segunda-feira, 10 de maio de 2010

O CADASTRO NACIONAL DE ADOÇÃO E O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE


O CADASTRO NACIONAL DE ADOÇÃO E O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE




A matriz da nova lei de adoção se inspirou, sem dúvida, no Plano Nacional de Proteção à convivência familiar e comunitária , que tem como pilares a afetividade e a afinidade, no âmbito do melhor interesse da criança ou adolescente. Com efeito, em cada caso concreto , o juiz deve buscar a decisão que atenda o melhor interesse do adotando, aferindo, sobretudo, a constituição de vínculos de afetividade ou afinidade entre adotantes e adotando. Essa deve ser a linha interpretativa a ser dada nos casos de adoção à luz da nova Lei de adoção.

Alguns doutrinadores e operadores do Direito, principalmente aqueles que participaram da elaboração da nova lei de adoção, tentam “santificar” o cadastro nacional de adoção, alçando-o à categoria de condição da ação ou de pressuposto (requisito) de prosseguimento válido de processo e, mais do que isso, como princípio absoluto, buscando, assim, uma interpretação literal, formal e neutra, tentando abstrair da decisão do juiz qualquer carga axiológica no caso concreto.

O art. 50 da Lei nº 8.069/90 estabelece a necessidade dos pretendentes à adoção se cadastrarem previamente para adotar. Assim, em regra, o cadastramento prévio se consubstancia como condição para o regular desenvolvimento da relação processual, consoante o escólio do jurista Afrânio Silva Jardim , perfeitamente aplicável a espécie, ou seja, se os pretendentes à adoção não estiverem inscritos previamente no CNA, o pedido de adoção deduzido em Juízo poderá ser invalidado mediante decisão judicial sobrestando-se o regular curso da relação processual. O legislador, inclusive, inovou ao prever a preparação psicossocial e jurídica dos postulantes, antes de ser deferida a inscrição no cadastro. A medida se justifica pelo fato não só de aferir as condições gerais do pretendente e seu ambiente familiar, mas também de prepará-lo adequadamente para o importante ato de receber uma criança de forma permanente no seio de sua família. Essa deve ser a regra, entretanto, o § 13 do referido artigo prevê três hipóteses em que se dispensam o cadastro. . O inc. I do § 13 do art. 50 prevê a hipótese da adoção unilateral, ou seja, aquela prevista no § 1º do art. 41, quando um dos cônjuges ou companheiro adota o filho do outro, quando, então, não será necessária a existência de inscrição em cadastro de pretendentes para adotar a criança, cujo vínculo de afetividade, presume-se, já foi construído pela convivência do casal com o adotando; a outra exceção constante do inc. II do § 13º do art. 50 prevê a hipótese de o pedido ser formulado por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afetividade ou afinidade. Finalmente, quando o pedido for formulado por guardião ou tutor legal de criança maior de 3 anos de idade, desde que haja comprovada construção de vínculos de afetividade e afinidade.

É imperioso ressaltar que o cadastro do pretendente será obrigatório se a criança tiver idade inferior a 3 anos. Ora, qual foi o critério utilizado pelo legislador para determinar o prazo de 3 anos? Será que a construção de vínculos de afetividade possui um tempo determinado? Creio que o legislador utilizou um critério arbitrário, pois estabeleceu aleatoriamente o período de três anos como o período necessário para a construção de laços de afetividade ou afinidade, numa convivência familiar, o que pode ser questionado em algumas situações particulares, onde também será constatada a existência de vínculos de afetividade entre o adotante e o adotando.

Na verdade, o legislador perdeu uma grande oportunidade de adequar a legislação à nossa realidade social e à cultural. Se o objetivo foi evitar a adoção intuito personae, coibindo aqueles casos das denominadas “adoções prontas”, em que a mãe biológica entrega diretamente seu filho a qualquer pessoa, ou aqueles casos em que a pessoa interessada se entusiasma pela criança abandonada que viu na televisão e corre para a Vara da Infância e Juventude, com a intenção de ficar com a criança, “furando” a fila de cadastro e prejudicando os interesse legítimos daqueles que estão cadastrados há algum tempo e esperando por uma criança para adotar, esqueceu que existem outras situações que deveriam merecer a tutela especial do Estado e que podem redundar em decisões injustas e iníquas, se tiver que obedecer absoluta e cegamente às exigências do cadastramento prévio. Existem casos de casais que já estão com a criança há mais de 3, 5 ou 10 anos e nunca providenciaram a guarda ou tutela legal, possuindo apenas a guarda de fato sem qualquer relação de parentesco com o adotando. Vários desses casos foram movidos simplesmente pelo espírito de amor e solidariedade, em outras palavras, pela afetividade, e mesmo que tenha havido alguma irregularidade na forma como foi obtida a guarda de fato da criança, o prolongado tempo de convívio familiar já fez surgir uma nova realidade, que não deve ser ignorada pelo Direito. Evidentemente que não estamos falando dos tipos elencados nos arts. 237 e 238 do ECA, que devem merecer a devida reprimenda, mas daqueles casos em que a genitora resolve entregar seu filho para determinada pessoa, ou qualquer irregularidade desse nível, quando então o tempo já se encarregou de edificar uma outra realidade. Os vínculos familiares de afetividade já foram consolidados. Em outros casos, os pretendentes possuem a guarda legal ou tutela legal e a criança possui idade inferior a 3 anos e os vínculos de afetividade já estão constituídos, no entanto, não pode ainda ingressar com o pedido de adoção, pois a criança não atingiu o prazo exigido pela lei. Ora, como se sabe, esses vínculos, segundo se sabe, não exigem um prazo para que sejam constituídos, pois o tempo, a situação peculiar, a convivência familiar é que vão determinar ou não em cada caso concreto a construção desses vínculos. Nesse sentido, é lapidar a lição de Thiago Felipe Vargas Simões , quando pontifica:

Deixar de reconhecer a paternidade/filiação fundada no amor, no afeto, no carinho, na preocupação, no querer bem e na demonstração mais simples e bela que um ser humano pode ter por seu semelhante, é justo? Seria razoável? Seria atender aos ditames constitucionais de “bem estar”, de “igualdade e justiça” como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos que se funda em harmonia social trazidos no Preâmbulo de nossa Constituição Federal? Parece-nos que não (...) o não reconhecimento do AMOR, do AFETO como formador da família e da relação de parentalidade é ir de encontro às bases constitucionais do nosso Estado Democrático de Direito.

Não entendemos por que o legislador desconheceu a realidade cultural da afetividade na guarda de fato por parte de pessoas que não guardam qualquer relação de parentesco com o adotando, reconhecendo apenas no inc. II do § 13 do art. 50 do ECA, a guarda de fato de pessoas vinculadas pelos laços de consanguinidade, quando a realidade cultural faz preponderar o estado de filiação socioafetiva em relação à vinculação biológica ou consanguínea, com amplo e sedimentado reconhecimento dos tribunais superiores e pela doutrina pátria. Nesse sentido, Simões no artigo supracitado , explicita:

A filiação biológica não está mais em pé de superioridade, uma vez que a criação do filho afetivo surge por circunstâncias alheias à imposição legal/natural que a paternidade impõe.

Trata-se do vínculo que decorre da relação socioafetiva constatada entre filhos e pais – ou entre o filho e apenas um deles –, tendo como fundamento o afeto, o sentimento existente entre eles: “melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vínculo biológico pelo afetivo”. (GAMA, 2003, pp 482-483)



A guarda de fato é uma realidade em nosso país. Quantas pessoas, movidas exclusivamente pelo sentimento mais nobre acolheram em seus lares uma criança sem se importarem com o aspecto legal? Será que essas pessoas terão que entregar suas crianças aos abrigos? Por que negar-lhes o direito de adotar, regularizando, assim, uma situação fática já consolidada pelo tempo? Creio que o juiz deverá, como verdadeiro intérprete da lei, perscrutar o melhor interesse da criança ou adolescente e adotar, em cada concreto que lhe for submetido, a decisão que for mais justa. O aspecto formal não deve nunca sobrepujar o aspecto material. Nessa linha de interpretação, a 3ª Turma do STJ decidiu, no dia 23.03.2010, devolver a guarda de uma criança aos pretendentes à adoção que não estavam inscritos no Cadastro Nacional de Adoção, sob o fundamento de que a observância do CNA não é absoluta, devendo prevalecer o melhor interesse do menor, no caso de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que não esteja cadastrado. A referida criança já convivia há oito meses com o casal pretendente à adoção, quando foi retirado do lar por ordem judicial e entregue a outro casal que já se encontrava inscrito previamente no CNA. O Relator do Recurso Especial, Ministro Massami Uyeda, reconheceu a existência de vínculo de afetividade entre a criança e o casal com que conviveu diariamente durante seus primeiros oito meses de vida, salientando, ao final, que os desembargadores não levaram em consideração o único e imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vínculo de afetividade da infante com o casal adotante (STJ, Coordenadoria de Editoria e Imprensa, 23.03.2010).

O insigne jurista civilista, Paulo Lobo , com sutileza e maestria, preleciona:

O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I) e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre os cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família. A evolução da família “expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afinidade” (este no aspecto de afetividade).

(...) O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, à frente, da pessoa humana nas relações familiares (...). O princípio da efetividade está implícito na Constituição.



Desta forma, entende-se que, em regra, devem ser observadas as exigências do pretendente à adoção de se cadastrar previamente no CNA, no sentido de evitar as denominada adoções intuito personae, os procedimentos criminosos ou de má-fe, bem como de preparar adequadamente os pretendentes para acolher de forma completa uma criança em seu lar. Todavia, o juiz, como verdadeiro guardião das promessas do constituinte e autêntico intérprete da lei, deve, em cada caso concreto, examinar as peculiaridades, as circunstâncias em derredor do caso que lhe é submetido, principalmente quando se tratar de guarda de fato de pessoas não vinculadas pelos laços da consanguinidade, mas que já estão vinculadas, em face do tempo e da convivência familiar, pelos laços da afetividade, construídos diariamente. Nesse caso, é preciso evitar que exigências formais prevaleçam em detrimento da afetividade e da dignidade da pessoa humana. O amor, o carinho, a solidariedade, o gesto, as primeiras palavras, as referências, os valores passados durante a convivência familiar não podem jamais ser desprezados e preteridos pelo Direito em favor de exigências formais e burocráticas de um cadastro. O ser humano, no âmbito da filosofia Kantiana, deve ser sempre um fim em si mesmo, o destinatário final da norma, como a dizer, atrás do cadastro sempre haverá um ser humano que precisa de uma família para se desenvolver física, moral e espiritualmente, e o juiz da infância deve ser o guardião desses direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

MARCOS BANDEIRA - Juiz da Vara da Infância e Juventude e Professor do Direito da Criança e Adolescente da UESC.









6 comentários:

  1. Maravilhoso texto. Estou totalmente inserida nesta situação, possuo a guarda provisória de uma criança que nasceu e no dia seguinte estava em meus braços. Não estou inscrita no Cadastro Nacional, mas tenho laços que são inquebráveis com um ser humano que depende de mim e que convive comigo e com meus familiáres há 11 meses. Entrei com processo de adoção, e confio em Deus iluminando a cabeça do magistrado. Belo texto, muito inspirado e totalmente atual, preocupado com os sentimentos e não com a letra fria da lei.

    ResponderExcluir
  2. Gostei da exposição, mas fica um questionamento. Quando um casal se inscreve no programa Familia Acolhedora com o único objetivo de "escolher" a criança a qual vai querer adotar, para depois inscrever-se no cadastro, colocando que só irá querer determinada criança, que se encontra acolhida, forçando assim uma situação de não obediência da fila de inscritos, com a alegação de vinculação afetiva, o que fazer?
    Se for assim, não há motivo para a existência do Cadastro para Adoção. Como ficam os casais que pacientemente esperam por seus "filhos" obedecendo a legislação em vigor? Como decidir? alegar vinculação afetiva com bebês de 00 a 1 ano pode ser parâmetro para decisão monocrática favorável ao casal não inscrito? O procedimento não pode ser caracterizado má-fé?

    ResponderExcluir
  3. Prezado leitor,



    O casal que se inscreve no programa de família acolhedora com o único objetivo de escolher a criança que vai querer adotar está burlando toda a normativa que rege a adoção , o cadastro e o programa de família abolhedora. Primeiro, por que o casal que estiver inscrito no programa de família acolhedora não deve adotar em regra, mas cuidar dessa criança durante determinado tempo, até que se defina a situação jurídica da criança, ou seja, ou ela retorna para a família de origem ou será disponibilizada para a adoção. Daí a necessidade indeclinável de capacitar muito bem as pessoas que participam do programa de família acolhedora. Como coloquei no artigo, a regra é que deve ser observado estritamente o cadastro, até para que se respeite o direito de todos que estão na fila, entretanto, há situações excepcionais, que o juiz deverá aferir a constituição de vínculos de afetividade entre os guardiões de fato e a criança, no sentido de buscar uma decisão que preserve os interesses superiores da criança.



    um grande abraço

    Marcos Bandeira

    ResponderExcluir
  4. Excelente artigo!
    Estou elaborando monografia p graduação em Direito, a qual defende o mesmo entendimento, intitulada: "A insuficiência do critério de prioridade da habilitação no CNA rente aos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade". Apesar de um tema de grande relevância, ainda é pouco explorado, merecendo uma maior analise por parte dos legisladores e dos operados do direito. Parabéns!

    ResponderExcluir
  5. Maravilhoso!!! Me ajudou muito na minha pesquisa para monografia. Obrigada!

    ResponderExcluir
  6. Querido Marcos Bandeira, por acaso encontrei seu blog no google e estou fascinada com seu texto, pois estou elaborando minha monografia com este extato tema, adorei suas palavras, e estas me ajudaram bastante em meu trabalho. Parabéns, não só pelo texto, mas pela linha de pensamento a qual eu concordo plenamente. Abraço! Luanda Fernandes Estrela/ João Pessoa-PB.

    ResponderExcluir