quinta-feira, 15 de julho de 2010

EU ADORO FUTEBOL


EU ADORO FUTEBOL






Convivemos num Estado Democrático de Direito, onde sempre devem ser respeitados o pluralismo político, as diferenças, o direito da maioria, bem como o das minorias, o direito de crença e de expressão, este último na concepção mais próxima da filosofia de Voltaire. De fato, assim sempre me posicionei, exteriorizando as minhas convicções e, ao mesmo tempo, respeitando as opiniões ou convicções de terceiros. Creio que o fato de respeitar não impede de insurgir-me contra determinado posicionamento, principalmente quando ele vem apoiado em premissas falsas e permeado pela pecha do preconceito ou discriminação.

Há pouco tempo, li um artigo de um respeitável professor, no qual ele afirmava odiar o futebol e considerá-lo como sandice global, e que o referido esporte reforça o machismo ou estimula a homofobia e outras tantas barbaridades. Ora, não gostar do futebol ou de qualquer outro esporte é um direito natural, subjetivo de qualquer ser humano, entretanto, o fato de não gostar não o autoriza, por si só, a fazer afirmações inverossímeis ou a falar de um esporte cuja essência desconhece. Da mesma forma, não poderia me calar diante de tamanha injustiça lançada contra a maior paixão nacional e o maior instrumento de integração entre os povos. Seria, certamente, uma omissão imperdoável de quem é verdadeiramente amante desse esporte simplesmente mágico e extraordinário que pára e apaixona uma nação, um continente, ou até mesmo um planeta. O articulista demonstrou desconhecer o objeto a ser estudado, pois construiu o seu pré-conceito apoiado em premissas falsas que não condizem com o que acontece na realidade, exteriorizando, por assim dizer, uma visão reducionista ou periférica do futebol.

Desde a mais tenra idade, sempre joguei futebol, chegando a me aventurar no futebol amador, do qual guardo na memória momentos gloriosos. Continuo a jogar futebol e posso afirmar que foi e continua sendo uma experiência única e enriquecedora, cujas lições até hoje aplico na minha vida profissional. Foi no futebol que cultivei boa parte das amizades mais sólidas e leais que preservo até hoje. Adversários de ontem nos campos são meus amigos leais de hoje no cotidiano da vida. Cresci ouvindo, no radinho de pilha, Valdir Amaral, Jorge Cury, João Saldanha, Luiz Mendes e, aqui, na Bahia, a análise categorizada de Armando Oliveira, que, na minha modesta opinião, foi o melhor cronista esportivo do Brasil.

Segundo o médico Dráuzio Varela, o corpo é uma maquina que foi preparada ou programada para o movimento. O futebol não é simplesmente o esporte de vários homens correndo atrás de uma bola. Ele é muito mais que isso, é arte pura, equivalente à grande apresentação de uma ópera, é o movimento transformado em arte, é o flerte do drible do jogador, da jogada bem trabalhada e imortalizada, do lençol, do lançamento de 100 metros, da matada no peito, da ginga do carregador de piano, da tabelinha, do arremate de “três dedos”, ou da folha seca, da defesa espetacular do goleiro, da elegância do defensor técnico no desarme ou na saída de bola, da liderança do capitão sobre os seus pares, da bola na trave, ou a precisão do arremate colocando a bola onde “a coruja dorme”. O futebol é a estratégia do técnico para chegar à vitória, o futebol é a explosão do “orgasmo” do gol, do poder de superação e da perseverança do time que está perdendo, e que busca reverter a situação que lhe é desfavorável. O futebol é a paixão do gol aos 44 minutos do segundo tempo, que muda completamente a história de um jogo que vinha se desenhando ao longo de 89 minutos. O futebol, portanto, é arte, paixão e proporciona a magia de reter em nossa memória esses momentos simplesmente inesquecíveis, e que hoje já podem ser revividos nos diversos museus do esporte, nos vídeos e na literatura esportiva espalhados pelo mundo.

O futebol é saúde, pois nos proporciona maior oxigenação e trabalha com todos os membros de nosso corpo. Quem pratica futebol regularmente, normalmente tem uma excelente saúde física e mental.

O futebol é instrumento de transformação social. Quantos jovens sem perspectiva conseguiram mudar sua vida através do esporte? Quantos jovens que viviam no mundo das drogas conseguiram afastar-se do vício e da droga através do futebol? Quem pode desmerecer o trabalho das escolinhas de futebol nas periferias das grandes cidades, lutando arduamente contra o traficante de drogas? Quantos garotos foram resgatados das drogas e do crime, e hoje são cidadãos úteis à sociedade e ajudam seus familiares a sair da miséria. Desnecessário enumerar, diante de tantas histórias que nos emociona a cada dia.

O futebol é cultura, pois é estudado no curso de Educação Física, exposto nos museus e estudado por entidades em todo o mundo. Embora sejamos empiricamente técnicos de futebol, existem , hoje, em todo o mundo, cursos de técnicos e de árbitros de futebol. O futebol é lúdico e proporciona alegria a muita gente, principalmente, nas tardes de domingos. Além do mais, em face do baixo custo, propicia que pessoas simples freqüentem os estádios para assistir e torcer pelos seus times de coração, muitos deles sem condições de ir a um teatro ou a algum espetáculo cultural, em face do preço inacessível. Ele aproxima as pessoas, independentemente da classe social, seja no estádio ou em suas casas.

O futebol é mecanismo de paz, e foi com essa perspectiva que Pelé, numa excursão que o Santos fazia pelo Congo Belga, conseguiu temporariamente paralisar uma guerra civil, jogando duas partidas de exibição. Nem a ONU consegue a integração de todos os povos do planeta num mesmo lugar como o futebol, que mobiliza todas as nações, incitando o sentimento de pátria, hoje quase esquecido em nosso país. O treinador brasileiro Jorvan Vieira conseguiu classificar a seleção de futebol do Iraque para a Copa da Ásia. A rivalidade étnica entre xiitas e sunitas foi esquecida durante a festiva classificação, e todos eles, xiitas e sunitas, abraçavam-se, brincavam, dando as mãos e até tocavam música árabe juntos. Essas proezas, só o futebol é capaz de realizar.

O futebol é democrático e anti-homofóbico (se realmente existe essa expressão), pois joguei com pobres, lavadores de carro, milionários, homossexuais, brancos, negros, amarelos, índios, médicos, juízes, garis, pescadores, trapicheiros, carregadores de cacau, trabalhadores rurais, analfabetos, doutores, professores e estrangeiros, e percebi que todos, dentro das quatro linhas, são absolutamente iguais, ou melhor, são atletas, despojados de qualquer cargo ou honraria e, muitas vezes, o lavador de carro pode ser o capitão do time pelo respeito e liderança democraticamente conquistados junto a seus pares. Jamais presenciei lances de racismo ou machismo, contrario sensu, sempre me lembro do respeito e da disciplina que eram passadas, principalmente, pelo treinador. Quem é boleiro, não precisa se apresentar, mesmo que seja estrangeiro, basta falar a linguagem universal do futebol. Um grande desportista, se não me engano, Sotero Monteiro, dizia que conhecia o jogador pelo arriar das malas. No futebol, existem muitas regras, como por exemplo, “quem pede recebe, e quem desloca tem preferência”; “o flanco é o caminho mais curto para chegar ao gol”. Essas e outras regras podem ser utilizadas em nosso cotidiano.

O futebol, em regra, não mata ninguém, como acontecia nas arenas romanas, cujos jogos normalmente terminavam com a morte de alguém provocado, por um gladiador ou pela fera. Evidentemente, que temos alguns fatos negativos no futebol, inclusive, com a incidência de brigas e mortes nos estádios, mas isso é exceção e não poderemos jamais julgar um esporte pela exceção. A mídia normalmente extrapola na cobertura excessiva do futebol, mas isso só confirma a importância do futebol para as pessoas, pois ele é entretenimento, é sonho, é alegria, e também lucro assegurado para as empresas televisivas.

O futebol gera emprego e renda em todo o mundo. Movimenta uma cidade, principalmente nos finais de semana, abrindo espaço para que pessoas simples e pobres possam vender seu amendoim e rolete de cana nos estádios e levar algum dinheiro para casa.

A atriz Maité Proença, em sua crônica “Era inveja”, diz que, “No Brasil, três coisas são indiscutivelmente democráticas. A praia, que debaixo de um sol junta madame e funkeira trajadas no mesmo uniforme. O futebol, que une o ladrão e o padre numa imensa fraternidade. E o trânsito, que bota o Zé do Chevete e João do Jaguar lado a lado, paralisados pela mesma encrenca. Das três brasilidades, o futebol é a que mais me intriga”, finalizou.

O futebol, a despeito de ser tudo isso, me passa lições e valores sobre os quais reflito e que busco aplicar no meu dia-a-dia, como o poder extraordinário de superação demonstrado por Ronaldinho na copa de 2002. O futebol molda o caráter e o espírito de liderança, ensina a trabalhar o seu equilíbrio emocional, ensina a sonhar, a perseverar, fortalece o espírito de união e solidariedade, estimula a disciplina e reverencia o respeito, mas, ao mesmo tempo, estimula o atleta a superar os seus próprios limites, ensinando a ganhar e, sobretudo, o que é o mais difícil, a perder, sobretudo com dignidade, demonstrando que a vida também é assim, ou seja, a vida é feita de desafios, de perdas e ganhos. Parodiando o inesquecível Raul Seixas, o futebol, imitando a vida, é feito de batalhas... É preciso caminhar, não desistir nunca, aprender humildemente com a derrota, e tentar outra vez.

Desta forma, em homenagem a uma das grandes invenções humanas que ainda existe no planeta Terra, gostaria de reafirmar que eu adoro futebol, e respeito quem não gosta, muito embora não seja obrigado a concordar com as opiniões sobre ele, principalmente quando ela vem com a marca do preconceito, daqueles que só conseguem enxergar alguns efeitos externos negativos, que absolutamente não afetam a essência transformadora da maior paixão nacional e o maior instrumento de integração entre os povos, que é o futebol. Como o mundo seria mais pobre e sem graça sem o futebol! Como imaginar esse mundo sem o talento de Pelé, Garrincha, Tostão, Rivelino, Maradona, Zico, Platini, Frank Beckenbauer, Romário e tantos outros monstros sagrados do esporte que deixaram registrada a sua arte futebolística em nossas memórias? Como depreciar a emoção brotando dos olhos do torcedor apaixonado? Para finalizar, com Voltaire, quero dizer, para o respeitável articulista - que não gosta de futebol -, que “defenderei até a morte o direito de dizer, embora não concorde com nada do que dissestes”.



MARCOS BANDEIRA – Juiz da Vara da Infância e Juventude de Itabuna, professor de Direito da Criança e Adolescente da UESC e ex-atleta de futebol.



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