quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

REMISSÃO CLAUSULADA COMO NOVO MODELO DE JUSTIÇA CONSENSUALIZADA

REMISSÃO CLAUSULADA COMO NOVO MODELO DE JUSTIÇA CONSENSUALIZADA




O assunto a ser colocado em pauta diz respeito à efetividade das medidas socioeducativas previstas no ECA, especialmente às cumpridas em meio aberto e semi-aberto, diagnosticando a crise do modelo clássico estatal de dizer, coercitivamente, o direito e apresentar alternativas consensualizadas e sintonizadas com as tendências contemporâneas do Direito.

Na verdade, a temática, certamente, não constitui nenhuma novidade, pois já está na Lei desde a entrada em vigor do ECA, ocorrida no dia 14 de outubro de 1990. Todavia, boa parte dos operadores do Direito, muitas vezes, em face da sobrecarga de trabalho verificado em suas Varas, ainda não se deu conta da profundidade de seu conteúdo e da sua importância para a resolução dos conflitos, envolvendo adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais. Destarte, urge que se quebrem paradigmas e isso implica, necessariamente, mergulhar-se em si mesmo, para mudar de atitude e enxergar além do modelo clássico de jurisdição – dizer o direito , um outro modelo, cuja base é o consenso, como verdadeiro instrumento de resolução dos conflitos, envolvendo adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais. Pode-se afirmar que esse modelo, o qual José Luiz Bolzan Moraes denomina de jurisconstrução, pode ser aplicado em 95% dos casos ocorridos na Vara da Infância e Juventude e representa uma das tendências do Direito contemporâneo, a exemplo do que já ocorre no Direito americano (com a Alternative Dispute resolution), na França, entre outros países. O juiz, que comumente realiza duas ou três audiências no sistema tradicional, para aplicar medidas socioeducativas em meio aberto – liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade -, pode realizar, numa assentada, num turno, cerca de 15 a 20 audiências para obter, pela lei do menor esforço, sem ouvida de testemunhas, alegações finais, sentença etc., a mesma resposta – medida socioeducativa -, só que esta construída pelo consenso e responsabilidade das partes envolvidas e com o parecer técnico da equipe interdisciplinar.

Esse é o ponto de partida para mudança de mentalidade e de posicionamento, abandonando, parcialmente, o velho sistema clássico, caracterizado pela lentidão dos procedimentos, repressão, oneração, inflexibilidade, e o que é mais grave, ineficiente para responder, adequadamente, aos conflitos que lhe são submetidos, e abraçar uma nova postura consentânea com a personalidade em desenvolvimento do adolescente, qualificada pelo consenso construído pelo juiz, promotor, adolescente e seu defensor, seus pais ou responsável, equipe interprofissional, em busca de uma resposta – medida socioeducativa – que seja adequada e suficiente para que o adolescente reflita sobre o ato que cometeu e possa, com a ajuda dos operadores sociais, introjetar valores que o credenciem a se distanciar do mundo das drogas e dos atos infracionais, caminhando seguro em direção à cidadania.

Nesse diapasão, é inevitável afirmar que o modelo tradicional repressivo-correcional está em crise, pois é manifestamente insuficiente, para responder ao grande fluxo de demandas, acentuado pela globalização da economia que fez do Brasil o vice-campeão em desigualdade social, só perdendo para Serra Leoa na África, aumentando assim os bolsões de miséria e a violência, principalmente, a praticada por adolescentes. Com efeito, verifica-se que a maioria dos atos infracionais praticados por adolescentes tem motivação econômica, o que torna seletiva essa clientela, ou seja, a classe marginalizada ou dos excluídos, daqueles que, segundo o juiz mineiro Tarcísio José Martins :

“... historicamente jamais tiveram acesso a condições mínimas de bem-estar e de dignidade, e que, portanto, nunca se reconheceram ou foram reconhecidos como cidadãos plenos pela sociedade e o Estado”.

O jurista Juarez Cirino dos Santos , ao discorrer sobre a seletividade, precisamente sobre o direito penal dos pobres, explicita:

“Sem dúvida, são eles que constituem a clientela do sistema e são por ele, virtualmente, oprimidos. Só os pobres sofrem os processos de vadiagem e só eles são vítimas das batidas policiais com o seu cortejo de ofensas e humilhações. Só os pobres são ilegalmente presos para averiguações, enquanto os ricos, que nunca vão para as prisões, livram-se facilmente, contratando bons advogados, recorrendo ao tráfico de influência e à corrupção. Em situações excepcionais quando isso vem a suceder, logo ficam doentes e são internados nos hospitais. Parece certo que a realização do sistema punitivo funciona como um processo de marginalização social, para atingir uma determinada clientela, que está precisamente entre os mais desfavorecidos da sociedade”.



O Brasil, segundo dados de recente pesquisa da ONU, tem 57,6 milhões de crianças, o que representa 35, 9% da população. Há 54 milhões de indigentes – pessoas que sobrevivem com menos de R$ 100,00 por mês –, ou seja, para quase três brasileiros um vive na linha da pobreza; cerca de 3,5 milhões de crianças nascem no país todos os anos, sendo que, em cada quatro, uma vive em absoluta pobreza. Uma criança em cem deixará de receber a vacina contra sarampo e poliomielite no seu primeiro ano de vida; 10% sofrerá de desnutrição nos primeiros cinco anos; 6% vive sem água potável e 14% sem saneamento básico; 10% dos adolescentes entre 15 a 17 anos deixarão de estudar para trabalhar .

A desigualdade social é gritante: 10% dos mais ricos detêm cerca de 50% da renda nacional, enquanto 50% dos mais pobres detêm menos de 10% da renda . Consoante documento referencial do SINASE, baseado em dados mais recentes do IBGE (IBGE, 2004), 1% população rica detém 13, 5% da renda nacional, contra os 50% mais pobres, que detêm 14,4%. Nesse universo existem 25 milhões de adolescentes entre 12 e 18 anos, representando aproximadamente 15% da população brasileira. No que toca à escolaridade, 92% da população de 12 a 17 anos estão matriculados, todavia, 54% ainda são analfabetos; 80% dos adolescentes entre 15 a 17 anos freqüentam as escolas, mas somente 40% estão no nível adequado para sua faixa etária; somente 11% dos adolescentes de 14 e 15 anos concluíram o ensino fundamental; a escolarização diminui à medida que aumenta a idade, sendo de 81,1 % entre os jovens de 15 a 17 anos, e de 51,4% com relação aos jovens entre 18 e 19 anos.

Existem, no Brasil, com base em dados da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, cerca de 39.578 adolescentes cumprindo medidas socioeducativas, sendo que 90% que cumpriam medida de internação eram do sexo masculino; 76% tinham idade entre 16 e 18 anos; 63% não eram brancos e destes 97% eram afro descendentes; 51% não freqüentavam a escola; 90% não concluíram o ensino fundamental; 49% não trabalhavam; 81% viviam com a família quando praticaram o ato infracional; 12,7% viviam em famílias que não possuíam renda mensal, 66% em famílias com renda mensal de até dois salários mínimos; e 85% eram usuários de drogas.

Segundo Waiselfisz , a morte por causas externas, entre a população jovem, é de 72%; destas 39,9% referem-se a homicídios praticados contra a população jovem; já com relação à população idosa a taxa de óbito é de 9,8%, e destes, os homicídios representam apenas 3,3. Constata-se que os jovens morrem muito mais do que matam. Os homicídios praticados contra crianças e adolescentes chegam a 19.188, enquanto os praticados por eles somam 1.286, de acordo com dados do SINASE.

É sabido que, além dos fatores econômicos e sociais, o ato infracional é causado por fatores endógenos, como a inteligência, perturbações afetivas ou emocionais, sentimentos de perdas e grau de frustração, dentre outras. Todavia, os excluídos, a que certos setores da cidade, segundo Viviane Forrestier , consideram como “cidadãos descartáveis, incapazes de consumir ou se integrar ao mercado” constituem, sem dúvidas, a maior clientela da Vara da Infância e Juventude na área infracional.

Não se pode, neste novo milênio, tratar o direito infracional juvenil com eufemismo, a exemplo de direito penal juvenil, “direito penalzinho”, “peninha”, ”trombadinhas” e expressões que estigmatizam o adolescente, tratando-o como se fosse imputável, ou mesmo considerando-o como mero objeto, e não sujeito de direito, como proclamado nas regras de Beijing, acolhido pela Constituição Federal e pelo ECA, aceitando assim, passivamente, a ideologia expiatória do Código de Menores de 1979, representado, simbolicamente, pela desumanidade do que acontece na FEBEM, que é um modelo fracassado, ultrapassado e que já deveria ter sido implodido, como foi o Carandiru, pois não tem qualquer sustentação num Estado Democrático de Direito.

Deve-se tratar o Direito Infracional Juvenil como ele, ontologicamente o é, ramo diferenciado da Justiça, e a Vara da Infância como Vara especializada a exigir uma postura diferenciada dos juízes, promotores e advogados, na medida em que compreendam que as questões conflituosas, envolvendo adolescentes, não são simplesmente questões jurídicas. É muito mais que isso, são multifacetárias e exigem a concorrência de operadores sociais – assistentes sociais, psicólogos e pedagogos, psiquiatras – para que seja construída uma resposta adequada para determinada conduta típica praticada pelo adolescente. A questão é transdisciplinar e exige a concorrência de todos os protagonistas para a busca da medida sócio-educativa e/ou protetiva ideal para determinado caso concreto.

Vê-se que o sistema consensualizado oferece vantagens inúmeras e se afigura mais adequado para a resolução dos conflitos na área infracional juvenil, pois é mais célere, flexível, prepondera o princípio da oralidade, diminui os custos e é eficiente. Nesse sentido, José Luis Bolzan , na obra já citada explicita:

“Aparecem, assim, os mecanismos consensuais – apesar de suas distinções – como outra justiça na qual, ao invés da delegação do poder de resposta, há aproximação pelos envolvidos do poder de geri-los, caracterizando-se pela proximidade, oralidade, ausência/diminuição de custos, rapidez e negociação, como já dito, quando, na discussão do conflito, são trazidos à luz todos os aspectos que o envolvem, não se restringindo apenas àqueles dados deduzidos na petição inicial e na resposta de uma ação judicial cujo conteúdo vem pré-definido pelo direito positivo.

A questão que sobressai, aqui, é a de diferenciar a estrutura desses procedimentos, deixando de lado o caráter triádico da jurisdição tradicional, onde um terceiro alheio à disputa impõe uma decisão a partir da função do Estado de dizer o Direito, e assumindo uma função díade/dicotômica, na qual a resposta à disputa seja construída pelos próprios envolvidos.

É por isso que propomos como gênero o estereótipo jurisconstrução, na medida em que essa nomenclatura permite supor distinção fundamental entre os dois grandes métodos. De um lado, o dizer o Direito próprio do Estado, que caracteriza a jurisdição como poder/função estatal e, de outro, o elaborar/concertar/pactar/construir a resposta para o conflito que reúne as partes”.

Nessa linha de raciocínio, o professor e pós-doutor em Direito, Paulo Bezerra , em sua obra “Acesso à Justiça”, já convencido da ineficiência do combalido modelo clássico de dizer o direito, vaticinando, manifesta a tendência moderna de se procurar o consenso como forma de solucionar os litígios. Veja-se:

“Alem disso, não é de ninguém desconhecido que, modernamente, a tendência é abandonar soluções ditadas por terceiros, principalmente pelo Estado-juiz, buscando-se a paz por meio do consenso e da própria vontade. Isso tem conduzido os atores às formas autocompositivas de solução de conflitos, principalmente a negociação e a mediação, sendo visto o Estado como parceiro na resolução dos conflitos, já não como solucionador”.

Transpondo-se essas premissas para a área da infância e juventude, vê-se que o ECA, nos seus §§ 1º e 2º do Art. 186, já previa o consenso nos moldes da “transação penal” prevista na Lei nº 9.099/95, como forma de solucionar os litígios. Numa linguagem mais clara, previu a possibilidade de o adolescente, apontado como autor de um ato infracional, não ser privado de sua liberdade, nem de forma semiplena, desde que tenha aptidão e concorde, juntamente com o seu pai ou responsável, em cumprir uma medida sócio-educativa, em meio aberto, seja liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade. A remissão clausulada ou vinculada como forma de exclusão do processo nada mais é na sua essência do que a transação penal prevista no Art. 74 da Lei nº 9.099/95, só que, no ECA, sobressai o seu lado pedagógico, voltado para a condição peculiar do adolescente como sujeito de personalidade em formação, o que se pode denominar de transação socioeducativa. Na verdade, antes da Lei nº. 9.099/95, o ECA já previa a transação como forma de compor litígios envolvendo adolescentes. Vê-se também que já se admitia a remissão clausulada como forma de suspensão do processo nos mesmos moldes preconizados pela suspensão do processo penal, prevista no Art. 89 da Lei nº 9.099/95.

O jus libertatis do adolescente é preservado, mas a medida busca despertar o senso de responsabilidade do jovem, diante do ato que lhe é imputado, objetivando o afloramento de valores que dignifiquem o ser humano, como respeito ao próximo, honestidade, educação, trabalho, orientação espiritual, ao tempo em que procura reintroduzi-lo na sociedade que o deixou à margem, através da educação e da inserção no mercado de trabalho.

Como se observa, o legislador previu um ritual para os casos considerados graves – o que deve ser analisado caso a caso – estabelecendo o seguinte in verbis:

“Art. 186 – Omissis

§ 1º - Omissis

§ 2º - Sendo o fato grave, passível de aplicação de medida de internação ou colocação em regime de semi-liberdade, a autoridade judiciária, verificando que o adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor, designando, desde logo, audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligências e estudo do caso”.

Como se depreende, a contrario sensu, não sendo o caso grave, ou seja, desde que o ato infracional imputado ao adolescente seja de pequeno ou médio potencial ofensivo, o Juiz, na própria audiência de apresentação, quando o Ministério Público não utilizar da prerrogativa do Art.180, I do ECA, requerendo a remissão clausulada, deverá, após receber a representação, ouvi-lo no ato de audiência, nos termos preconizados pelo § 1º do Art. 186 da Lei nº 8.069/90, a respeito da possibilidade da remissão, ouvindo em seguido o adolescente e seus pais ou responsável, bem como seu defensor, e depois, com o assessoramento de equipe técnica – pedagogos, psicólogos e assistentes sociais – deverão juntos buscar a medida mais adequada para aquele caso.

Importante salientar que o adolescente a quem se atribui a prática de um ato infracional não deve receber um tratamento mais severo do que receberia o imputável – maior de 18 anos – autor da mesma transgressão, como imperativo das garantias processuais e constitucionais que asseguram ao adolescente, parte reconhecidamente vulnerável, um tratamento diferenciado em relação ao adulto. Desta forma, se o crime é de menor potencial ofensivo, ou se doloso, foi praticado sem violência ou grave ameaça, a pena não ultrapassa a 4 anos; ou se culposo, independente da quantidade de pena prevista abstratamente, comporta a aplicação de penas alternativas, sendo, pois, de rigor, afastar a aplicabilidade da medida extrema do internamento. Da mesma forma, se comporta em relação ao adulto, no máximo, o regime semi-aberto, como é o caso do injusto previsto no Art. 16 da Lei nº 6.368/76, afasta-se também o internamento, que é caracterizado pela brevidade e excepcionalidade. É bem de ver, conforme o escólio do Promotor Roberto Decoiman , de Santa Catarina, que a expressão “conceder”, descrita no Art. 180, II do ECA, não traduz, ,juridicamente, o seu sentido vernacular, pois não passa de uma proposta ou sugestão de remissão. Assim, preleciona o ilustre representante do Ministério Público:

“Exigida que é a homologação judicial da remissão ‘concedida’ pelo Ministério Público, venha ela ou não acompanhada da proposta de aplicação de medida sócio-educativa ao adolescente, bem se vê que o conteúdo da expressão “conceder” não corresponde a uma faculdade exclusiva, privativa, irrestrita e auto-executável do Ministério Público. Guarda ela os contornos de verdadeira sugestão.

Funciona, em verdade, como proposta de aplicação imediata de medida sócio-educativa ao adolescente, com o objetivo de evitar-se a instauração do procedimento subseqüente à oferta da representação.

Noutras palavras, na verdade, quem concede a remissão, seja ela pura e simples, seja acompanhada de medida sócio-educativa, não é o Ministério Público....quem na verdade concede, em última análise, a remissão, é a própria autoridade judiciária. Do mesmo modo, é ela quem aplica a medida sócio-educativa proposta”.

O instituto da Remissão está previsto nos seguintes dispositivos do ECA:

Art. 126 – Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração do ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.

Parágrafo Único – Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

Art. 127 – a Remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação de culpabilidade, nem prevalece para efeitos de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.

Impõe-se enfatizar que, dadas as peculiaridades do caso, as circunstâncias, o contexto social e a personalidade do adolescente, é possível a remissão clausulada, mesmo em casos graves, praticados com violência ou grave ameaça, como v.g., no caso de homicídio, no qual se afigura possível uma justificativa – legítima defesa, legítima defesa putativa, inexigibilidade de conduta diversa – e o adolescente, com seu representante legal, sua anuência e com a assistência jurídica do seu defensor concordam em cumprir alguma medida socioeducativa em meio aberto, como liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade, para não discutir o meritum causae, e as condições familiares e sociais do adolescente indiquem o cumprimento de medida socioeducativa, em meio aberto, como resposta pedagógica mais adequada para aquele caso concreto.

Nesse caso, o Promotor, entendendo que a medida em meio aberto é adequada, já que o adolescente não encarna o perfil de jovem periculoso e familiarizado com o mundo do crime, e que, ao contrário, o fato foi isolado e as circunstâncias do ato infracional não descartam a possibilidade de que o mesmo tenha utilizado de alguma excludente de criminalidade ou culpabilidade, pode propor a aplicação da remissão cumulada com medida socioeducativa e/ou protetiva.

Essa mesma inferência pode ser aplicada em alguns casos praticados com violência ou grave ameaça, principalmente se o jovem foi um mero partícipe, pois nem sempre a gravidade do ato infracional ensejará a aplicação da medida socioeducativa de internamento. Impõe-se diferenciar a conduta do imputável que comete crime ou contravenção daquela praticada pelo adolescente. O ex-estudante da UESC, Rafael Fernandes Pimentel , com sutileza, expressou:

“Importante é lembrarmos que a transgressão é um fenômeno intrínseco à adolescência. A rebeldia e a contestação caminham paralelas a esta fase da vida do indivíduo. A conduta impulsiva típica do adolescente decorre necessariamente da crise de identidade por que passa. Contrastam, formando uma verdadeira mixórdia, as naturais transformações psíquicas e hormonal, o conseqüente comportamento transgressivo e questionador (...) por tudo isso, olhar para o adolescente reconhecendo sua diferença implica redimensionar o significado de seus atos, entendendo melhor a realidade para nela intervir eficazmente”.

É necessário, portanto, que o juiz conheça bem o contexto, a história do adolescente e fundamente a escolha pela internação, explicitando o motivo pelo qual não aplicou uma medida mais branda ao adolescente. Nesse sentido, o STJ vem se posicionando unissonamente, de acordo com o julgado abaixo:

“O cotejo entre o comportamento do menor e aquele descrito como crime ou como contravenção atua apenas como critério para identificar os fatos possíveis de relevância infracional, dentro da sistemática do ECA. Exatamente porque ao menor infrator se aplicam medidas outras de caráter educativo e protetivo sem critérios rígidos de duração, já que vinculados exclusivamente à sua finalidade essencial” (HC 10.679).

“Se o adolescente, além de trabalhar e estudar, cumprir toda a medida sócio-educativa de liberdade assistida, tendo o relatório técnico da FEBEM informado não revelar mais tendência infracional e ter condições de convívio social, o fundamento básico do acórdão atacado, gravidade da conduta (tentativa de latrocínio) não têm força bastante para afastar essas constatações, mesmo porque, a internação é medida extrema, cabível quando o caso não comporta outra menos grave”.

“O fundamento básico do acórdão, que consubstanciou-se na gravidade da conduta – não é suficiente para motivar a privação total da liberdade do menor, tendo em vista a própria excepcionalidade da medida de internação”.

Como se depreende, a remissão clausulada não implica reconhecimento de culpa e nem configura antecedentes, podendo ser utilizada várias vezes, desde que o jovem tenha, efetivamente, condições de cumprir a medida socioeducativa que vier acompanhada em meio aberto. Com efeito, pode-se afirmar que esta forma de composição de litígios não elimina o modelo tradicional, pois haverá casos em que o Promotor não entenderá cabível o cumprimento da medida em meio aberto ou preferirá o devido processo legal.

Da mesma forma, se o defensor do adolescente sustentar a tese da negativa de autoria ou da existência de alguma excludente de ilicitude e manifestar o propósito de provar sua inocência a qualquer custo, no âmbito do devido processo legal e da mais ampla defesa, será necessário o procedimento. Verificar-se-á, entretanto, que poucos serão os casos reservados para o modelo clássico, pouco mais de 5%, o que, sem dúvida, é muito pouco e confirmará apenas a supremacia do modelo consensual de composição de litígios.

O modelo consensual, por sua vez, contribuirá para desemperrar a máquina judiciária, fazendo incidir o princípio da economia processual e da corrente minimalista do direito infracional juvenil, reservando-se para a semiliberdade e o internamento os fatos, comprovadamente graves, e praticados com grave ameaça ou violência, e que demonstrem a necessidade de medidas que atinjam o status libertatis do jovem autor de ato infracional. O internamento é regido pelo princípio da legalidade estrita e só deve ser aplicado aos casos, taxativamente previstos, no Art. 122 do ECA, já que se trata de medida excepcional e que não admite interpretação extensiva. Assim, vêm reconhecendo alguns julgados do STJ que consideram ilegal o internamento de adolescente primário no caso de tráfico de drogas .

Portanto, o internamento deve ser a ultima ratio e reservado, exclusivamente, quando houver violação de bens jurídicos relevantes na comunidade – homicídio, estupro, roubo, extorsão mediante seqüestro etc., e que, numa análise geral do caso, seja inviável o cumprimento da medida em meio aberto ou semi-aberto, seja porque o jovem, familiarizado com o mundo das drogas e dos atos infracionais, revele inaptidão para o convívio social, seja porque fatores endógenos – inteligência, perturbações afetivas ou emocionais, predisposição do adolescente à delinqüência, sentimento de perda no grau de frustração, dentre outros – adicionados à gravidade da conduta recomendem o internamento, como forma necessária e preparatória para a progressão para a semiliberdade ou meio aberto.

Na verdade, mesmo fora dos casos de remissão clausulada – transação socioeducativa – é possível o consenso com relação à aplicação da medida de semiliberdade, desde que comprovada a autoria e materialidade do ato infracional, o defensor do acusado, durante a audiência de instrução, apoiado em relatório técnico, se convença que a semiliberdade seja, de fato, a medida mais adequada para aquele caso. É possível até que o defensor do acusado, após a confissão do representado, não havendo dúvidas sobre a autoria e demais circunstâncias do fato, entenda desinfluente a ouvida das testemunhas arroladas na defesa prévia e as dispense, abreviando, assim, o procedimento, sem que sejam violados os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, ensejando que o juiz aplique a medida de semiliberdade em consonância com o pensamento do Ministério Público, do adolescente e de seu respectivo defensor. Pode-se ainda alinhar mais um motivo plausível para que se excepcione o internamento, e se prefira o cumprimento da medida socioeducativa em meio aberto ou semi-aberto, mercê da condição natural de liberdade do jovem em desenvolvimento. É o seu alto custo, que, segundo estudos desenvolvidos em alguns Estados fica na ordem de R$ 1.500,00 por adolescente e a reincidência, em alguns, casos chega a 70% , enquanto o cumprimento da liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade, em alguns Estados, onde são aplicadas corretamente, como em Joinvile-SC, além do custo ser bem menor, os índices de reincidência em 1999 ficaram na ordem, respectiva, de 7 e 5%.

O importante é que se tenha uma estrutura física e humana capaz de executar as medidas sócio-educativas em meio aberto e semi-aberto, preenchendo, assim, uma lacuna que os juízes e promotores da Vara da Infância e Juventude enfrentam no seu dia-a-dia da atividade forense, utilizando-se, muitas vezes, da improvisação e amadorismo, para suprir suas carências. Na Bahia, felizmente, a Fundação Reconto e a Fundac, de forma revolucionária, vêm executando medidas socioeducativas em meio aberto e semi-aberto, em Canavieiras, Ilhéus e Itabuna, com resultados expressivos, fundamentadas na metodologia da Escola Dinâmica Energética do Psiquismo e na Pedagogia da Presença.

“... que busca fazer-se presente de forma construtiva na vida do adolescente, educando-o e auxiliando-o a resgatar a sua auto-estima, a crescer, a progredir, a assumir a vida e a perceber a grande possibilidade que é a vida e aprender a viver conscientemente.” (COSTA, Antonio Carlos Gomes da, 2001) .

Dessa forma, é fundamental que o adolescente se torne protagonista de sua própria história. A idéia da vingança e da mera expiação é substituída pela presença construtiva do educador na vida do jovem infrator, estabelecendo um vínculo de confiança, respeito e tolerância, pelo qual será perfurada a couraça do adolescente e tocada a centelha divina que está em cada um desses jovens, fazendo-o enxergar os seus limites, reconhecer o seu potencial e atingir as metas estabelecidas pelo educador. Os operadores sociais, dependendo da medida a ser aplicada – liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade ou semiliberdade, estudam cada caso, fazem trabalho de redes e parcerias, acompanham o jovem na sua relação familiar e na escola, fortalecem os vínculos familiares, inserem-no em oficinas profissionalizantes, de conformidade com a aptidão de cada um, acompanham o aproveitamento escolar e promovem, socialmente, o jovem, fazendo o trabalho de inclusão social e preparando-o para ser verdadeiramente um cidadão.

Este, na verdade, é o grande desafio de todos que mourejam nas Varas da Infância e Juventude: evitar que o adolescente, cuja personalidade ainda está em formação, transforme-se em um delinqüente. Assim, ter-se-á motivos de sobra para sonhar e acreditar que o amanhã será bem melhor para futuras gerações, como disse Juarez Oliveira, prefaciando a obra de Paulo Lúcio Nogueira :

 “Antes do sonho há um dever a ser cumprido, dever que é de todos nós. O menor é nosso; seu problema é nosso, como o dever de sua melhor construção também é nosso”.

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