quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A CANDURA E A SERENIDADE DE DONA CANÔ

A CANDURA E A SERENIDADE DE DONA CANÔ




Eu estava já há algum tempo dominado por uma vontade interior muito forte de conhecer dona Canô e um pouco a vida dos meus ancestrais. O meu bisavô – Visconde Ferreira Bandeira – é oriundo de Santo Amaro, onde existe uma Rua com o seu nome. Dizia os mais antigos que o meu bisavô era muito mulherengo, tanto que havia uma rua inteira com mulheres só dele. Parece que naquela época era uma situação normal, mesmo porque no ápice de uma sociedade marcadamente machista, a mulher não passava de uma coisa, ou de um mero objeto sexual.

Na verdade, a minha curiosidade estava menos voltada para o fato de Dona Canô ser mãe de dois artistas talentosos e famosos – Caetano Veloso e Maria Bethânia – e muito mais voltada para os segredos da vida de uma líder e os caminhos que havia percorrido para alcançar a longevidade com saúde e inteligência. Admiro as pessoas que alcançam a maturidade com inteligência , saúde e espiritualidade, ou seja, que sabem envelhecer naturalmente. A minha avó Emídia faleceu com 103 anos comendo jaca e recitando poesias. Uma lucidez e uma memória admiráveis. Um taxista, amigo meu, certa vez me confidenciou que estava com inveja de mim. Procurei saber o motivo e ele me disse emocionado: gostaria muito de ter tido uma avó como você teve. Na verdade, nesse mundo tão violento e cheio de maldades, enfermidades e acidentes, é um privilégio envelhecer, principalmente envelhecer com dignidade.. Avós nada mais são do que pais adocicados e com mais tempo. Como é bom ouvir a lição dos mais velhos. O texto de Affonso Romano de Sant`ana intitulado “ antes que elas cresçam” reflete com exatidão esse amor dos avós em relação aos netos, como se pode observar:



O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam



Creio que talvez tenha faltado essa relação de afetividade na vida do meu amigo taxeiro.

Voltando à Dona Canô. Certo dia, em plenas férias, resolvi sair da Br 101 e pegar a estrada para Santo Amaro da Purificação com um único objetivo: conhecer e conversar com D. Canô. Depois de percorrer alguns quilômetros, chegamos a Santo Amaro numa manhã de domingo. Havia missa na matriz e parei o carro com a minha turma para ver se D. Canô, como grande fiel que é, estava lá. Não se encontrava na Igreja. Saímos então à procura de seu endereço, quando então descobrimos um casarão antigo, bem conservado. Batemos à porta com certo receio e logo fomos recebidos por uma filha de D. Canô, que pediu que aguardássemos um pouco para que D. Canô nos recebesse. Não demorou nada e fomos autorizados a adentrar no quarto de D. Canô, onde já se encontrava toda arrumada e pronta para receber o seu povo, como ela mesma nos disse. No quarto, ao lado da cama, estava D. Canô, sentada numa cadeira e esboçando um sorriso doce para todos nós. Procurei saber dos segredos de sua longevidade saudável. Ela me falou que não vale a pena na vida superdimensionar os problemas com os outros, como a dizer, leve uma vida simples, exercite o perdão, cultive o amor, valorize mais o “ser” do que o “ ter”, e entenda a finitude da vida como algo absolutamente normal de qualquer ser neste planeta e viva intensamente cada momento como se não houvesse o amanhã, como já dizia o poeta. A sua simplicidade e serenidade me revelava o segredo de uma verdadeira líder numa comunidade, quando demonstra, pelo seu exemplo, que a autoridade nunca pode ser imposta, mas conquistada pelo respeito granjeado junto a seus pares. Os seus cabelos brancos revelavam a noção de missão cumprida em relação a seus deveres de mãe e de mulher guerreira, que sabe o que quer, como a se projetar nos versos do apóstolo Paulo, citado em Timóteo, 4:7,8, quando disse: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé”. A sua fala mansa e suave passava uma religiosidade muito forte e a alegria de ser o que é . O seu olhar compassivo traduzia ternura, compaixão e esperança. Procurei saber do meu bisavô, mas só o conheceu de nome, tanto ele, como uma famosa baronesa Bandeira.

Terminou a visita. Valeu a pena !Algo valoroso preencheu o meu interior. Como foi recompensador conhecer a riqueza de uma mulher, simples, serena, educada, inteligente, que soube como poucos envelhecer com inteligência e dignidade. Obrigado D. Canô.



Marcos Bandeira