUTRALIDADE DO JULGADOR

O meu olhar crítico não se conforma com a assertiva de que o juiz deve ser um sujeito neutro. A neutralidade é anti-natural, pois todo ser humano carrega a sua história permeada de valores, ideologia, filosofia, visão de mundo, idiossincrasias, desejos, sentimentos, razão e emoções. Com efeito, o juiz é um ser humano, composto de carne e osso, e carrega toda essa tábua de valores até o final de sua vida, não podendo ser este sujeito todo poderoso, alheio à realidade e imune às influências internas e externas, para se tornar um inerte e autômato aplicador da lei. Carlos Gustav Jung sustenta que todo homem tem um arquétipo masculino e um feminino – yang e yin - caracterizando o lado masculino pelo princípio da ordem, racionalidade, do senso prático e do dever, enquanto o arquétipo feminino está voltado para o sentimento, a criatividade e a justiça. O magistrado sempre foi gestado numa cultura legalista e formalista, cuja sentença era elaborada por mero silogismo. A jurista Lídia Prado, apoiada nos ensinamentos de Jung assevera que “a alteridade é o arquétipo da anima na personalidade do homem e do animus na personalidade da mulher, que possibilita o encontro do Eu com o Outro dentro as totalidade (self), em um clima de respeito pelas diferenças. Tem sido vista como o arquétipo da democracia, da ciência, da criatividade, do amor conjugal e ao próximo, da decisão feita com justiça”. O julgador, com efeito, deve ser imparcial, não necessariamente neutro, pois não pode se distanciar de sua realidade cultural e nem evitar as influências da sua psique no momento de sentenciar. Não deve, portanto, esconder-se no mito da neutralidade para deixar verdadeiramente de julgar, de decidir as questões relevantes que lhe são submetidas. É preciso retirar a venda da Deusa da Justiça, para que o juiz desça do mundo abstrato e dos conceitos normativistas em que se encastelou durante muito tempo e encontre, atrás das regras, o ser humano, sua realidade sócio-cultural, seus valores, colocando-se na posição do outro, entrando em contato com os princípios da igualdade material, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, aspirando, assim, atingir o eqüitativo e o justo, através de um juízo valorativo, no âmbito dos limites da verdade processualmente possível. Imparcialidade nada tem a ver com neutralidade, ou seja, o juiz não precisa isolar-se da sua comunidade e seus valores para decidir com imparcialidade, contrarium sensu, o juiz deve estar sintonizado com o seu tempo, contextualizado e atento às mutações sociais, utilizando o seu poder criativo e sentimento para realizar, em toda a sua plenitude, a justiça no caso concreto.

A prof. Lídia Prado, apoiada nos ensinamento de Renato Nalini, assevera o seguinte:

“O magistrado apegado à dogmática do direito objetivo, convence-se das verdades axiomáticas e protege-se na couraça da ordem e da pretensa neutralidade. A parcela de poder a ele confiada e a possibilidade de decidir sobre o destino alheio, tornam-no prepotente: é reverenciado pelos advogados e servidores, temido pelas partes, distante de todos. Considerando-se predestinado e dono do futuro das partes no processo, revela-se desumano, mero técnico eficiente e pouco humilde, “esquecido da matéria-prima das demandas: as dores, sofrimentos e tragédias humanas”.

O juiz, nesse contexto, sempre foi um operador ou “escravo” da lei¹ que desenvolvia seu raciocínio jurídico para construir uma sentença como um mero silogismo² mesmo que servisse de “pretexto para a imposição de injustiças legalizadas³".

Como se depreende, na cultura de devoção ao código, as leis não possuem as respostas para todos os fenômenos jurídicos, porque o “legislador” não é onisciente e nem onipotente, como se os fatos passados, presentes e futuros na sua integralidade não pudessem lhe escapar ao controle, pelo menos em alguma particularidade. É de se ver que, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, o legislador não é completamente livre para fazer leis, mormente quando o conteúdo dessas leis venha ferir direitos fundamentais protegidos pela Constituição. O legislador tem limites e o juiz não mais pode ser um defensor intransigente da “regra”, agindo como se fosse um mero autômato e técnico do positivismo jurídico, aplicando o princípio da subsunção de forma acrítica, descontextualizada, sem que possa analisar criticamente o conteúdo da norma e exercer suas preferências axiológicas, no sentido de que possa atingir a justiça em cada caso que lhe é submetido. O jurista Dalmo Dallari, na obra já citada, arremata:

“Toda a sociedade humana necessita de normas, entretanto, estas não devem ser impostas arbitrariamente nem podem ser uniformes para todos os lugares e todas as épocas. Não basta a existência de leis, pois para que elas se justifiquem e sejam respeitadas é preciso que tenham origem democrática e sejam instrumentos de justiça e de paz.”

O novo paradigma exige a formatação de um novo juiz sincronizado com o Direito aberto, cuja decisão, livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor das promessas do constituinte. Esse novo modelo exige um juiz que tenha consciência do seu novo papel social e político, que entregue a sua setentia com sentimento, utilizando a sensibilidade e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando, assim, dos conceitos abstratos e da lógica tradicional, transformando-se, conforme o pensamento do jursita Renato Nallini, “num profissional atualizado, um solucionador de conflitos, polivalennte e intérprete da vontade da Constituição”.


¹ Por força dessas concepções, o juiz passou na Europa continental o papel que já lhe era dado na Inglaterra no começo do Século XVII, devendo ser um aplicador da lei, preso à forma e proibido de analisar criticamente os textos legais para buscar a aplicação mais justa, conforme os valores sociais vigentes. Foi por esse caminho que se chegou ao juiz “escravo da Lei”, expressão absurda incompatível com a condição de juiz e que torna irrelevante o valor moral ou intelectual do magistrado e serviu, como ainda tem servido, para reduzir os juízes à condição de serviçais passivos dos “fabricantes de leis”. (DALLARI, 2006, p. 11)

² Barroso (2005, p. 6-7) explicita: “nessa perspectiva”, a interpretação jurídica consiste em um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento, sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto”.

³ DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. cit. p. 13.

ESTADO, MAIOR VIOLADOR DOS DIREITOS HUMANOS

ESTADO, MAIOR VIOLADOR DOS DIREITOS HUMANOS

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 23-07-2008

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ESTADO, MAIOR VIOLADOR DOS DIREITOS HUMANOS

Não concebemos o Estado, senão como um ente incumbido de assegurar as condições mínimas de vida, no sentido de que os indivíduos ou grupos sociais atinjam seus fins culturais, econômicos, sociais e políticos, ou seja, a estrutura politicamente organizada de um Estado, representada por seus órgãos estruturais, tem como destinatário final a dignidade do próprio ser humano. Destarte, as idéias iluministas do Século XVIII, representadas pelos pensamentos exteriorizados de Locke, Monstesquieu, Voltaire e, principalmente, de Rosseau, de fato, contribuíram decididamente para a concepção do Estado moderno. Consoante o “Contrato Social” de Rosseau, cada indivíduo, para conviver pacificamente na sociedade, cede parcela de seus direitos individuais que são depositados na vontade geral, fonte de onde emana todo o poder do Estado. Apesar de algumas restrições ao pensamento de Rosseau, vê-se que no contrato social, não obstante as limitações das liberdades públicas, o indivíduo não cedeu todos os seus direitos e o Estado não deve invadir a esfera individual do cidadão, extrapolando assim os seus conhecidos limites, sem que haja a incidência da coerção do direito.

Nos conflitos individuais ou plurisubjetivos de interesses ou naqueles em que o cidadão é acionado pelo Estado, este, através dos órgãos jurisdicionais incumbidos de aplicar coercitivamente o direito, atua de forma eficaz, mercê dos privilégios processuais (foro privilegiado, prazo em dobro para recorrer e em quádruplo para contestar, etc.), sujeitando os direitos e bens dos particulares, de forma imediata, à satisfação do prejuízo experimentado pelo Estado (União, Estados-membros e municípios). Todavia, o princípio isonômico não é observado quando o Estado passa a ser o violador do direito individual, descumprindo as leis que ele próprio elaborou. Na verdade, aí o Estado passa a se constituir um gigante instrumento de opressão, violando o próprio contrato social, quando ele deveria ser o primeiro a dar o exemplo, ou seja, obedecer fielmente às leis para também eticamente exigir o seu cumprimento de todos os cidadãos.

O Ministro do STF Carlos Veloso, numa entrevista, disse textualmente que o Estado é hoje o maior violador de direitos. Essa assertiva é facilmente constatada através das enxurradas de ações de interesse da União que tramitam nas prateleiras da suprema corte. Muitas vezes é humilhante a situação de um cidadão que tem seu direito individual violado e provoca o Poder Judiciário para obter uma prestação jurisdicional. Com efeito, no âmbito da Justiça Comum, após submeter-se a um demorado processo, no qual é garantido o mais amplo direito de defesa e os privilégios processuais já conhecidos, o indivíduo que obtém uma sentença condenatória contra a União, Estado-membro ou Município, terá que aguardar a confirmação da sentença de primeiro grau pelo juízo de segundo grau de jurisdição, em conformidade com o descabido reexame necessário, exceto nos casos em que o valor da causa seja de até 60 salários mínimos. Depois de confirmada a sentença, o Presidente do Tribunal encaminha ao Poder Executivo uma lista de valores que deverão ser pagos pelas pessoas jurídicas de direito público, em decorrência da decisão judicial em seu desfavor, para que a dotação correspondente ao referido débito seja incluída no orçamento do exercício seguinte, para seu pagamento atualizado até o final desse exercício. É o sistema de precatórios.

Perguntar-se-á: se, mesmo incluído no exercício seguinte e com dotação orçamentária, não houver pagamento, o que acontece? O artigo 100, § 2º, da Constituição Federal estabelece que compete ao Presidente do Tribunal que pronunciar a decisão exeqüenda autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. No mesmo sentido, preceitua o art. 731 do Código de Processo Civil que, se o credor for preterido no seu direito de preferência, o Presidente do Tribunal que expediu a ordem, poderá, depois de ouvido o Chefe do Ministério Público, ordenar o seqüestro da quantia necessária para satisfação do débito. Entretanto, tal dispositivo tem recebido interpretação taxativa pela Suprema Corte, que não tem admitido qualquer outra razão que justifique o referido seqüestro, entendendo que o caso de preterição do credor não pode ser equiparado às situações de não-inclusão da despesa no orçamento, de vencimento do prazo para quitação ou qualquer outra espécie de pagamento inidôneo, situações em que ficaria configurado o descumprimento de ordem judicial, sujeitando o infrator à intervenção federal ou estadual, conforme o caso.

O STF entende ainda que um dos pressupostos para a intervenção de um ente federativo em outro ente político da Federação é que o descumprimento da sentença transitada em julgado seja voluntário e intencional. Assim, o atraso do pagamento de precatórios em razão da insuficiência de recursos ensejaria a exclusão do elemento volitivo, pois seria uma espécie de inadimplência involuntária.

Ora, como é sabido, qual o interesse do cidadão na intervenção do Estado? Já sabemos que os interesses políticos partidários são iniludivelmente mais fortes e não permitem tal situação inusitada, pelo menos em nosso Estado. A bem da verdade, o cidadão, apesar de possuir parcela da soberania popular de onde emana todo o poder, ficará a ver navios, pois não terá o seu direito satisfeito ante o poder arbitrário e ilegal do Estado.

Indagar-se-á: o que deve fazer o cidadão para fazer valerem seus direitos? Percorrer o doloroso caminho do precatório? A bem da verdade, o cidadão, diante da constatação de sua própria impotência, acaba, invariavelmente, desistindo e aceitando caladamente a perda como algo absolutamente normal. Ocorre, entretanto, que o Estado, agindo como verdadeiro instrumento de opressão, foge de seu verdadeiro compromisso voltado para a preservação da dignidade humana.

Na verdade, não entendemos a permanência da restrição legal de que pessoas jurídicas de direito público da esfera estadual, distrital ou municipal figurem no pólo passivo em ações propostas nos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, como estabelece o art. 8º da Lei nº 9.099/95, visto que a Lei 10.259/01, que regula os Juizados Especiais Cíveis Federais, permite a presença da União e das autarquias federais no pólo passivo das demandas ajuizadas perante aqueles Juizados. Outrossim, a Lei 10.259/01 estabelece que não há benefício de prazo em favor da Fazenda Pública (art. 9º), impôs à entidade pública federal o dever de produzir provas contra si mesma (art. 11), excluiu o reexame necessário (art. 13) e dispensou a expedição de precatórios para o pagamento de débitos por entidades públicas federais (art. 17), tudo em se tratando de demandas propostas nos Juizados Especiais Cíveis Federais. Observa-se que a referida lei retirou da Fazenda Pública prerrogativas inaceitáveis, o que significou um relevante avanço no sentido de possibilitar ao cidadão condições dignas para pleitear em Juízo contra o Estado, sem se sentir impotente diante deste gigante inatingível.

Não obstante a inegável importância do supracitado diploma legal, não se pode olvidar que as inadmissíveis prerrogativas processuais em favor da Fazenda Pública permanecem no âmbito da Justiça Comum, quando o valor da causa ultrapassar 60 salários mínimos. Rogamos aos nossos legisladores para que remediem essa situação tão aviltante e que coloca o Estado como gigante inatingível e o maior violador dos direitos humanos. Não podemos conceber um Estado como algo acima do bem e do mal e longe da incidência da norma legal, mas como um ente politicamente organizado e que visa, acima de tudo, preservar e defender a dignidade humana.

Bel. Marcos Antonio Santos Bandeira – Juiz de Direito.

MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI EM PLENÁRIO

MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI EM PLENÁRIO

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 14-07-2008

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MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI EM PLENÁRIO

A nova lei revoga alguns dispositivos da Lei de Organização Judiciária do Estado da Bahia que disciplina o Tribunal do Júri, precisamente o § 1º do art. 94 e o art. 98, I e VI, pois, como se depreende da leitura do § 1º do art. 433 da Lei nº 11.689/2008, o sorteio dos jurados para a reunião periódica será realizado entre o 15º e o 10º dia útil da instalação da sessão, e não no período de 15 a 30 dias antes da data designada para a sessão. Verifica-se que, também, o libelo foi extinto e que não são mais vinte e um, e sim exatos vinte e cinco jurados. Com efeito, infere-se que o legislador local pecou ao disciplinar tema afeto à competência da União - a seara processual penal -, quando deveria limitar-se às peculiaridade locais, como o período e a forma das reuniões periódicas e os fatos que ensejam a convocação de reuniões extraordinárias, expondo-se assim à revogação de vários de seus dispositivos. Deveria, v.g., em consonância com o princípio de acesso à justiça e da justiça itinerante, estabelecer expressamente a possibilidade e as condições de realização de júri nos bairros ou distritos judiciários, com a utilização de equipamentos públicos, prestigiando, assim, a justiça itinerante.

O Tribunal do Júri, de conformidade com o disposto no art. 92, I e II da nova LOJ, se reunirá mensalmente na Comarca de Salvador, e bimestralmente nas demais Comarcas, o que importará, neste último caso, na preparação de várias sessões de dois em dois meses, com intervalo de pelo menos 30 dias, para que sejam realizadas as reuniões subseqüentes.

O início dos trabalhos da sessão do Tribunal do Júri não traz qualquer inovação importante, a não ser um melhor apuro técnico e precisão nos dispositivos relativos à constituição do Conselho de Sentença e intimação de testemunhas. Todavia é previsto, expressamente, o que a jurisprudência já admitia, ou seja, a possibilidade de realização de sessão do júri sem a presença do acusado solto, desde que previamente intimado, quebrando assim o mito da presença obrigatória do acusado no julgamento pelo Tribunal do Júri, consoante se infere pela leitura do art. 457 da Lei nº 11.689/2008. O júri também será realizado se o advogado do querelante ou o assistente de acusação, devidamente intimados, não comparecerem a sessão.

O quorum para a instalação da sessão continua o mesmo, ou seja, 15 jurados, devendo o juiz, certificada a existência de quorum, anunciar o processo que será submetido a julgamento. Após o anúncio do processo deverão as partes suscitar qualquer nulidade posterior à pronúncia, sob pena de preclusão, ressalvada a ocorrência de nulidade absoluta.

O legislador não andou bem ao determinar que o Ministério Público fale por último com relação às recusas imotivadas aos jurados, quando deveria reservar à defesa a última palavra. Na eventual possibilidade de separação de julgamento em plenário, a nova lei determina que o autor do fato deva ser julgado em primeiro lugar, aplicando-se o critério de coincidências de recusas em caso de co-autoria. Entendo que este dispositivo deva seguir de guia ao juiz, antes de realizar a sessão, pois não vislumbro como conciliar a situação quando as recusas imotivadas aos jurados em plenário determinarem que o partícipe seja julgado em primeiro lugar. A única solução seria então dissolver o Conselho de sentença e convocar nova sessão ou suspender a sessão por alguns instantes, sortear os jurados suplentes e convocá-los imediatamente para comparecerem a referida sessão. Formado o Conselho de sentença com o sorteio dos sete jurados e feita a exortação, o juiz deverá mandar distribuir aos juizes leigos cópias da pronúncia ou de decisões a ela posteriores e do relatório do processo, devendo o oficial de justiça certificar-se da incomunicabilidade e justificá-la.

Na instrução plenária, pela ordem, o juiz, o Ministério Público, o assistente de acusação e o defensor do acusado farão, diretamente, perguntas ao ofendido e as testemunhas, permanecendo, contudo, o sistema presidencialista com relação aos jurados, os quais poderão formular perguntas ao ofendido e as testemunhas, por intermédio do juiz. O legislador foi feliz neste particular, pois o juiz, antes de conceder a palavra ao jurado para as perguntas, deverá alertá-lo e orientá-lo para que formule perguntas objetivas e sem que deixe transparecer qualquer tendência acusatória ou absolutória, de sorte que o juiz figure como filtro entre os jurados e as testemunhas ou declarantes.

As partes e os jurados poderão requerer algumas diligências, como acareações, reconhecimento ou esclarecimentos de pessoas. Entretanto a leitura de peças (que consome normalmente muito tempo) agora fica limitada às provas colhidas em carta precatória, ou provas de caráter cautelar ou irrepetíveis, como o exame de corpo de delito, por exemplo. O interrogatório do acusado em plenário, como meio de defesa, será o último ato da instrução criminal, cujas perguntas serão realizadas nesta ordem: juiz, Ministério Público, assistente de acusação, querelante (quando for o caso) e o defensor . Os jurados, nos mesmos moldes da inquirição de testemunhas, formularão as perguntas por intermédio do juiz. A nova lei disciplina o uso de algemas no acusado em plenário, admitindo a sua utilização em casos excepcionais e se for absolutamente necessária para manter a ordem no recinto e para proteger testemunhas.

A possibilidade de gravação dos depoimentos de testemunhas e do interrogatório do acusado emprestará maior fidelidade às provas e celeridade na sessão, podendo reduzir, em até 60%, o tempo em relação às audiências tradicionais, eliminando, inclusive, a transcrição, como afirmou Rene Bernardes, diretor comercial da empresa Kenta Informática, responsável pela instalação do equipamento em vários tribunais do País. Esta é uma grande ferramenta que o juiz terá nas mãos, sendo que o Estado da Bahia poderá dar um salto de qualidade na prestação jurisdicional, caso a Presidência do TJBA estenda este equipamento de gravação audiovisual para as demais Comarcas do interior.

Como não existe mais o libelo e a pronúncia não deve conter menção às circunstâncias agravantes – que não sejam qualificadoras -, a acusação poderá sustentar a existência de circunstância agravante em plenário. O tempo para as partes foi reduzido de duas para uma hora e trinta minutos. Inobstante, não entendemos a razão da ampliação do prazo para a réplica e tréplica para uma hora, se o objetivo era tornar mais célere o procedimento e o espaço de meia hora sempre foi suficiente para contrariar os fundamentos da parte ex adversa ou para inovar na tese inicialmente apresentada pela defesa. A situação se complica ainda mais quando houver mais de um acusado, quando, então, o tempo de acusação será acrescido em mais uma hora, e elevado ao dobro o tempo da réplica e da tréplica.

A nova lei regulamenta os “apartes”, atribuindo ao juiz a conveniência de conceder o “aparte” negado pelo debatedor que está com a palavra, toda vez que entender que é relevante para o esclarecimento de algum ponto importante, devendo, neste caso, conceder até três minutos para que a parte que pediu se pronuncie, acrescendo ao tempo da parte que teve a sua fala interrompida.

A lei não mais fala em sala secreta, utilizando a expressão “sala especial”, de sorte que, numa interpretação constitucional voltada para a democratização do Tribunal do Júri, apoiada no princípio da publicidade dos atos jurisdicionais insculpido no inc. IX do Art. 93 da CF,será possível o juiz do tribunal do júri estruturar uma sala com vidros transparentes, devidamente separada do público e do acusado, para que estes acompanhem a movimentação da votação, pois o que deve ser preservado é o sigilo do voto, e não o sigilo da votação, como já sustentávamos em artigo publicado na coletânea “Princípios Penais Constitucionais”[1]. Acabaram-se as decisões do Tribunal do Júri por unanimidade. Agora, a votação será por maioria de votos. Caso ocorra uma seqüência positiva ou negativa de quatro votos, encerra-se a votação, preservando-se, assim, o sigilo do voto em absoluto.

Com relação à quesitação, impõe-se uma análise cuidadosa, pois, a pretexto da simplificação dos quesitos, poderão ocorrer situações capazes de ensejar até a nulidade do julgamento. O primeiro quesito será sobre a materialidade e o segundo sobre a autoria e a participação. O quesito relativo à letalidade foi expurgado. Logo após esses dois primeiros quesitos será feito o seguinte quesito: o jurado absolve o acusado? Esta pergunta não será formulada se, v. g., a tese defensiva for negativa de autoria ou de participação e seja acolhida pelos jurados ao responderem negativamente ao 2º quesito. O quesito absolutório será sempre submetido aos jurados caso a tese defensiva seja uma excludente de criminalidade ou de culpabilidade, devendo o juiz na sentença absolutória declinar o inciso correspondente à tese defensiva esposada em plenário. Todavia, não se sabe ao certo se o quesito será formulado quando a defesa sustentar a absolvição do acusado com fundamento na comprovação da inexistência do fato ou de não haver prova da existência do fato. Nesse caso, creio que bastaria a resposta negativa ao primeiro quesito – materialidade – restando prejudicados os demais quesitos. Caso os jurados decidam pela condenação ao responder negativamente ao quesito absolutório, o juiz, em seguida e pela ordem, indagará sobre alguma causa de diminuição de pena sustentada pela defesa, como, v.g., homicídio privilegiado. Em seguida, indagará sobre alguma qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecida na pronúncia. Aqui poderá ocorrer a figura do homicídio qualificado-privilegiado, caso os jurados reconheçam que o acusado matou, v.g., por motivo fútil (circunstância subjetiva) e mediante surpresa ou asfixia (circunstância objetiva). Caso a defesa sustente a desclassificação para o delito de lesões corporais seguido de morte, o quesito correspondente deverá ser formulado após o 2º quesito que versa sobre a autoria/participação, ou sobre o 3º, caso haja alternativamente uma tese absolutória, quando então esta deverá ser quesitada em primeiro lugar. Se a tese acusatória for a de crime de homicídio na sua forma tentada, o juiz, após reconhecida a materialidade e autoria delitiva, deverá formular o seguinte quesito: assim agindo, o acusado deu início à execução de um crime de homicídio que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, ou seja, por que foi impedido por terceiros? Caso a resposta seja positiva, indagar-se-á sobre a tese absolutória ou de diminuição de pena sustentada pela defesa. Caso a resposta seja negativa sobre a tentativa – animus necandi – operar-se-á a desclassificação própria, cabendo ao juiz-presidente proferir a sentença indicando a nova tipificação legal. Se em face da desclassificação operada em plenário configurar crime de menor potencial ofensivo, a competência será do juiz-presidente do Tribunal do Júri, não mais se remetendo os autos para o Juizado Especial Criminal, podendo, inclusive, propor a transação penal ou outro benefício previsto na lei. Evidentemente, se o órgão acusador não se conformar com a decisão desclassificatória dos jurados, deverá recorrer, e o juiz-presidente não poderá aplicar os dispositivos pertinentes aos crimes de menor potencial ofensivo. A questão relativa à quesitação comportaria ainda outras abordagens e questionamentos, mas em face da limitação de espaço do presente artigo não avançaremos e encerraremos por aqui.


Marcos Bandeira

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[1]BANDEIRA, Marcos Antônio Santos. Princípios Penais Constitucionais. Tribunal do Júri: uma leitura constitucional e atual. Ed. Podivm: Salvador-BA, 2007, p. 470. Deduz-se, portanto, que o sigilo do voto é que deve ser preservado como cláusula pétrea, inclusive, na sua plenitude, como permite o sistema francês que autoriza o encerramento da votação após alcançar o 4º voto unânime, seja no sentido de condenar ou absolver o acusado, mantendo-se assim absolutamente o sigilo do voto.

MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI (PARTE 2)

MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI (PARTE 2)

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 14-07-2008

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MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI (PARTE 2)

A primeira fase do procedimento relativo aos crimes de competência do Tribunal do Júri se encerra com a pronúncia, que, em regra, deverá ser proferida na própria audiência. Todavia o novo dispositivo, embora reproduza na essência o antigo art. 408, é mais técnico, ao estabelecer expressamente a pronúncia do acusado como autor ou partícipe do fato delituoso que lhe é imputado, bem como ao especificar que o juiz deverá se limitar a indicar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado, bem como as circunstâncias qualificadoras e eventuais causas de aumento de pena. Com efeito, o dispositivo segue a esteira da boa doutrina, preconizando que o juiz deverá fundamentar a decisão – juízo de admissibilidade de acusação - valendo-se do seu livre convencimento, podendo formar o seu juízo com relação à materialidade delitiva mesmo diante de eventual falha do exame de corpo de delito direto ou até mesmo valendo-se do mero corpo de delito indireto. Ao estabelecer expressamente o que deve constar da pronúncia, a nova lei evita que o juiz mencione na decisão de pronúncia circunstâncias agravantes ou atenuantes ou causas de diminuição de pena, como já vinham se posicionando a doutrina e os tribunais.

A grande inovação e que deverá emprestar maior celeridade aos processos de competência do Tribunal do Júri é que a intimação da pronúncia poderá ser feita por edital ao acusado que estiver em liberdade e não for localizado pelo oficial de justiça. O libelo foi extinto, de sorte que operado o efeito pro judicato da pronúncia, o juiz deverá inicialmente fundamentar a manutenção, revogação ou substituição de eventual prisão provisória anteriormente decretada, ou até mesmo deliberar sobre a necessidade de decretação de prisão preventiva ou medida cautelar ao acusado solto. Desta forma, a nova lei acaba expressamente com a prisão decorrente exclusivamente da pronúncia, de sorte que a prisão provisória só deve ser decretada com apoio em razões de ordem cautelar. Logo em seguida, o juiz deverá intimar a acusação e defesa para apresentarem, no prazo de 5 (cinco) dias, rol de testemunhas que deverão depor em plenário, no máximo de 5 (cinco), facultando-lhes ainda a possibilidade de juntar documentos e requerer diligências. O juiz deverá deliberar sobre todos os requerimentos de provas a serem produzidas em plenário, ordenando diligências ou sanando eventuais nulidades, devendo ao final elaborar relatório e incluir o processo em pauta.

Outra inovação importantíssima é que a nova lei extingue o esdrúxulo recurso de ofício ou reexame necessário na absolvição sumária, cuja decisão desafia tão-somente o recurso voluntário de apelação. As causas que ensejam a absolvição sumária foram ampliadas, podendo o juiz absolver sumariamente o acusado quando restar provada a inexistência do fato, de não ser o acusado o autor ou partícipe do fato, bem como não constituir o fato infração penal e quando ficar demonstrada, de forma irretorquível e estreme de dúvida, a existência de alguma excludente de criminalidade ou de culpabilidade. Com relação a esta última hipótese o novo parágrafo único do art. 415 traz uma importante inovação, propiciando a possibilidade do acusado que for considerado inimputável pelos peritos, nos termos do art. 26 do Código Penal, ser julgado pelo Tribunal do Júri, quando esta for apenas mais uma das diversas teses apresentadas pela defesa, ou seja, o juiz só poderá absolver sumariamente o inimputável quando a inimputabilidade prevista no art. 26 do Código Penal for a única tese defensiva. Com relação à impronúncia, a nova lei reproduz na essência o antigo art. 409 e seu parágrafo único do CPP, todavia, com melhor apuro técnico ao descrever a inexistência de indícios de autoria e participação do acusado e exigir a decisão motivada do juiz. A novidade é que a impronúncia não mais desafia o recurso em sentido estrito, mas o recurso voluntário da apelação.

Com relação à composição do júri, agora, pela nova lei foi alterada para 1 juiz togado e 25 jurados recrutados junto às associações de classes, associações de bairros, entidades associativas e culturais, instituições de ensino, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros grupos comunitários, devendo a primeira lista geral ser publicada até o dia 10 de outubro e a definitiva até o dia 10 de novembro. O sorteio dos 25 jurados para a instalação da reunião periódica não mais exige a presença de um menor de 18 anos, como exigia o art. 428 do antigo CPP, devendo agora ser realizado a portas abertas, entre o 15º e o 10º dia, na presença de um representante do Ministério Público, da OAB e da Defensoria Pública. A nova lei se adequa à legislação cível ao permitir o alistamento obrigatório do jurado a partir dos 18 anos de idade, estabelecendo ainda que a recusa injustificada do jurado, o seu não comparecimento no dia marcado para a sessão ou sua retirada do recinto antes de ser dispensado pelo juiz presidente o sujeitará à multa de 1 a 10 salários mínimos, de conformidade com a sua condição econômica. Em compensação, além do exercício efetivo da função de jurado estabelecer presunção de idoneidade moral e assegurar prisão especial, em caso de crime comum, até o julgamento definitivo, também dará ao jurado o direito de preferência, em igualdade de condições, nas licitações públicas e no provimento, mediante concurso, de cargo ou função pública, bem como nos casos de promoção funcional ou remoção voluntária, sendo vedado qualquer desconto nos seus vencimentos ou salário no dia que comparecer à sessão do júri.

Em seguida, comentaremos as modificações ocorridas no plenário do júri, inclusive no que toca à quesitação e a desclassificação para crimes de menor potencial ofensivo.


Marcos Bandeira

MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI – Lei 11.689/2008

MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI – Lei 11.689/2008

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 14-07-2008

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MUDANÇAS NO TRIBUNAL DO JÚRI – Lei 11.689/2008

O advento da publicação das leis sancionadas no último dia 09 de junho do corrente ano pelo presidente Lula, que entrarão em vigor no prazo de 60 dias, além de sepultar o esdrúxulo “protesto por novo júri”, para condenados a pena igual ou superior a 20 anos pela prática de um único crime,muda radicalmente o procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, adequando-os, assim, aos postulados constitucionais, mormente no que toca ao princípio da presunção da inocência e do devido processo legal. Como se sabe, o nosso vetusto Código de Processo Penal é de inspiração fascista, de feição manifestamente autoritária e norteada pelo princípio da presunção da culpabilidade, pelo qual o nome do acusado pronunciado já era lançado no rol dos culpados, antes mesmo que houvesse uma sentença condenatória transitada em julgado.

O novo paradigma está alicerçado no Estado Democrático de Direito, pelo qual o acusado de uma infração penal deve ser tratado como presumivelmente inocente durante a tramitação do processo, sendo-lhe conferido o direito a ampla defesa, ao contraditório, o direito ao silêncio e o de não produzir provas contra si, bem como o de ser julgado em um prazo razoável.

A nova lei torna o interrogatório um meio de defesa, estabelecendo que este será o último ato da instrução criminal, ou seja, o acusado, somente após verificar todo o arsenal probatório contra ele produzido, aferirá a conveniência ou não de utilizar do direito ao silêncio. O juiz, ao receber a denúncia ou a queixa, determinará a citação do acusado para responder, no prazo de 10 dias, podendo suscitar preliminares e opor exceções. Acusação e defesa poderão arrolar nesta primeira fase até oito testemunhas. Caso o acusado não ofereça resposta no decêndio legal, o juiz nomeará defensor para tal, sendo que logo em seguida ouvirá o Ministério Público ou querelante sobre as preliminares e documentos, decidindo e podendo até extinguir o processo sem julgamento de mérito.

Essa inovação é importantíssima, pois preserva as garantias fundamentais do acusado no limiar da ação, propiciando as condições necessárias para evitar o desenvolvimento de um processo viciado, ou sem suporte probatório mínimo que justifique o exame do meirtum causae. O juiz, após dirimidas essa questões preliminares, deverá marcar audiência para a produção de provas orais, no prazo máximo de 10 dias.

Na audiência de instrução e julgamento, que poderá ser gravada, o juiz tomará, pela ordem, as declarações do ofendido, quando possível, inquirirá as testemunhas arroladas pela acusação e defesa, esclarecimentos de peritos, acareações e ao reconhecimento de pessoas, e por último, procederá o interrogatório do acusado (meio de defesa), conferindo-lhe o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si. Um detalhe importante: as partes começam inquirindo as testemunhas diretamente, e o juiz, se for necessário, fará perguntas por último, complementando. Como se observa, nesta fase procedimental é extinto o sistema presidencial de inquirição de testemunhas. Todas as provas deverão ser produzidas nesta audiência, onde prepondera o princípio da oralidade. Ultimada a instrução, a acusação e defesa oferecerão alegações orais, pelo prazo sucessivo de 20 minutos, prorrogáveis por mais 10. Caso haja mais de um acusado, o tempo previsto para acusação e defesa será individual, ou seja, se houver três acusados, o prazo para acusação e defesa será de uma hora. A inovação preserva a figura do juiz como protagonista do processo, dando-lhe a faculdade de produzir provas complementarmente às partes, sempre que for necessário para esclarecer algum ponto relevante para o seu convencimento. Encerrados os debates, o juiz deverá proferir decisão em audiência, ou no prazo máximo de 10 dias. Todo o procedimento deverá ser concluído no prazo máximo de 90 dias. As inovações são importantíssimas e certamente emprestarão maior celeridade aos processos de competência do Tribunal do júri.

Marcos Bandeira – Juiz de Direito da Vara do Júri da Comarca de Itabuna - BA

O SUCESSO DA EXECUÇÃO DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS EM ITABUNA

O SUCESSO DA EXECUÇÃO DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS EM ITABUNA

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 13-07-2008

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O SUCESSO DA EXECUÇÃO DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS EM ITABUNA

Marcos Bandeira*

Quando a Fundação Reconto passou a funcionar na Comarca de Itabuna em 2005, pode-se afirmar que o ECA passou a ser efetivado e implementado, principalmente, no que toca à execução de medidas sócio-educativas em meio aberto. A transição da doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral ainda encontra muitas resistências, inclusive junto aos próprios operadores do direito, que, em boa parte, desconhecem a evolução do direito infanto-juvenil, a luta árdua pela conquista dos direitos humanos desta parcela vulnerável da população inscrita nas convenções internacionais e o grande percurso que caminhamos para inserir a doutrina de proteção integral no art. 227 da CF e no Estatuto da Criança e do Adolescente, este ilustre desconhecido, que acaba de adquirir a sua maioridade.

A medida de internamento, que deve ser aplicada em caráter excepcional, sempre foi a regra para muitos juízes da Vara da Infância e Juventude, em face da ausência de estrutura adequada para a execução das medidas em meio aberto ou da medida de semiliberdade. Muitas vezes aquela infração praticada pelo adolescente, caso fosse praticada por um imputável – maior de 18 anos – jamais o levaria para o cárcere, em face de se tratar de crime de menor ou médio potencial ofensivo. Todavia o adolescente invariavelmente era privado de sua liberdade por até três anos e acabava cumprindo a medida de internamento em Salvador, com a quebra dos vínculos familiares e comunitários. Em 2004 o Sul da Bahia, principalmente, as Comarcas de Itabuna e Ilhéus, encaminharam aproximadamente 76 adolescentes para cumprirem medida de internação no CAM em Salvador, no entanto, já em 2005, esse número foi reduzido para 36. Em 2006 só houve duas internações. No ano de 2007 esse número voltou a crescer, entretanto, deve-se ao vertiginoso aumento da violência urbana nas cidades com mais de 200 mil habitantes.

Impõe-se ressaltar que jamais defenderemos a irresponsabilidade ou impunidade do adolescente em conflito com a lei, contrario sensu, não abriremos mão de sua responsabilização quando da prática de algum ato infracional, pautada, sobretudo, numa intervenção pedagógica e com carga retributiva, que o faça refletir sobre o ato que cometeu, reconhecendo o erro e a reprovabilidade da conduta, desenvolvendo e experimentando assim a aflição decorrente da restrição de seus direitos ou da privação de sua liberdade, total ou de forma semi-plena. Destarte, torna-se imperioso que a equipe interdisciplinar introjete valores que sejam capazes de transformar a vida do adolescente, amoldando o seu comportamento aos padrões normais exigidos pela sociedade. Repudiamos a política exclusivamente repressiva fundada no temor, crueldade e desumanização das sanções, sem a existência de um projeto pedagógico de ressocialização. Na verdade, manter o adolescente “preso” sem qualquer intervenção educativa ou laboral, pode até satisfazer aqueles que querem se livrar de qualquer maneira de sua nefasta presença, entretanto, estará apenas retroalimentando o seu potencial criminógeno e contribuindo para aumentar a violência em nossas cidades, pois, com certeza, sairá do cárcere embrutecido e mais familiarizado com a criminalidade.

Na Comarca de Itabuna foi implantada a metodologia da justiça consensualizada e restaurativa, pela qual é possível realizar num só dia mais de cinqüenta audiências envolvendo adolescentes em conflito com a lei, obtendo-se em alguns casos que ocasionaram danos, a reparação material e moral dos mesmos. Na primeira audiência de apresentação do adolescente, o juiz, a promotora, a equipe interdisciplinar, o adolescente, seus pais e responsável e a defesa técnica, buscam a medida mais adequada para aquele caso concreto, tudo pautado no consenso e no senso de responsabilidade de todos os atores envolvidos na problemática. Já na primeira audiência, sem qualquer instrução processual, é aplicada a remissão clausulada com uma medida de liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade – transação sócio-educativa - como forma de suspensão do processo. O adolescente é encaminhado à Fundação Reconto, onde uma equipe interdisciplinar composta por uma coordenadora pedagógica, psicólogo, assistente social, pedagogos e técnicos, acolhe o adolescente e realiza o estudo de caso elaborando o PIA – Plano Individual de Atendimento - no qual é conhecida a história do adolescente, diagnosticados os seus problemas e estabelecidas as sua metas. O adolescente é inserido em oficinas de informática, espiritualidade, dança, música, letramento, garçon, dentre outras, em conformidade com suas aptidões pessoais. Além de ser acompanhado pela equipe interdisciplinar, ele é monitorado pelo Juiz e pela Promotora da Vara da Infância e Juventude, que realizam periodicamente audiências para leitura de relatório, nas quais avaliam o desempenho do adolescente no cumprimento da medida sócio-educativa aplicada, podendo ocorrer substituição, desligamento antecipado da medida ou até regressão. O adolescente passa por diversas fases no projeto, desde o acolhimento, aprendendo a conviver, projeto de vida e até a inserção no mercado de trabalho, quando, então, estará apto para exercer alguma atividade laborativa e se desligar da medida que lhe foi aplicada.

Na Fundação Reconto em Itabuna já passaram desde a sua fundação mais de 250 adolescentes cumprindo as medidas sócio-educativas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. A maioria dos adolescentes que estavam envolvidos com a criminalidade e drogas está integrada à sociedade, exercendo atividades lícitas em vários setores, como instrutores de informática, garçons, motoristas de táxi, carpinteiros, operários de marmoraria, entregadores de pizzas, e, inclusive, no ano passado um desses jovens foi aprovado no vestibular da UESC. Muitos voltaram a estudar e não retornaram ao mundo do crime. O índice de evasão e reincidência é insignificante, não chegando a 5 %. Com efeito, a nessa perspectiva, acreditando no caráter preventivo e pedagógico das medidas sócio-educativas em meio aberto, é que poderemos servir de instrumento para transformar a vida dessas pessoas, na sua maioria esmagadora, oriundas da massa dos excluídos e miseráveis e que estão na peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. Está comprovado que a repressão por repressão não resolve o problema do adolescente em conflito com a lei e que o encarceramento desnecessário só servirá para dessocializar, quebrar os vínculos familiares e potencializar os fatores criminógenos latentes no jovem ainda em formação. A participação da família é fundamental neste processo, tanto acompanhando o adolescente na instituição como recebendo os técnicos nas visitas domiciliares. A internação deve ser a ultima ratio, só devendo ser aplicada nos casos extremamente graves, naqueles atos infracionas praticados com violência e grave ameaça, e desde que o adolescente, pelo seu comportamento, não possua ainda o perfil para cumprir uma medida mais branda. O testemunho do jovem e ex-educando da Fundação Reconto J.M.S é lapidar e retrata todo esse trabalho de readaptação do adolescente em conflito com a lei:

“Antes, no meu bairro, as pessoas me conheciam pelo que eu fazia. Eu roubava, usava maconha e só queria saber de ganhar dinheiro fácil e não respeitar as pessoas. Hoje, graças a DEUS e ao trabalho da Fundação Reconto, sou uma pessoa transformada. A minha família se orgulha de mim, eu sou a base de minha família... e estou aí para a vida... quero ser um cidadão honesto igual ao meu pai.”

Quando o adolescente é tocado em sua centelha divina e percebe a grande possibilidade que é a vida, e que ele pode ser o que sonhou, os seus olhos brilham, os seus hábitos e atitudes mudam e sua vida se transforma.

Na Comarca de Itabuna pode-se afirmar que o SINASE já é aplicado há algum tempo com sucesso. A interdisciplinaridade é uma realidade. Já disse alguém que se nós cuidarmos bem de nossas crianças e adolescentes hoje, não precisaremos chorar amanhã. Desta forma, e somente acreditando e concretizando uma proposta embasada na educação e na responsabilização séria do adolescente em conflito com a lei, respeitando a sua dignidade como uma pessoa na peculiar condição de desenvolvimento, é que poderemos, como atores, evitar que este jovem se torne um marginal e se transforme num verdadeiro cidadão.


* Marcos Bandeira é Juiz titular da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Itabuna e Professor da disciplina Direitos da Criança e do Adolescente da UESC.

CONVENÇÃO DE HAIA EM 1980: aspectos civis do seqüestro internacional de crianças

CONVENÇÃO DE HAIA EM 1980: aspectos civis do seqüestro internacional de crianças

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 13-07-2008

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CONVENÇÃO DE HAIA EM 1980: ASPECTOS CIVIS DO SEQÜESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS

A Convenção sobre os aspectos civis do “seqüestro” de crianças ocorreu na cidade da Haia, na Holanda, no dia 25 de outubro de 1982. Todavia só foi introduzida no Brasil no dia 14 de abril de 2000, por força do Decreto nº 3.413, e regulamentada pelo Decreto nº 3.951, de 04.10.2001, encontrando-se em vigor desde o dia 07.01.2002. Verifica-se, entretanto, que a Convenção é ainda uma ilustre desconhecida da maioria dos operadores do Direito. Atualmente, a Convenção já foi ratificada por 78 países e constitui, sem dúvidas, um dos grandes instrumentos de cooperação internacional entre os Estados Membros objetivando a restituição imediata de criança ou adolescente até 16 anos transferidos ou retidos indevidamente em algum Estado Membro.

Não obstante as impropriedades terminológicas da Convenção de Haia ao nomear, v. g., de “seqüestro” uma conduta que na verdade não se amolda ao tipo legal estabelecido no Código Penal, a Convenção prima pela inovação na seara do direito internacional privado ao fugir do tradicional conflito espacial de aplicação de lei entre países, preservando-se as diferenças culturais, sociais e políticas, para buscar um elo de conexão que respeite a soberania de cada Estado. A residência habitual da criança ou adolescente é o elemento de conexão que vai determinar a competência para conhecer do pedido de restituição imediata da criança transferida ou retida indevidamente. Diferentemente do domicílio – que exige o ânimo definitivo de permanecer em determinado país - residência habitual pressupõe a intenção de fixar-se num determinado país por um período apreciável, como por exemplo, um professor francês que leciona durante um determinado período no Brasil, constituindo-se, sem dúvidas, no elemento de conexão mais adequado e consentâneo com o mundo globalizado e dinâmico onde vivemos, no qual o homem, mercê de sua mobilidade, rompe as fronteiras de suas atividades civis e comerciais. Vê-se também que a Convenção inova ao criar as autoridades centrais dos países membros, emprestando maior agilidade aos pedidos de localização e restituição de crianças e adolescentes, desvencilhando os mecanismos tradicionais das vias diplomáticas, por demais vagarosos e ineficazes.

Essa problemática nos atinge na medida em que presenciamos cotidianamente crianças e adolescente sendo transferidos do Brasil, ou sendo retidas no país estrangeiro, sem que os juízes estaduais saibam como lidar com esta situação. Na Cidade de Itabuna, a criança K. C., de dois anos e meio, foi “seqüestrada” pelo pai, o americano William Cross, o qual aproveitou um dia de visita e desapareceu com a sua filha pela fronteira do Paraguai. A mãe da criança, a baiana Priscila Soares da Silva estava separada do país e detinha a guarda da infante. O advogado de Priscila ingressou com uma ação de busca e apreensão da criança que tramita na Justiça Estadual sem que haja até a presente data qualquer resposta.

A Convenção da Haia configura a transferência ilegal ou retenção indevida ao estabelecer o seguinte, in verbis:

Art. 3º: A transferência ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:

a) Tenha havido violação a direito de guarda atribuído à pessoa ou à instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse residência habitual, imediatamente antes de sua transferência ou da sua retenção; e

b) Esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse estar sendo se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.”

Como se infere, ocorrendo a transferência ilícita ou a retenção indevida, o pedido de restituição - que pode ser instrumentalizado através do pedido de busca e apreensão satisfativo – deve ser proposto no local da residência habitual da criança. O pedido pode ser proposto por qualquer interessado ou pela autoridade central, que no caso do Brasil é a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Com efeito, o juiz que conhecer do pedido de restituição não deverá apreciar qualquer questão relativa ao direito de guarda ou visita de qualquer dos pais, o que deverá ser feito pelo Juízo competente do local da residência habitual da criança. O juiz do pedido de restituição, no âmbito de uma cognição exauriente, deverá apreciar os pressupostos estabelecidos no art. 3º da Convenção e verificar se não há algumas das exceções dos arts. 12, 13 e 17 que autorizam a permanência da criança ou adolescente no país onde se encontra eventualmente, sempre fundado no princípio do melhor interesse da criança e na preservação de seus direitos fundamentais. Os juízes estaduais da Vara da Infância e Juventude devem apreciar com maior rigor as autorizações de viagem para o exterior de crianças e adolescentes, no sentido até de não violarem as normas da Convenção da Haia, mormente quando dispensam o procedimento judicial de suprimento do consentimento de um dos pais ausente.

Torna-se imperativo, portanto, conhecermos os delineamentos desta importante convenção, no sentido de que possamos assegurar, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes de serem criados no seio de uma família onde foram estabelecidos vínculos duradouros de afetividade e construídas suas referências culturais, inclusive no que toca ao direito de falar um idioma e de continuar a conviver numa comunidade onde foram acolhidos e já se identificam.

Marcos Bandeira – Juiz da Vara da Infância de Juventude da Comarca Itabuna

O calcanhar de Aquiles do político desonesto

O calcanhar de Aquiles do político desonesto

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 10-07-2008

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O CALCANHAR DE AQUILES DO POLÍTICO DESONESTO

Marcos Bandeira *


Na mitologia Helênica, todos conhecem a lenda do herói grego Aquiles, o qual preferiu uma vida gloriosa e breve em troca de uma vida longa e apagada. Na antiga Grécia havia a crença de que “os eleitos dos deuses morriam jovens”.Destarte, preocupada com seu jovem filho, Tétis, a ninfa marinha, mergulhou Aquiles no temível rio Estinge, segurando-o de cabeça para baixo, no sentido de torná-lo invulnerável. Todavia, as águas do rio Estinge não alcançaram o calcanhar, pelo qual ela o segurava, ficando assim exposto e conhecido como seu ponto fraco. Segundo a lenda, Tétis fez Aquiles ser criado como menina na corte de Liconedes, na ilha de Ciros, a fim de mantê-lo longe do campo de batalhas. O jovem guerreiro, sabedor do seu destino vaticinado nas profecias, utilizou de um ardil para ser identificado entre as moças e marchou com os gregos para a batalha de Tróia. Após retirar-se da guerra e, profundamente ofendido com o chefe supremo dos gregos, que lhe roubou Brisieda, Aquiles cede sua armadura protetora a seu amigo, Pátroclo, que foi morto por Heitor, filho do rei de Tróia. Aquiles, sedento de vingança, reconciliou-se com Agamenon, chefe supremo da Grécia, e retornou à guerra para vingar a morte de seu amigo, o que acabou acontecendo. Ato contínuo, Aquiles, consumando a vindita, arrasta o cadáver de Heitor em torno da sepultura de Pátroclo. Pouco tempo depois, Páris, irmão de Heitor, lançou contra Aquiles uma flecha envenenada guiada por Apolo, atingindo-lhe o seu ponto fraco, ou seja, o seu calcanhar e matando-o. Por essa razão tornou-se conhecido o famoso “calcanhar de Aquiles”.

O todo poderoso político, da mesma forma que Aquiles, é protegido de todos os lados, só que a tutela vem da própria lei, fruto da casuística ou da conveniência de nossos próprios legisladores. Logo, por contar antecipadamente com a certeza da impunidade, dilapida o erário público, como aqueles personagens do município de São Gonçalo - RJ, tem suas contas rejeitadas pelos Plenários de Câmaras de Vereadores ou Assembléias Legislativas, referendando pareceres dos Tribunais de Contas, por irregularidade insanável, mas, apesar de tudo isso, conseguem candidatar-se a cargos eletivos e, com o abuso do poder econômico ou político, elegem-se, retornando-se à conhecida e amada vida pública, sem que o comum dos mortais entenda bem essa questão. Tentemos explicar: a autorização para que o ex-gestor desonesto possa se candidatar a algum cargo eletivo é dada pela ressalva da alínea “g”, inc. I do art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18.05.90, também conhecida por “Lei das Inelegibilidades”, que dispõe o seguinte, in verbis:

Art. 1º- São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

a) os inalistáveis e os analfabetos;

(...)

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da decisão;

Como se infere, o político desonesto que teve suas contas rejeitadas pela Câmara de Vereadores do Município, basta ingressar com qualquer ação judicial, antes do pedido de impugnação de registro de sua candidatura, objetivando a desconstituição da decisão política da Câmara, que estará apto a concorrer ao cargo eletivo que desejar, mesmo que a ação seja manifestamente destituída de fundamento jurídico. O que importa é que a decisão que rejeitou as contas do ex-gestor esteja sendo questionada em Juízo, sendo desinfluente que esteja em grau de recurso, ou mesmo que a decisão proferida pelo juiz de primeiro grau seja desfavorável ao pretendente.

A ressalva do referido dispositivo representa, sem dúvida, violação ao princípio da moralidade pública e da independência ou separação entre os poderes, pois não é concebível que o simples ajuizamento de uma ação, muitas vezes anos após a decisão da Câmara ou Assembléia, seja suficiente para desconstituir uma decisão de mérito discutida e votada no plenário do parlamento, na maioria das vezes, referendando o parecer técnico do Tribunal de Contas e com a observância de todas as normas regimentais e legais. Não concordo, a bem da verdade, com o sistema de escolha dos conselheiros do Tribunal de Contas, o que o torna um órgão eminentemente político, quando deveria ser vinculado ao Ministério Público. É sabido, porém, que referido dispositivo, inserido casuisticamente em nosso ordenamento jurídico por um determinado político para contemplar seus afilhados, permanece imutável há quase doze anos para gáudio do político desonesto, como a demonstrar, como Aquiles, toda à sua invulnerabilidade.

Acredito que o “calcanhar de Aquiles” do político desonesto consistirá na revogação desta ressalva legal, que frustra milhares de cidadãos brasileiros e centenas de juízes eleitorais acostumados a julgar as impugnações de pedido de registro de candidatura nas eleições municipais. O legislador, sem ferir o princípio de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Art. 5º, XXXV da CF), modificaria o referido dispositivo para só admitir a desconstituição da decisão do legislativo (municipal, estadual ou federal), caso adviesse uma decisão judicial transitada em julgado desconstituindo a decisão que rejeitara as contas.

O candidato a qualquer cargo eletivo, como é sabido, além de reunir as condições de elegibilidade, não deve se sujeitar a nenhuma das hipóteses de inelegibilidades previstas na Constituição Federal, na Lei Complementar nº 64/90 e Decreto-Lei nº 201/67. Entendo, todavia, que deveria ser condição sine qua non para qualquer pessoa ostentar o jus honorum, ou seja, exercer o mandato emanado do povo, que não pairasse qualquer dúvida sobre sua honorabilidade, pois, contrarium sensu, continuaremos a amargar a falta de investimentos sociais, a falta de merenda escolar, o desemprego, a precariedade do sistema de saúde, enfim, continuaremos a sentir na pele os efeitos deletérios de uma má gestão da coisa pública com prejuízos incalculáveis, principalmente para a população mais carente, que hoje forma o cinturão de miseráveis que está asfixiando as médias e grandes cidades, engrossando as estatísticas da violência urbana.

Para finalizar, a única semelhança entre Aquiles da mitologia grega e o político desonesto é o “calcanhar”, ou seja, o ponto fraco, pois enquanto a flecha acertou um guerreiro até então imortal, o tiro certeiro de nossos legisladores poderá apear definitivamente da vida pública figuras execráveis que se enriqueceram à custa da exploração da coisa pública. É bom que não se esqueça que o tiro deve ser de grosso calibre, pois lei complementar para ser reformada exige “quorum qualificado” de 3/5.

*MARCOS BANDEIRA – Juiz de Direito da Vara do Júri da Comarca de Itabuna-BA - 22.04.2002.

Agora é lei

Agora é lei

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 02-07-2008

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AGORA É LEI

O Estatuto da Criança e do adolescente – Lei nº 8.069/90 – já vigora no ordenamento jurídico brasileiro há mais de 17 anos, todavia, ainda é um ilustre desconhecido, inclusive, dos próprios operadores do direito. O ECA, como nós o tratamos, inaugurou um novo paradigma nos direitos de crianças e adolescentes, rompendo, definitivamente, com a doutrina da situação irregular, a qual criminalizava a família pobre, destruía os vínculos familiares e comunitários do então “menor” ao potencializar o internamento em reformatório (FEBEM), institucionalizando tanto o “menor” que cometia atos infracionais (a maioria de médio ou menor potencial ofensivo) como aquele que era oriundo de uma família pobre, desajustada, ou então vítima de abusos sexuais ou maus-tratos, de conformidade com o que prescrevia o art. 2º do Código de Menores de 1979. Na verdade, o “menor” era tratado como simples objeto de direito.

A doutrina da proteção integral abraçada pelo ECA nasceu por força de uma grande mobilização nacional promovida por educadores, juízes, promotores de Justiça, advogados, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais que mourejam na área, que redundou na obtenção de duas emendas populares que levaram ao Congresso Nacional 200.000 assinaturas de eleitores de todo o Brasil e 1.200.000 assinaturas de crianças e adolescentes, conseguindo assim, inserir o art. 227 na CF, retirando assim os superpoderes do então Juiz de Menores e estabelecendo uma co-gestão de responsabilidade envolvendo o poder público, a família e a sociedade, adequando-se o direito infanto-juvenil brasileiro às diretrizes estabelecidas pelas convenções internacionais. Logo depois, foi aprovado o projeto de lei do Senador Ronan Tito, nascendo o ECA, como verdadeira Constituição da Criança e do Adolescente. A partir do advento do ECA não se fala mais em “menor”, mas em criança ( toda pessoa de 0 a 12 anos incompletos) e adolescente (toda pessoa de 12 a 18 anos incompletos), como titulares de direito à vida, à saúde, à educação, à convivência familiar e comunitária, à liberdade de ir e vir, a profissionalização, dentre outros direitos.

A criança e o adolescente não mais são vistos como adultos em miniatura, ou meros objetos de direito, mas como sujeitos na peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, cujos direitos fundamentais devem ser assegurados com absoluta prioridade, nos termos do art. 4º do ECA. A própria nomenclatura dos agentes credenciados da Vara da Infância e Juventude deve mudar para “Agentes de Proteção da Infância e Juventude”, e não mais “Comissários de Menores”, pois esta identificação nos remete a doutrina da situação irregular do revogado Código de Menores de 1979.

Vê-se, entretanto, que a doutrina da proteção integral do ECA ainda não é conhecida, principalmente, no que diz respeito ao setor público, como diretores de escolas, professores, diretores de hospitais públicos, o que contribui, sem dúvida, para o desrespeito e a violação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Em nossas andanças pelo Brasil, sempre debatendo os direitos deste público vulnerável, reivindicávamos a inserção do conteúdo do ECA no ensino fundamental e nas Faculdades de Direito, inclusive, reiteramos essa reivindicação formalmente na Conferência da Criança e do Adolescente realizada no ano de 2007, em Itabuna. Felizmente, entrou em vigor no dia 25 de setembro a Lei nº 11.525, de 25.09.2007, acrescentando o § 5º ao art. 32 da Lei nº 9.394, de 20.12.96, estabelecendo o seguinte, “in verbis”:

§ 5º - O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, o conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei nº 8.069/90, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, observada a produção e distribuição de material didático adequado.

Seria melhor se a norma se estendesse também para as Faculdades de Direito, onde já se ministra o ECA, mas como disciplina facultativa e de aprofundamento, todavia, não se pode negar que o legislador deu um passo qualitativo para o reconhecimento e preservação dos direitos de crianças e adolescente de nosso país.

Precisamos conceber o sistema dos Direitos da Criança e do Adolescente como um ramo autônomo do Direito, principalmente, na área dos atos infracionais, não se confundindo, v.g., com o sistema penal voltado para os maiores de 18 anos (imputáveis). A responsabilização do adolescente em conflito com a lei tem regramento próprio fundado em medidas que objetivam à defesa social e, sobretudo, intervenção pedagógica suficiente “ para reverter o potencial criminógeno demonstrado pela prática da infração “[1]. Nessa perspectiva, como ramo autônomo do direito, o sistema dos direitos da criança e do adolescente passa a ser ensinado nas escolas de curso fundamental, contribuindo assim para uma maior conscientização e concretização dos direitos já consolidados em nosso ordenamento jurídico e evitando, conseqüentemente, a sua sistemática violação, muitas vezes, por mera ignorância.

Marcos Bandeira – Juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Itabuna-BA.

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[1]Ato Infracional e Natureza do sistema de responsabilização.Paulo Afonso Garrido de Paula p. 36.

OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL: Juiz espectador ou juiz protagonista?

OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL: Juiz espectador ou juiz protagonista?

Por Marcos Antônio Santos Bandeira

publicado em 30-06-2008

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OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ NO PROCESSO PENAL: Juiz espectador ou juiz protagonista?

Marcos Antonio Santos Bandeira[1]


INTRODUÇÃO

O juiz, no âmbito do sistema acusatório, modelo adotado pelo Estado Democrático de Direito, vem sendo considerado pela maioria esmagadora da doutrina nacional, como “mero espectador” do processo penal, despontando assim como um sujeito inerte, acrítico, desinteressado, imparcial, que por essa razão não deve produzir prova de qualquer espécie, mesmo que seja de forma complementar às partes, ficando, na verdade, a mercê da iniciativa probatória das partes.

Nessa perspectiva exsurge um novo olhar, que não fere o sistema acusatório e desmistifica o “mito da verdade real”, transformando o juiz num verdadeiro protagonista do processo penal, sem que leve a pecha de “juiz-inquisidor”. Com efeito, quebra-se o paradigma da neutralidade, preserva-se a sua imparcialidade e o coloca numa situação de sujeito interessado numa decisão processualmente justa.

O presente trabalho sustenta a tese de que o juiz, desde que não venha substituir a função que é inerente ao Ministério Público, deve produzir provas no processo penal de forma complementar às partes, toda vez que estiver em dúvidas ou tiver necessidade de esclarecer ponto relevante para o deslinde do processo, seja pela insuficiência das provas produzidas pelas partes, seja por qualquer outro motivo, no sentido de buscar eticamente e com a observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a decisão que se afigurar justa para aquele caso concreto que está sendo submetido a julgamento.


JUIZ ESPECTADOR DO PROCESSO

O renomado jurista Aury Lopes Jr. sustenta que o juiz no sistema acusatório deverá ser um garantidor dos direitos do acusado, devendo ser um mero espectador do processo, alheio ou indiferente ao resultado justo do processo. Assevera, com efeito, o notável jurista:

Na fase processual, a gestão da prova deve estar nas mãos das partes, assegurando-se que o juiz não terá iniciativa probatória, mantendo-se assim supra-partes e preservando sua imparcialidade. Nesse contexto, dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios (como o famigerado art. 156 do CPP) devem ser expurgados do ordenamento ou, ao menos, objeto de leitura restritiva e cautelosa, pois é patente a quebra da igualdade, do contraditório e da própria estrutura dialética do processo. O sistema acusatório exige um juiz espectador, e não um juiz ator (típico do modelo inquisitório).

Essa tese segue a linha do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[1], que identifica o sistema acusatório na medida em que a gestão da prova estiver nas mãos das partes, sustentando assim , que nosso sistema é inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz ator. Os juristas Rangel (2003) e Prado (2005)[2] engrossam a fileira dos que sustentam que o juiz não deve ter iniciativa probatória, limitando-se a ser um mero espectador no processo penal, sob pena de violar o sistema acusatório e comprometer a sua imparcialidade.

Esta angústia me acompanha desde que ouvi calado num Congresso de Direito Processual Penal o eminente jurista Aury Lopes sustentar que o juiz no processo penal deverá ficar inerte, um espectador, pois o juiz inquisidor mata o bom julgador. Não me conformei com tal assertiva, pois a minha experiência profissional como juiz criminal garantista me implorava para refutar a pecha de “boneco”, marionete e sujeito desinteressado. Que juiz é este que se conforma tão-somente com as provas trazidas aos autos pelas partes? Que juiz é este que é indiferente ao resultado justo do processo? Que juiz é este que diante da fragilidade das provas trazidas pelas partes, não se interessa em produzir outras para fortalecer ou construir o seu juízo de convencimento? Que juiz é este que se preocupa tão-somente com aplicação positivista do processo, no seu aspecto formal, sem se preocupar se a decisão se aproximou ou não do valor justiça? Na verdade, como se infere, a “justiça” da decisão estará nas mãos das partes, como na famigerada verdade formal do processo civil, ou seja, o sucesso da demanda por uma das partes estará na razão direta da destreza e competência no manuseio das armas (provas), ficando o juiz-marionete, na condição de Poncio Pilatos, lavando as mãos, mesmo sabendo que a decisão construída exclusivamente pelas partes e que ele exteriorizará através da sentença foi manifestamente injusta, condenando-se um provável inocente ou inocentando um possível culpado. Esta decisão certamente não interessa a sociedade nem tampouco ao Estado Democrático de Direito. Não se pode cometer injustiça em nome da segurança jurídica e da pureza do sistema acusatório. É necessário que a prestação jurisdicional convença aos jurisdicionados para que se possa falar em pacificação social, um dos escopos da jurisdição. É possível que a sombra do juiz-inquisidor da idade média e que perambulou em nosso país por um bom tempo nos regimes ditatoriais tenha atemorizado o nosso meio acadêmico, a ponto de querer afastá-lo definitivamente da gestão das provas e reduzi-lo a um boneco inerte e alienado, preocupado apenas em guiar o procedimento judicial para no final publicar a decisão construída exclusivamente pelas partes. Um juiz preso ao mundo dos conceitos e alheio completamente ao mundo dos fatos. Não! O interesse público de se obter uma decisão processualmente justa, no âmbito de um processo dialético, ético e garantístico, deve preponderar sobre os interesses das partes. Os valores “justiça”, jus libertatis, honra e da consciência social de evitar sentença injustas, devem sobrepujar o interesse legalista da acusação ou da defesa. Importante salientar que o notável jurista Reale (1984), nos idos de 1945 já defendia a teoria trideminsional do direito ao asseverar o seguinte, “in verbis”:

Todo Direito representa uma apreciação de fatos e de atos segundo uma tábua de valores que o homem deseja alcançar tendo em vista o valor fundamental do justo. Segundo a concepção culturalista, o Direito é síntese ou integração de ser e de dever ser; é fato e é norma, porque é o fato integrado na norma exigida pelo valor a realizar.

O direito processual penal não pode ser confundido com o direito processual civil, o qual é caracterizado como processo das partes e pela incidência do princípio dispositivo. Diferentemente, o processo penal lida com a forma pela qual se permite a intervenção mais drástica do Estado na vida de um ser humano, podendo, inclusive, atingir o seu status libertatis. Este instrumento de garantia – o processo – está na direção de um magistrado, que tem uma função ativa na instrução processual, no sentido de buscar eticamente e com a contribuição das partes, a verdade processualmente válida.

Impõe-se contextualizar a gestão das provas no âmbito dos sistemas processuais admitidos no mundo do direito, para que possamos então expurgar alguns mitos e desenvolver a nossa tese do juiz protagonista do processo penal.


SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

A idéia de sistematizar o conhecimento científico na área processual para torná-lo um ramo autônomo e desvinculado do direito penal é recente, pois só veio a ocorrer efetivamente a partir do século XIX. É importante o estudo dos sistemas processuais penais, pois ele informa a ideologia política do Estado no ordenamento jurídico, bem como revela a opção do legislador em conferir maior eficiência da defesa social, ou a preservação das garantias fundamentais. Com efeito, o sistema processual penal inquisitivo é característico dos estados totalitários voltado para a maximalização do direito penal e a preponderância do valor segurança social em detrimento dos direitos do acusado, que é tratado como mero objeto de direito. Já no sistema acusatório, há uma preocupação maior em limitar os excessos da pretensão punitiva do Estado, assegurando-se os direitos de defesa do acusado, que é tratado como sujeito de direitos.


SISTEMA PROCESSUAL PENAL INQUISITIVO

É caracterizado pela concentração das funções de acusar e julgar nas mãos do juiz. O acusado é considerado mero objeto da persecução penal sem qualquer garantia de defesa; a tortura é admitida, assim como outra qualquer forma de prova ilícita, como meio de se obter a “verdade real”; os procedimentos normalmente são secretos e escritos; o juiz, como se depreende, tem funções postulatórias, não havendo contraditório ou respeito ao princípio da igualdade e da dignidade humana. Nesse sistema era outorgado ao juiz poderes ilimitados na produção de provas para se chegar a verdade real. O sistema de provas, em regra, é o legal ou tarifário.


SISTEMA PROCESSUAL PENAL ACUSATÓRIO

É o sistema do Estado Democrático de direito, pois distribui as funções de investigar, acusar, julgar e defender para órgãos distintos. O jus puniendi só pode ser aplicado mediante a observância do devido processo legal, com a incidência do princípio da ampla defesa e do contraditório. Os procedimentos normalmente são públicos e prepondera a oralidade, havendo uma preocupação maior em proteger os direitos do acusado diante do arbítrio do Estado. Retira do juiz a prática de atos postulatórios e acusatórios, distribui o ônus da provas entre a parte acusatória e defesa, mas não nega o poder ativo que deve ter o magistrado na instrução processual penal, assegurando-se os princípios da par conditio e do favor rei. O sistema de apreciação de provas é o do livre convencimento do magistrado.


MITO DA VERDADE REAL

A verdade ontológica ou absoluta é inatingível aos seres humanos, pela incapacidade de se reconstruir um fato que está no passado. Os filósofos chegam a afirmar que “não existe nenhuma verdade”, absolutamente nenhuma, porque o mundo não é real. A própria verdade científica somente existe até que outra venha refutá-la . Thumus (2006, p.182), lembra que Einstein já dizia que “a verdade tem um tempo de validade”, asseverando que “nas ciências sociais, notadamente nas jurídicas, o homem é arrogante, petulante, audacioso (soberbo) e ao mesmo tempo temerário, ao afirmar que busca a verdade absoluta no processo penal”. Destarte, sempre se acreditou no mundo jurídico que a outorga desmesurada de poderes ao juiz na instrução do processo, o credenciasse como juiz-inquisidor a chegar à famigerada “verdade real” ou absoluta, mesmo que tivesse de utilizar de métodos violentos e ilícitos, como a tortura. As funções de quem investiga, acusa e julga se concentrava numa única pessoa, o juiz- inquisidor, o qual na idade média, como juiz dos tribunais do santo ofício da Igreja Católica atingiu o seu apogeu, condenando-se muitos inocentes. Entendo que na área processual penal, não se deve mesmo falar de “verdade real” como algo coincidente com a realidade histórica dos fatos, pois esta é utópica. Creio que na seara processual penal devemos trabalhar com o juízo de certeza, que se constrói pelo caminho da probabilidade, a qual se “percebe os motivos convergentes e divergentes e os julga todos dignos de serem levados em conta, se bem que mais os primeiros e menos os segundos” (MALATESTA, 1960, p.19).O juízo de certeza é de natureza subjetiva, pois é obtido pelo trabalho racional e intelectual do juiz na apreciação do conjunto probatório constante dos autos, que lhe dá uma conformidade satisfatória ou razoável entre o pensamento e a realidade dos fatos que lhe são submetidos. O insigne Malatesta (1960, p.22) explicita,

A certeza que deve servir de base ao Juízo do magistrado só pode ser aquela de que ele se acha na posse: a certeza como seu estado de alma...Ora, esta afirmação pode ser cabível não obstante a percepção dos motivos contrários à afirmação; o espírito vê estes motivos contrários, e não os achando dignos de serem levados em consideração, rejeita-os e afirma. Neste caso, não se deixa de estar diante da certeza, porque se está diante da afirmação da conformidade entre noção ideológica e realidade ontológica.

Desta forma, em face do caráter publicista do processo penal impõe-se que o juízo de certeza obtido pela análise das provas coligidas nos autos seja o mais próximo possível da realidade dos fatos.


MITO DA NEUTRALIDADE DO JULGADOR

O meu olhar crítico não se conforma com a assertiva de que o juiz deve ser um sujeito neutro. A neutralidade é anti-natural, pois todo o ser humano carrega a sua história permeada de valores, ideologia, filosofia, visão de mundo, idiossincrassias, desejos, sentimentos, razão e emoções. Com efeito, o juiz é um ser humano, composto de carne e osso, e carrega toda essa tábua de valores até o final de sua vida, não podendo ser este sujeito todo poderoso, alheio à realidade e imune as influências internas e externas, para se tornar um inerte e autômato aplicador da lei. Carlos Gustav Jung sustenta que todo o homem tem um arquétipo masculino e um feminino – yang e yin -, caracterizando o lado masculino pelo princípio da ordem, racionalidade, do senso prático e do dever, enquanto o arquétipo feminino está voltado para o sentimento, à criatividade e a justiça. O magistrado sempre foi gestado numa cultura legalista, formalista, cuja sentença era elaborada por mero silogismo.

A jurista Prado (2005)[4], apoiada nos ensinamentos de Jung assevera que

a alteridade é o arquétipo da anima na personalidade do homem e do animus na personalidade da mulher, que possibilita o encontro do Eu com o Outro dentro as totalidade (self), em um clima de respeito pelas diferenças. Tem sido vista como o arquétipo da democracia, da ciência, da criatividade, do amor conjugal e ao próximo, da decisão feita com justiça.

O julgador, com efeito, deve ser imparcial, não necessariamente neutro, pois não pode se distanciar de sua realidade cultural e nem evitar as influências do seu psique no momento de sentenciar. Não deve, portanto, esconder-se no mito da neutralidade[5]para deixar verdadeiramente de julgar, de decidir as questões relevantes que lhe são submetidas. É preciso retirar a venda da Deusa da Justiça, para que o juiz desça do mundo abstrato e dos conceitos normativistas em que se encastelou durante muito tempo e encontre atrás das regras, o ser humano, sua realidade sócio-cultural, seus valores, colocando-se na posição do outro, entrando em contato com os princípios da igualdade material, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, aspirando assim atingir o eqüitativo e o justo, através de um Juízo valorativo, no âmbito dos limites da verdade processualmente possível.

Imparcialidade nada tem que ver com neutralidade, ou seja, o juiz não precisa isolar-se da sua comunidade e seus valores para decidir com imparcialidade, contrarium sensu, o juiz deve estar sintonizado com o seu tempo, contextualizado e atento às mutações sociais, utilizando o seu poder criativo e sentimento para realizar em toda à sua plenitude a justiça no caso concreto.


JUIZ PROTAGONISTA E A GESTÃO DAS PROVAS

Como se infere, a identificação dos sistemas acusatórios e inquisitórios se revela precipuamente na distribuição das funções de acusar, defender e julgar. Caso sejam distribuídos a órgãos diferentes estaremos diante do sistema acusatório, no qual prepondera o princípio da publicidade, contraditório, ampla defesa e oralidade, havendo uma preocupação maior em defender o acusado diante da acusação do Estado, exigindo-se um procedimento ético assegurado a par conditio. Já o sistema inquisitório se caracteriza pela concentração das funções de julgar e acusar nas mãos do juiz, que para tanto se permitiria a utilização de todos os meios, inclusive, a tortura, para obtenção da provas, principalmente, a confissão, fazendo assim preponderar o julgamento secreto e escrito, havendo uma preocupação maior com a segurança social em detrimento dos direitos de defesa do acusado. Ora identificar um sistema processual penal pela gestão da prova, data venia, seria negar a essência dos sistemas processuais, pois se a iniciativa probatória do juiz-inquisidor era desmesurada e pré-disposta a descobrir a verdade real a qualquer custo, a iniciativa do juiz, no âmbito do sistema acusatório, é limitada e suplementar às partes, voltada para a construção de um juízo de verossimilhança próximo da realidade, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa. Como infirmar a essência do sistema acusatório pela iniciativa probatória suplementar do juiz no processo penal, se ele tem interesse em construir a verdade processual possível e justa? A Jurista Grinover (2001) compartilha desse entendimento ao asseverar que

o processo acusatório e o processo de partes nada têm a ver com a iniciativa probatória do juiz no processo penal..na medida em que não se pode admitir um juiz passivo e refém das partes, como um mero espectador de um duelo judicial de interesses dos litigantes.


O PAPEL DO NOVO JUIZ NA ERA DO PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

Não há dúvidas de que já sentimos os ventos de uma nova era caracterizada pelo pluralismo jurídico, pela criticidade do conteúdo valorativo das normas jurídicas e preponderância dos princípios gerais de direitos, numa perspectiva voltada para a efetiva realização da justiça humana e auto-realização do ser humano na sua integralidade. Nesse diapasão, pode-se afirmar que estamos saindo da era do positivismo jurídico marcada pela defesa intransigente das leis numa concepção meramente formal ou legalista, sem qualquer comprometimento ou preocupação com a efetivação da justiça em cada caso concreto. Chaim Perelman citado por PRADO (2005, pp.12-3) assevera:

Enquanto o século XIX se caracteriza pelo predomínio do formalismo jurídico e de uma concepção legalista do direito, o século seguinte é a época do realismo e do pluralismo jurídicos, em que os princípios gerais do Direito têm uma importância cada vez maior, graças à influência de considerações de índole socioológica e metodológica. Para ele, a teoria do Direito característica do século XX favorece a concepção tópica do raciocínio jurídico, contrária ao formalismo, conduzindo ao reconhecimento do papel do juiz na elaboração do Direito e à prevalência da eficácia da lei sobre sua validade.

Na verdade, é imperioso que se ressalte que fomos forjados desde a Faculdade numa cultura voltada para a defesa dos códigos (STRECK, 2001)[6], das leis, no âmbito de uma mundo de elaboração de conceitos abstratos distanciados da realidade subjacente.

O juiz nesse contexto sempre foi um operador ou “escravo” da lei[7]que desenvolvia seu raciocínio jurídico para construir uma sentença como um mero silogismo[8], mesmo que servisse de “pretexto para a imposição de injustiças legalizadas”[9].

Como se depreende, na cultura de devoção ao código, as leis não possuem as respostas para todos os fenômenos jurídicos, porque o “legislador” não é onisciente e nem onipotente, como se os fatos passados, presentes e futuros na sua integralidade não pudessem lhe escapar o controle, pelo menos em alguma particularidade. É de se ver que no âmbito de um Estado Democrático de Direito o legislador não é completamente livre para fazer leis, mormente quando o conteúdo dessas leis venha ferir direitos fundamentais protegidos pela Constituição. O legislador tem limites, e o juiz não mais pode ser um defensor intransigente da “regra”, agindo como se fosse um mero autômato e técnico do positivismo jurídico, aplicando o princípio da subsunção de forma acrítica, descontextualizada, sem que possa analisar criticamente o conteúdo da norma e exercer suas preferências axiológicas, no sentido de que possa atingir a justiça em cada caso que lhe é submetido. O jurista Dalmo Dallari na obra já citada arremata:

Toda a sociedade humana necessita de normas, entretanto, estas não devem ser impostas arbitrariamente nem podem ser uniformes para todos os lugares e todas as épocas. Não basta a existência de leis, pois para que elas se justifiquem e sejam respeitadas é preciso que tenham origem democrática e sejam instrumentos de justiça e da paz.

É chegada a era do Poder Judiciário, do novo direito, de um novo juiz. O Secretário Geral do Instituto de Altos Estudos Sobre a Justiça, Antoine Garapon citado por DALLARI (2006, p.13) fez a seguinte afirmativa: “se o Direito Liberal do Século XIX foi o do Poder Legislativo, o direito material do Estado-Providência do Século XX foi o do Executivo, o que se anuncia poderá bem ser o do juiz”. O novo paradigma exige a formatação de um novo juiz sincronizado com o direito aberto, cuja decisão, livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor das promessas do constituinte10]. Esse novo modelo, exige um juiz que tenha consciência do seu novo papel social e político, que entregue à sua “setentia” com sentimento[11], utilizando a sensibilidade e a intuição como método para penetrar na realidade do mundo dos fatos, escapando assim dos conceitos abstratos e da lógica tradicional. O jurista e desembargador Nallini (2006) vaticina:

O desafio da Escola da Magistratura é transformar o produto dogmático positivista da educação jurídica, à luz da velha feição das Faculdades de Direito, em um profissional atualizado, pronto a enfrentar os desafios contemporâneos. Um solucionador de conflitos, polivalente e intérprete da vontade da Constituição. Um operador do Direito capaz de fazer escolhas fundamentadas quando se defrontar com antagonismos cada vez mais freqüentes.

Nesse mesmo sentido, o jurista Dalmo Dallari, na obra multicitada, discorrendo sobre a necessidade de adaptação ao novo paradigma, destaca o papel do novo juiz, como se observa:

Essa adaptação começa pela formação dos futuros juízes, que não poderão ser “devotos do Código”, legalistas, formais ou “escravos da lei”, mas deverão preparar-se adequadamente para conhecer e avaliar com sensibilidade os fenômenos sociais que informam a criação do Direito e estão presentes no momento de sua aplicação, sem esquecer que a prioridade deve ser dada à pessoa humana, sem privilégios e discriminações.


ASPECTO DIALÉTICO E GARANTÍSTICO DO PROCESSO PENAL

O processo penal, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, constitui um instrumento de garantia do acusado diante da pretensão punitiva – jus puniendi – do Estado. Dir-se-ia que o direito penal não toca nem no pêlo do ser humano, pois somente através do devido processo legal, ou seja, mediante o processo penal é que se torna possível a aplicação de pena ao acusado de uma infração penal. Logo, segundo o escólio de Jardim (2003, p.43), “o processo penal passou a ser ao mesmo tempo um engenhoso instrumento de repressão penal e uma forma de autolimitação do Estado, pelo princípionulla poena sine judicio”. Esta garantia constitucional prevista no art. 5º, LIV da CF exige que o Estado no exercício do seu jus puniendi promova inicialmente a investigação do fato delituoso, em regra, pela Polícia Judiciária. Em seguida, o Ministério Público, com base nos elementos probatórios coletados no inquérito policial, formule uma acusação individualizadora de um fato delituoso e o juiz então determinará a citação do acusado, conferindo-lhe as garantias da ampla defesa e do contraditório. A instrução processual é caracterizada pela preponderância dos princípios da oralidade, publicidade, par conditio, apreciação de provas lícitas e imparcialidade do julgador. Finalmente, o juiz, de posse dos elementos probatórios constantes dos autos, julga a pretensão punitiva do Estado. Caso as provas sejam robustas e extreme de dúvidas, servindo de alicerce seguro para sustentar uma sentença condenatória, estaremos acolhendo com segurança a pretensão punitiva do Estado, todavia, se os elementos probatórios colacionados aos autos pelas partes – órgão acusador e defesa – não são suficientes para construir este juízo de convencimento, evidente que o magistrado, como sujeito crítico, contextualizado e interessado no resultado eqüitativo e justo do processo, deve determinar a produção de outras provas, como autoriza o art. 156 e 497, XI e parágrafo único do art. 502 do CPP, para dirimir dúvidas e esclarecer fatos relevantes para o deslinde da questão posta em Juízo.

O insigne jurista Jardim (2003, p.45) compartilha desse entendimento ao afirmar o seguinte:

Assim, o poder instrutório do juiz será sempre supletivo ao atuar probatório dos outros sujeitos do processo, sem que, com isso, precisemos retornar à origem privatística do processo penal.

A festejada Jurista Grinover (2001, pp. 73-4) afirma com maestria:

O papel do juiz, num processo publicista, coerente com sua função social, é necessariamente ativo. Deve ele estimular o contraditório, para que se torne efetivo e concreto. Deve suprir às deficiências dos litigantes, para superar as desigualdades e favorecer a par conditio. E não se pode satisfazer-se com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova. (...) é inaceitável que o juiz aplique normas de direito substancial sobre fatos não suficientemente demonstrados. O resultado da prova é, na grande maioria dos casos, fato decisivo para a conclusão última do processo. Por isso, deve o juiz assumir posição ativa na fase instrutória, não se limitando a analisar os elementos fornecidos pelas partes, mas determinando sua produção, sempre que necessário. Ninguém melhor do que o juiz, a quem o julgamento está afeto, para decidir se as provas trazidas pelas partes são suficientes para a formação do seu convencimento.

O jurista Oliveira (2003) também segue essa linha de entendimento, de uma forma mais mitigada. Vejamos:

Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado. A iniciativa probatória do juiz deve se limitar, então, ao esclarecimento de questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos, aliás, da redação do art. 156 do CPP.

Nessa perspectiva, outros juristas compartilham desse entendimento[12], admitindo, portanto, a possibilidade do juiz produzir provas na instrução criminal de forma suplementar as partes, sem que isso viole o sistema acusatório. O Jurista Malatesta assevera que “no período de instrução, é obrigação do instrutor procurar chegar a verdade por todos os caminhos , tanto com as provas favoráveis quanto com as contrárias ao acusado”.Afigura-se-nos falacioso o discurso de que o juiz que determina ex-offcio na instrução criminal a produção de provas já estaria aprioristicamente envolvido subjetivamente e assim já formado o seu juízo de valor, pois a prova, seja ela favorável ou não ao acusado, será submetida ao crivo do contraditório, devendo, portanto, ser dissecada e debatida à exaustão durante a instrução criminal, podendo perfeitamente aquela probabilidade que surgiu num primeiro momento ser infirmada ou não a posteriori. Ademais, não há qualquer comprovação científica dessa afirmativa, apenas conjecturas e meras suposições. No processo, como sustenta Malatesta (1960), é preciso que a probabilidade se transforme em certeza substancial, no sentido de justificar a sentença condenatória, daí a necessidade da participação ativa do juiz na instrução do processo, observando-se, entretanto, as limitações decorrentes do sistema acusatório. Evidentemente, que só após esgotadas as possibilidades de se alcançar esta “certeza substancial”, e permanecendo a dúvida, é que aplicar-se-á os princípios do “in dubio pro reo” e do favor rei, objetivando tutelar os direitos fundamentais do acusado e , principalmente, da consciência social de evitar a condenação de um provável inocente, como aliás prevê o art. 386, VI do CPP.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após debruçar sobre essas considerações, entendo, com todas as vênias de posições em contrário, que os mitos da neutralidade do julgador e da verdade real já sucumbiram e não resistem ao mais tênue exame no atual estágio do Estado Democrático de Direito. Com efeito, não há mais lugar no processo penal para juiz neutro e desinteressado, ou como já afirmado pela maioria da doutrina pátria, de juiz-espectador do processo. O papel ativo de co-gestor na produção da prova não atinge a imparcialidade do julgador no processo penal. É necessário que o juiz moderno seja juiz-julgador, ou juiz-protagonista, que conhecendo a sua realidade sócio-cultural, analise os fatos delituosos que lhe são submetidos, aprecie as provas carreadas para os autos, construa o seu juízo de certeza, com seu sentimento e com toda a sua carga de valores, buscando com a colaboração ética das partes a verdade processualmente possível, assegurando-se ao acusado, como sujeito de direito, o contraditório e a mais ampla defesa.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luiz Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista Brasileira de Ciências Criminais. V. 27 São Paulo: 2001.

JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de janeiro: Forense, 2003;

JÚNIOR, Aury Lopes. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003;

MALATESTA, Nicola Flamarino De. A lógica das Provas em Matéria Criminal. Vol. I, São Paulo: Saraiva, 1960;

NALLINI, José Renato. A formação do juiz após a Emenda à Constituição nº 45/04. Revista da Escola Nacional da Magistratura e Associação dos Magistrados Brasileiro . Ano I, número I – Brasília: Escola Nacional da Magistratura, 2006;

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. 2ª Tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005;

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2003;

POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2001;

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005;

PRADO, Lídia Reis de Andrade. O juiz e a emoção: aspectos da lógica judicial – 3ª ed. Campinas, SP: millennium, 2005a;

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2003;

REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 4ª . São Paulo: Saraiva, 1984;

STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do Júri. Símbolos e Rituais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001;

THUMUS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006;

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[1]Juiz de Direito da Vara do Juri da Comarca de Itabuna, Especialista em Direito Processual Civil e Ciências Criminais e Professor de Direito Processual Penal da UESC.

[2]Apud Aury Lopes op. Cit. p.14 . Diz o jurista Jacinto N. Miranda Coutinho “é a gestão da prova o princípio unificador que irá determinar se o sistema é inquisitório ou acusatório. Se a gestão da prova está nas mãos do juiz, como ocorre no nosso sistema, à luz do art. 156(entre outros), estamos diante de um sistema inquisitório(juiz ator). Contudo, quando a gestão da prova está confiada às partes, está presente o núcleo fundante de um sistema acusatório(juiz expectador).

[3]Paulo Rangel em sua obra Direito Processual Penal sustenta a passividade do juiz na instrução criminal, e Geraldo Prado em sua obra Sistema Acusatório entende comprometedora a investigação judicial pelo juiz, admitindo-se, todavia, que “moderadamente intervenha, durante a instrução, para, na implementação de poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s) esposada(s) pela defesa”.

[4]A prof.ª Lídia Prado, apoiada nos ensinamento de Renato Nalini, assevera que o magistrado “apegado à dogmática do direito objetivo, convence-se das verdades axiomáticas e protege-se na couraça da ordem e da pretensa neutralidade. A parcela de poder a ele confiada e a possibilidade de decidir sobre o destino alheio, tornam-no prepotente: é reverenciado pelos advogados e servidores, temido pelas partes, distante de todos. Considerando-se predestinado e dono do futuro das partes no processo, revela-se desumano, mero técnico eficiente e pouco humilde, “esquecido da matéria-prima das demandas: as dores, sofrimentos e tragédias humanas”.(pg. 22 op.cit)

[5]Tércio Ferraz Jr citado pela autora Lídia Prado mostra como o dogma da neutralização do judiciário, que reforçou o lugar privilegiado da lei como fonte do direito, serviu também na caracterização do Estado Burguês, tornando-se , no decorrer do século XIX, a base dos sistemas políticos desenvolvidos”.

[6]O jurista Lênio Streck na sua obra Tribunal do Júri Símbolos e Rituais (p.43) acentua que “a pesquisa nas faculdades de Direito está condicionada a reproduzir a sabedoria codificada e a conviver respeitosamente com as instituições que aplicam (e interpretam)o direito positivo. O professor fala de códigos, e o aluno aprende (quando aprende)em Códigos”.

[7]Por força dessas concepções , o juiz passou na Europa continental o papel que já lhe era dado na Inglaterra no começo do Século XVII, devendo ser um aplicador da lei, preso à forma e proibido de analisar criticamente os textos legais para buscar a aplicação mais justa, conforme os valores sociais vigentes. Foi por esse caminho que se chegou ao juiz “escravo da Lei’, expressão absurda incompatível com a condição de juiz e que torna irrelevantes o valor moral ou intelectual do magistrado e serviu, como ainda tem servido, para reduzir os juízes à condição de serviçais passivos dos “fabricantes de leis”. (DALLARI, 2006, p. 11)

[8]Barroso (2005, p.6-7) explicita “nessa perspectiva, a interpretação jurídica consiste em um processo silogístico de subsunção dos fatos à norma: a lei é a premissa maior, os fatos são a premissa menor e a sentença a conclusão. O papel do juiz consiste em revelar a vontade da norma, desempenhando uma atividade de mero conhecimento , sem envolver qualquer parcela de criação do Direito para o caso concreto”.

[9]DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. cit. pp.13

[10]Antoine Garapon citado por NALINI (2006, p.20) assevera que “o juiz não é só o guardião, mas o concretizador das promessas do constituinte. Ele é o garante , é o avalista e é o implementador de tudo aquilo que o povo, mediante seus representantes, quis que a Justiça propriciasse à nação”.

[11]Para Luiz Recaséns Siches citado por PRADO (2006, p.14) “na produção do julgado, destaca-se o papel do sentimento do juiz, cuja importância fica evidenciada até pela etimologia da palavra sentença, que vem de sentire, isto é, experimentar uma emoção, uma intuição emocional”.

[12]O jurista Guilherme Nucci afirma: “Ainda assim, falar em verdade real implica em provocar no espírito do juiz um sentimento de busca, de inconformidade com o que lhe é apresentado pelas partes, enfim, um impulso contrário à passividade. Afinal, estando em jogo direitos fundamentais....deve o juiz sair em busca da verdade material, aquela que mais se aproxima do que realmente aconteceu...quer que o magistrado seja co-autor na produção de provas” Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. 2.t. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005 pg.92/93.No mesmo sentido, Benedito Pozzer em sua obra a Correlação entre a acusação e sentença ao sustentar que “ Da adoção do sistema acusatório decorre o denominado processo penal de partes, apenas incoado pelo agir do acusador. Mas, desencadeado, o juiz não fica subordinado às provas produzidas pelas partes, facultando-lhe o Código de Processo Penal...determinar diligências necessárias a dirimir dúvidas sobre ponto relevante...”