DO DIREITO PENAL DO MENOR Á DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL.
“ Aquellos que no pueden recordar su pasado están condenados a repertirlo” ( George Santayana)
INTRODUÇÃO
Essa frase cai como uma luva para todos aqueles que se aventuram a estudar e conhecer os direitos da infância e juventude. Creio que se torna importante conhecer a evolução histórica dos direitos da infância para que possamos compreender e até nos posicionarmos sobre algumas questões que nos são submetidas na atualidade. É importante ressaltar que a luta pelo reconhecimento e a efetivação dos direitos humanos, como é o caso dos direito da infância, não é algo que se conquistou num passe de mágica, mas que foi fruto de muitas batalhas permeadas de sofrimento, sangue e muito sacrifício ao longo do tempo.
Na verdade, quando o fenômeno da criminalidade juvenil no Brasil aumenta começa a aparecer como se fora uma descoberta de um tesouro procedimentos criativos e variáveis, como solução eficaz e legal para os graves problemas de violência que nos assola. O “ toque de recolher” ou “ toque de acolher”, como eufemisticamente também é denominado é um desses tesouros descobertos e remédio milagroso que começa a ser implantado em algumas comarcas brasileira. Esse procedimento também está sendo aplicado a alunos – crianças e adolescentes – que estão fora das salas de aulas, quando então são molestados em sua liberdade e obrigados a freqüentarem a escola. Ocorre, todavia, que esses procedimentos de viés manifestamente autoritário e típico de Estados autoritários está na contra-mão do Estado Democrático de Direito, pois trata suas crianças e adolescente como mero objetos de intervenção de Estado, desconsiderando a sua condição especial de sujeitos de Direitos e protagonista de sua própria história. Com efeito, vários direitos fundamentais albergados na Constituição Federal, Convenções internacionais de Direitos de Crianças e Adolescente e no próprio ECA estão sendo flagrantemente violados por esse procedimento espúrio.
Este modesto trabalho buscará mostrar a violação desses direitos, a sua normatividade, a doutrina da proteção integral, e toda a rede proteção dos direitos humanos, inclusive no plano internacional, para demonstrar a ilegalidade e inconstitucionalidade do toque de recolher no Brasil.
EVOLUÇÃO HISTÓRICA
No que toca especificamente a imputabilidade penal dos “menores”, podemos identificar três grandes correntes ou etapas na história: doutrina do direito penal do menor, doutrina da situação irregular e doutrina da proteção integral . Cada etapa com suas características próprias. O jurista Emílio Garcia Méndez denomina a doutrina do direito penal do menor, como “ la etapa del tratamiento penal indiferenciado. Diz o ilustre jurista:
“ Una primera etapa que puede denominarse de carácter penal indiferenciado, que se extiende desde el nacimento de los códigos penales de corte netamente retribucionista del siglo XIX, hasta 1919 . La etapa del tratamento penal indiferenciado se caracteriza por considerar a los menores de edad práticamente de la misma forma que a los adultos. Com la única excepción de los menores de siete años, que se consideraban, tal como em la vieja tradición del derecho romano, absolutamente incapaces e cuios actos eran equiparados a los de los animales, lá única diferenciacion para los menores de 7 a 18 años consistia generalmente em la disminnucion de la pena em um tercio em relacion com los adultos”.
Como se infere, essa corrente considerava o menor entre 7 a 18 anos somente sob o aspecto penal. O jurista e desembargador, Guaraci Vianna, um dos maiores especialista do assunto no Brasil, preleciona:
: “ A doutrina do Direito Penal do Menor: por esta corrente antiga e consagrada ainda em alguns ordenamentos de países, a criança e o adolescentes são vistos exclusivamente pela ótica do Direito Penal
Nesse diapasão, como ainda não havia nenhum estudo científico à época sobre as especificidades da infância e juventude, mormente no que toca á condição peculiar de pessoa em desenvolvimento , o Estado só se preocupava com o menor a partir dos sete anos de idade no momento em que este cometia algum delito, quando então deveria ser castigado, punido. A punição consistia na mesma pena imposta aos imputáveis, só que reduzida de um terço, entretanto, cumpria a pena no mesmo estabelecimento do adulto, com toda a promiscuidade daí decorrente. O menor abaixo dos sete anos de idade, era equiparado a um animal, sem vontade própria, portanto, era uma pessoa absolutamente incapaz nos moldes do direito civil romano. Na verdade, o menor a partir de sete anos de idade era um adulto em miniatura, pois ao praticar um fato delituoso sofria as mesmas conseqüências do adulto, sem que houvesse qualquer tutela especial, em face de sua condição de pessoa em desenvolvimento.
No Brasil Imperial e sob a vigência das ordenações filipinas, a política repressiva era fundada no temor e crueldade das penas. A imputabilidade penal era a partir dos sete anos de idade, quando o menor cumpria a mesma pena do imputável com redução de um terço. Vale ressaltar que entre 17 a 21 anos, o jovem podia sofrer pena de morte. A exceção era apenas com relação ao menor a partir de 14 anos de idade que viesse a cometer crime de falsificação de moeda, quando então poderia ser condenada a pena de morte. O Código Penal do Império Brasileiro manteve a imputabilidade penal a partir dos sete anos de idade, entretanto, com base no critério subjetivo do discernimento, ou seja, o menor entre 7 a 14 anos de idade que cometesse um delitos ficava a mercê do critério subjetivo do juiz, ou seja, o julgador é que daria a última palavra para decidir se ele possuía á época discernimento suficiente para a prática do fato delituoso. O primeiro Código Penal do Brasil República aumentou a imputabilidade penal para 9 anos de idade, com base no critério do discernimento, de sorte que entre 9 anos de idade até 14 anos, a imputabilidade penal era aferida pelo critério subjetivo do discernimento, e a partir dos 14 anos, a imputabilidade penal era objetiva, ou seja, os menores eram punidos da mesma forma que o adulto, inclusive cumpria a pena no mesmo estabelecimento, só que com a pena reduzida em um terço.
A gênese da imposição de castigos aos menores vem desde tempos remotos. A própria Bíblia em Deuterônimo – Cap. 21, versículos 18 a 21 -já estabelecia que o filho rebelde e incorrigível, que não obedecia aos pais poderia ser castigado até a morte. No Direito Romano, o pater familia possuía o direito de vida e morte sobre seus dependentes, principalmente sobre os menores, que era equiparado a res.
O início do século XX é caracterizado por algumas mudanças no cenário mundial. A ciência e a razão aos poucos vão tomando o lugar da fé . Começaram as convenções sociais e as pesquisas científicas, no sentido de compreender o fenômeno da deliquência juvenil e afastar o “menor” do sistema penal. As pesquisas realizadas, principalmente, na área da psicologia, antropologia e sociologia, começavam a desvendar que o menor não mais era um adulto em miniatura, mas uma pessoa com determinadas especidades e na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. É realizado em Paris, em 1911 O primeiro Congresso Internacional sobre os direitos de menores, todavia, no final do século XIX surge nos Estados Unidos um movimento voltado para a administração e especialização da Justiça de Menores , fundada na criação de grandes reformatórios para menores, como forma de acabar com a mistura de adultos e menores no mesmo ambiente carcerário. Estava lançada a semente de uma nova etapa na evolução histórica dos direitos infanto-juvenis, que Emílio Garcia Mendez chama de Carácter tutelar, e que nós denominamos de DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR. Essa influência dos grandes reformatórios nos Estados Unidos para tratar dos menores logo chegou a Europa. Em Paris é realizado o primeiro Congresso Internacional sobre Menores, quando então foi discutida a criação de juízes e Tribunais especializados para menores. No Brasil, em 1902 o Senador Lopes Trovão apresenta o primeiro projeto defendendo interesses de menores, sendo seguido por Alcindo Guanabara, que apresentou um projeto voltado para os menores em 1906. O mesmo Senador apresentou outro projeto em 1917 considerando inimputáveis os maiores de 12 e menores de 17 anos. Começava a ganhar espaço a idéia de que os menores deveriam receber uma proteção especial do Estado, aproximando a Justiça da Assistência Social .
A questão do menor abandonado ou enjeitado não pode deixar de ser considerada. A instituição Roda dos Expostos que nasceu na Europa medieval, perdurou no Brasil por mais de três séculos, passando pelo Brasil Colônia, Imperial e República. A Primeira roda de expostos foi aberta em Salvador em 1726 , a segunda no Rio de Janeiro em 1738 e a terceira e última na Santa Casa de Misericórdia do Recife, em 11.5.1789. A última roda de exposta a ser extinta foi a de Salvador, que ocorreu em 1959. O sistema de roda de exposto era uma espécie de roda cilíndrica, dividida ao meio, que era fixada no muro ou janela da instituição. A pessoa que, por qualquer motivo, não desejava permanecer com a criança, ao invés de abandona-la nas ruas ou bosques, utilizava a roda de expostos para não se expor e assegurar o seu anonimato. As instituições religiosas normalmente encaminhavam as crianças para as amas-de- leite, que permaneciam com elas por algum tempo, mediante o pagamento de um estipêndio. Nesse período as crianças abandonadas quando não era abrigadas pelas roda de expostos ou pelas Câmara Municipais, eram criadas por alguma família como se fosse filho, nos moldes da adoção à brasileira, ou mesmo sem registro nenhum. É importante salientar nenhuma ordenação do reino tratou da adoção, o que só veio a ocorrer com o advento do Código Civil em 1916. Algumas crianças acabavam sendo criadas por famílias pobres e algumas partiam para a rua e para a delinqüência. Essa situação chamou a atenção de Ataulpho de Paiva, que assim se manifestou sobre o fenômeno:
“ A simples repressão, que constitui a idéia fundamental dos códigos, sempre confundiu a causa do menor, deixando-o ao desamparo do Direito e da Justiça. A crise tremenda em que se vê a delinqüência juvenil assumiu proporções assustadoras, máxime em sua comparação com a criminalidade dos adultos. Aí está para atestar eloquentemente a imprestabilidade dos velhos moldes e dos processos anacônicos..;( PAIVA , p.101).
Nesse contexto fermentavam as idéias para a criação de Juízo e Tribunais de Menores com inspiração no modelo dos Estados Unidos.O primeiro Tribunal de Menores foi criado em Ilinois, Estados Unidos em 1899. A influência norte americana chegou a Europa e depois a América Latina. Na Inglaterra em 1905 foi criado o seu Tribunal ou Juizado Especial de Menores nos moldes do modelo norte americano. Depois foi criado o Tribunal de Menores da Alemanha em 1908, Portugal e Hungria em 1911, França em 1912, Argentina em 1921, Japão em 1922, e o Brasil em 1923, além da Espanha em 1924, México em 1927 e Chile em 1928. Essas instâncias, embora de forte cunho repressivo e sem as garantias mínimas do direito, representavam, sem dúvida , um grande avanço na época. A Promotora de Justiça e jurista, Martha Toledo, em sua excelente obra “ A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos” assim preleciona:
“ Essas instâncias judiciais especiais, verdadeiras instâncias judiciais de exceção eis que apartadas completamente das estruturas tradicionais de aplicação do Direito, é que acabaram por propiciar a criação e aplicação do chamado direito do menor, que sempre se caracterizou, no dizer de Mendez, por “ subordinar a tarefa de salvaguarda das crianças ( desassistidas socialmente) às exigências da defesa social”
Importante salientar que o primeiro Juizado de Menores no Brasil foi criado no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, por força do Decreto Federal de nº 16.273, de 20.12.1923. São Paulo criou o segundo em dezembro de 1924, pela Lei Estadual de nº 2.059.
O primeiro Congresso Internacional de Menores , realizado em Paris, no período de 29 de junho a 01 de julho de 1911, foi um evento internacional de grande importância na área menoril, pois os juristas que dele participaram concluíram que era necessário existir uma jurisdição especial para obter um máximo de eficácia na luta contra a delinqüência juvenil. Havia, em todo o mundo, uma preocupação em retirar os menores do cárceres destinados a adultos, estimulando assim, sem dúvida, a criação dos Juízos e Tribunais de menores em todo o mundo. Alguns Congressos internacionais começavam a discutir alguns assuntos relacionados à violência juvenil, como o Congresso de Antropologia criminal, realizado em Turin, realizado em 1906.
A situação de abandono de alguns menores, ou a sua situação de desvalido, começava a se relacionar com a questão da deliquência juvenil no Brasil, fazendo assim nascer uma política de institucionalização desse segmento vulnerável da sociedade . No Brasil, em 1900 foi instalada no Porto do Bonfim em Salvador, a primeira Escola Correcional da Bahia, destinada exclusivamente ao recolhimento de menores. No Rio de Janeiro surgiu em 1903 a colônia correcional de Dois Rios para menores infratores, e a Escola Quinze de Novembro, para a parte preventivo-correcional dos jovens entre 9 a 14 anos. Logo depois, surgiram outras instituições em São Paulo, Belo Horizonte e Belém do Pará. Em São Paulo, por ocasião da criação do Juízo de Menores, em dezembro de 1924, já havia referência da existência de um instituto correcional destinado a menores na capital e uma escola reformatória em Mogi-Mirim.
Com bastante perspicácia, a jurista Martha Toledo em sua obra já citada, percebe nesse contexto da violência juvenil e criação dos juízos de Tribunais de Menores, bem como dos reformatórios ou casas de custódia para os menores, a raiz ou a semente da doutrina da situação irregular, mostrando que a história da assistência social do Brasil começou inicialmente marcada pela caridade , depois passou pela filantropia, e agora, com a crescente violência juvenil, passava agora a ter a intervenção do Poder Público, através da política de institucionalização voltada, principalmente, para os menores carentes, desvalidos e delinqüentes. Vejamos a sua exposição:
“ Em síntese, com a constituição dos Juízos de menores e a cristalização do direito do menor criou-se um sistema sociopenal de controle de toda a infância socialmente desassistida, como meio de defesa social em face da criminalidade juvenil, que somente se revelou possível em razão da identificação jurídica e ideológica entre a infância carente e infância delinqüente.
Essa identificação jurídica sempre foi expressa na legislação brasileira inspirada nessa doutrina, que, posteriomente e em razão da terminologia emprega no Código de Menores de 1979 ( lei Federal nº 6.697/79), ficou conhecida como doutrina da situação irregular. É o que se depreende do cotejo entre as disposições do referido Código, do Decreto Estadual Paulista nº 3.828/25 e do Decreto Federal de nº 17.943-A/27
Desta forma, o Decreto Estadual nº 3.828, de 25.03.25, do Estado de São Paulo, voltado para disciplinar a conduta dos menores abandonados, pervertidos e delinqüentes, assim dispunha em seus art. 2º:
Art. 2º - Consideram-se em estado de abandono os da referida idade:
I – que não tenham habitação certa, nem meios de subsistência, por serem seus pais falecidos, desaparecidos ou desconhecidos, ou por não terem tutor ou pessoa sob cuja guarda vivam;
II – que se encontrem eventualmente naquelas condições, devido a negligência, enfermidade, ausência ou prisão dos pais, tutor ou pessoa que, por qualquer título, tenha a vigilância , direção ou educação dos referidos menores;
III – que tenham pai, mãe , tutor ou encarregado de sua guarda reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres relativamente a ditos menores;
IV – que vivam em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoa que se entregue à prática de atos contrários à moral e aos bons costumes;
V – que, devido à crueldade, exploração, perversidade dos pais, tutores ou pessoa sob cuja guarda ou em cuja companhia vivam, sejam:
a) vítimas de maus-tratos físicos habituais ou castigos imoderados;
b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis à saúde;
c) empregados em ocupações proibidas ou manifestamente contrárias à moral e aos bons costumes, ou que lhes ponham em risco a vida ou a saúde;
d) induzidos à gatunice, mendicidade ou libertinagem.
VI – que tenham pai, mãe, tutor ou pessoa encarregada de sua guarda condenada por sentença com trânsito em julgado:
a) há mais de dois anos de prisão por qualquer crime;
b) a qualquer pena como co-autor ou cúmplice de crime cometido por filho, pupilo ou menor sob sua guarda, ou por crime contra estes.
3º - Consideram-se pervertidos os menores vadios, mendigos ou libertinos.
§ 1º - São vadios os que , tendo deixado , sem causa legítima, o domicílio do pai, mãe, tutor, guarda, ou os lugares onde se achavam colocados por aquele a cuja autoridade estavam submetidos ou confiados, são encontrados habitualmente a vagar pelas ruas ou logradouros públicos, sem que tenham meio de vida regular, ou tirando seus recurso de ocupação imoral, proibida ou provadamente insuficiente.
§ 2º - São mendigos os que habitualmente pedem esmola, para si ou para outrem, ainda que este seja seus pai ou mãe, ou pedem donativos sob pretexto de venda ou oferecimento de objetos;
§ 3º - São libertinos os que habitualmente:
a) na via pública perseguem ou convidam companheiros ou transeuntes para a prática de atos imorais;
b) se entregam à prostituição em sua próprio domicílio, ou vivem em casas de prostituta; ou freqüentam casa de tolerância , para praticar atos imorais;
c) são encontrados em qualquer casa ou lugar, praticando atos imorais com outrem;
d) vivem da prostituição de outrem.
Art. 6º Consideram-se menores delinqüentes para os efeitos de lei nº 2.059 e deste regulamento, aqueles que , tendo mais de 14 anos e menos de 18 anos de idade, forem indiciados autores ou cúmplices de fato qualificado pela lei como crime ou contravenção. São excluídos dessa categoria os menores de 14 anos, os quais não serão submetidos a processo penal de espécie alguma. A respeito destes menores procederá a autoridade como se acha disposto no capítulo III.
Seguindo essa linha, o primeiro Código de Menores do Brasil, também conhecido como Código Melo Matos – Decreto Federal de nº 17.943-A, após estabelecer que as normas destinavam a disciplinar as condutas do menor de 18 anos de idade, abandonado ou delinqüente, discriminava o que se entendia por menores abandonados em seu art. 26, senão vejamos:
Art. 26. Consideram-se abandonados os menores de 18 anos:
I – que não tenham habitação certa, nem meios de subsistência, por serem seus pais falecidos, desaparecidos ou desconhecidos, ou por não terem tutor ou pessoas sob cuja guarda vivam;
II – que se encontrem habitualmente sem habitação certa, nem meios de , devido à indigência , enfermidade, ausência ou prisão dos pais, tutor ou pessoa encarregada de sua guarda;
III – que tenham pai, mãe, tutor ou encarregado de sua guarda reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres para com o filho, ou pupilo ou protegido;
IV – que vivam em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoa que se entregue à prática de atos contrários à moral e aos bons costumes;
V – que se encontrem em estado habitual de vadiagem , mendicidade ou libertinagem;
VI – que freqüentem lugares de jogo ou de moralidade duvidosa, ou andem em companhia de gente viciosa ou de má vida;
VII – que, devido à crueldade, abuso de autoridade, negligência ou exploração dos pais, tutores ou encarregados de sua guarda, sejam:
a) vítimas de maus-tratos físicos habituais ou castigos imoderados;
b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis à saúde;
c) empregados em ocupações proibidas ou manifestamente contrárias à moral e aos bons costumes, ou que lhes ponha em risco a vida ou a saúde;
d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem.
VIII – que tenham pai, mãe, tutor ou pessoa encarregada de sua guarda condenada por sentença com trânsito em julgado:
a) a mais de dois anos de prisão por qualquer crime;
b) a qualquer pena como co-autor ou cúmplice, encobridor ou receptador de crime cometido por filho, pupilo ou menor sob sua guarda, ou por crime contra estes.
Na verdade, o código Melo Mato condensa várias normas esparsas sobre menor existentes em nosso ordenamento jurídico, procurando abarcar à época a assistência aos menores desvalidos, abandonados e delinqüentes. Com efeito, já se notava que a resposta do Estado era a mesma tanto para os menores carentes – abandonados, desvalidos e pervertidos – como para os menores de 18 anos delinqüentes. A resposta era sempre o recolhimento desses menores nos grandes reformatórios existentes à época por determinação do juiz de menores. O jurista e desembargador Guaracy Vianna , com percuciência, preleciona:
É importante compreender o signficado da aliança firmada entre Justiça e Assistência – uma associação, cujos reflexos são claramente detectáveis no processo de desenvolvido nas duas primeiras décadas do século XX e que deu origem à ação tutelar do Estado, legitimada pela criação de uma instância regulatória da infância – o Juízo de Menores( ambos na década de 1920). Veremos que Justiça e assitência buscam na aliança a auto-sustentação pela complementação de suas ações. Ambas inserem-se na lógica do modelo filantrópico, que visava o saneamento moral da sociedade a incidir sobre o pobre.
Essa é linha de identificação da doutrina da situação irregular que chegou a seu ápice em nosso país em 1979, com a edição do segundo código de menor – Lei nº.6.697/79- , que pecava, entretanto, por criminalizar a infância pobre e desvalida.
JUIZ DE MENORES
Nesse contexto, surge a figura do juiz de menores, como um sujeito, cujos poderes quase não têm limites, pois é detentor de uma carga de subjetividade e discricionariedade, que muitas vezes ultrapassa para a seara do arbítrio, pois sem o devido processo legal e sem qualquer decisão fundamentada poderia privar um menor de sua liberdade, destituir ou suspender os pais do poder familiar sem maiores exigências probatórias, podendo ainda legislar através de portarias sobre toda a matéria atinente ao menor, além de estabelecer o rito processula. Nesse sentido, Martha Toledo explicita:
“ E agindo com os poderes do bom pai de família, evidentemente o juiz de menores não está sujeito ao princípio da inércia da jurisdição e muito menos ao da imparcialidade, nem se deve submeter ao cumprimento do formalismo garantista das normas processuais.
O jurista Souto Maior citado por Marta Toledo( TOLEDO: 46) comentando os poderes do juiz de menores no âmbito de doutrina da situação irregular descrita no Código de Menores de 1979, preleciona:
(...) pelo texto da lei, o Juiz de Menores exsurge como um ser onipotente, já que se lhe permite, entre outras coisas, decidir levando às últimas conseqüências o princípio da livre convicção( art. 5º), legislar sobre a matéria de menores mediante portarias e provimentos( art. 8º), decretar a perda ou a suspensão do pátrio poder e a destituição da tutela em situações das mais variadas, inclusive de gravidade discutível( art. 45), afastar dirigentes e ordenar o fechamento provisório ou definitivo de estabelecimentos particulares ( art. 49), atuar como censor dos espetáculos teatrais, cinematográficos, circenses e radiofônicos e de televisão ( art. 52) e criar rito processual a revelia de qualquer texto legal( art. 87)
O jurista e desembargador Guaracy Vianna, com maestria, explicita o superpoder que era depositado no Juiz de Menores da doutrina da situação irregular:
Sob a ótica da legislação revogada ( lei 6.697/79), antigo código de menores, a função do juiz de menores poderia ser tida tranquilamente como anômala, posto que não se enquadrava nas atividades normais do Judiciário( funções jurisdicionais) e nem tampouco nas funções não jurisdicionais da magistratura( atividades secundárias ou atos do governo interno). Na verdade, por uma tradição histórico-social, talvez confiava-se ao juiz o papel de pai-social ou investiam-lhe de um “ pátria potestas” quase tão absoluto quanto o exercido pelo pater famílias a que alude o Direito Romano.
Destarte, a medida mais eficiente para a satisfação da sociedade era a prisão cautelar. Todos os problemas( pobreza, infração penal, abandono, maus-tratos etc) eram “resolvidos” com a “internação”, indistintamente. Todos os casos eram nivelados e a proposta de solução era única, até mesmo porque o Judiciário não tinha outra alternativa.
O Brasil respirava os primeiros anos da república e havia uma grande preocupação em educar o povo brasileiro, principalmente, em buscar as causas para o aumento da delinqüência juvenil. Esse discurso, segundo Guaraci Vianna, partia dos higienista em saúde pública, como Oswaldo Cruz, Miguel Couto e Belizário Pena, para quem a infância era vista como “ semente do futuro”.. Na verdade, podemos destacar outro evento importante nesse início de século XX, que foi a Convenção de Genebra de 1924, que a despeito de definir criança como a pessoa com até 18 anos de idade e de reconhecer alguns direitos fundamentais, como o direito à vida e a liberdade, não passou de uma carta de boas intenções, pois não obrigava os Estados signatários a tornar obrigatório os seus preceitos, mas apenas dirigia obrigações aos pais de todas as nações, não tendo, portanto, efetividade os seus postulados
Ademar de Barros em 1938 – Decreto nº 9.744/38 – criou o Serviço Social de Menores Abandonados e Delinqüentes, que tinha, dentre outras funções, recolher temporariamente os menores sujeitos a investigação e o processo, bem como receber e distribuir pelos estabelecimentos do serviço os menores julgados e exercer vigilância sobre eles. No Rio de Janeiro em 1941, através do decreto 3.799/41 , foi criado o SAM – Serviço de Assistência ao Menor, cuja proposta era inovadora à época, pois objetivava sistematizar e orientar os serviços de assistência a menores desvalidos e delinqüentes, internados em estabelecimentos oficiais e particulares..
Podemos considerar que a Declaração Universal do direitos Humanos de 1948, logo após o flagelo de muitas famílias órfãos durante a segunda guerra mundial, constitui um dos principais documentos internacionais na defesa dos direitos humanos, principalmente, com relação à criança, que passou a ser reconhecida em várias nações, contribuindo para o avanço nessa área. A referida declaração, depois de afirmar nos seus primeiros artigos que “ toda a pessoa tem direito à vida, à liberdade e a segurança pessoal, e que ninguém será submetido a tortura, ou a tratamento cruel ou degradante”, enfatiza, dedica um artigo especificamente à infância. Estabelece o art. XXV, o seguinte, in verbis:
A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
A declaração universal dos direitos humanos, por força do respectivo momento histórico, que pregava a cooperação internacional de todas as nações unidas com vista ao reconhecimento dos direitos humanos, constituiu, sem dúvida, um marco importante para que a criança já pudesse ser vista como um segmento que merecia uma proteção especial do Estado. Todavia, pode-se informar que foi a Declaração Dos Direitos da Criança de 1959, que, de forma específica tratou dos direitos das criança e que constitui a primeira grande referência na proteção dos direitos infanto-juvenil, pois reconhecendo expressamente a vulnerabilidade da criança pobre, veda à privação de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária, e já começa a lançar as primeiras sementes do princípio da excepcionalidade e da brevidade da institucionalização, ao proclamar que “ a prisão de uma criança será efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso , e durante o mais breve período de tempo que for apropriado”, prevendo também a separação de toda criança privada de liberdade do adulto. O art. Da Declaração de 1959 estabelecia o seguinte:
Toda criança privada de sua liberdade tem direito a rápido acesso à assistência jurídica e a qualquer outra assistência adequada, bem como direito a impugnar a legalidade da privação de sua liberdade perante um tribunal , ou outras autoridades competentes, independente e imparcial e a uma rápida decisão a respeito de tal ação.
Na década de sessenta passamos a experimentar no Brasil a um longo período de ditadura e a violação sistemática dos direitos humanos, principalmente, com relação aos direitos de crianças pobres, desvalidas e delinquentes, que passou a ser considerada como problema de segurança nacional. O jurista Guaraci Vianna explicita:
Iniciado o período militar , em 1964, o Estado passou a entender que o menor de rua, o menor em conflito com a lei e o menor abandonado colocavam em jogo a ordem social e a Doutrina da Segurança Nacional.
Influenciado pela filosofia do Estado do Bem-Estar-Social com relativo sucesso na Europa e Estados Unidos, e sob a inspiração de Mário Altenfender, foi criada a FUNABEM , no dia 01/12/1964, com idéias inovadoras, voltadas para o bem-estar do menor, que deveria ser visto , segundo Guaraci Vianna, na obra já citada “ não como despesa, mas como investimento mais salutar que qualquer nação poderia fazer para seu futuro”. A FUNABEM – Fundação Nacional do Bem Estar do Menor, como órgão centralizador da política do bem estar do menor tinha a função precípua de coordenar e fiscalizar as entidades que abrigavam menores, além, dentre outras , de cumprir os compromissos constante dos documentos internacionais a que o Brasil tinha aderido, além de priorizar os programas voltados para a integração que visassem à integração familiar e comunitária do menor, através de incentivo à adoção e assistência à família. Nos Estados federados foram criadas as FEBENS, que aproveitaram, da mesma estrutura das casas de correções de menores. Nesse contexto de Estado autoritário, as instituições criadas pela FUNABEM e FEBENS acolhiam os menores abandonados, órfãos, desvalidos e autores de atos infracionais, com até 18 anos de idade, reproduzindo mutatis mutand o mesmo procedimento dispensados aos imputáveis nos cárceres brasileiros, ou seja, tratava-os como animal, torturando-os e tratando-os cruelmente. A internação possuía conteúdo apenas punitivo. O sistema era centralizador e fundado precipuamente no terror do internamento, que era a tônica da filosofia do bem-estar do menor, quando se tratava de menor em situação irregular. Nesse sentido, merece transcrição o texto extraído da obra de Roberto Diniz SAUT , quando explicita:
Na perspectiva da situação irregular, o juiz centralizava sua decisão com fundamento no direito do menor, em medidas terapêuticas de sua vontade, determinando qual o tratamento, com base em diagnósticos, e, tendo o menor como objeto de intervenção do Estado, em desrespeito à condição do adolescente e da criança como sujeito ativo de Direitos. Em tese, o juiz, faça-se a justiça do razoável, transformava-se na verticalidade e na centralidade, até porque não obtinha do Estado, da sociedade, da família e da comunidade outra alternativa, senão , a de determinar a internação à revelia da relação pedagógica, mas pela via da relação verticalizada e punitiva.
Os menores desassistidos, desvalidos e delinqüentes passaram a ser identificados como “ pivetes”, “trombadinhas”, sendo alvo de preocupação do Estado. Havia uma pressão muito grande da sociedade para que o Estado adotasse medidas que protegesse as pessoas “de bem” , os regulares, desses menores em situação irregular, que ameaçavam a tranqüilidade do meio social. Eles – os menores em situação irregular – constituíam uma patologia social e deveria ser excluída da sociedade. Com efeito, a medida mais pertinente e em consonância com os padrões e a ideologia do referido momento histórico que vivíamos, era priva-los de sua liberdade e lança-los nos cárceres fétidos e desumanos do Brasil o mais cedo possível, para que nos livrássemos da sua nefasta presença, e assim eles pudesse permanecesse lá o maior tempo possível, atrás das grades. Nesse sentido, em plena ditadura militar no Brasil, foi aprovada pelo Congresso Nacional a lei que estabelecia a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, todavia, ainda durante a “vacatio legis” a referida lei foi revogada, não chegando nem a entrar em vigor, o que denota que à época já havia mentes luminares que entendia que a punição pela punição não seria capaz de resolver o problema do menor.
Chegamos ao final da década de 70, ainda sob os auspícios da ditadura do governo militar brasileiro, quando alcançamos o apogeu, o ápice da doutrina da situação irregular no Brasil com a entrada em vigor do nosso segundo Código de Menores – Lei nº 6.697/79 - , trazendo em suas linhas gerais o caráter tutelar, punitivo, centralizador do todo poderoso “ juiz de menores”, bem como a institucionalização como resposta por excelência para os menores considerados em situação irregular. O art. 2º da Lei nº 6.697/79 estabelecia o que era considerado situação irregular.
Art. 2º - Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência , saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente , em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;
II - vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;
III – em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se , de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;
IV – privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;
V - com desvio de conduta , em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;
VI – autor de infração penal
A denominada situação irregular contemplava os menores carentes e delinqüentes, de sorte que todos os menores que estivessem nessa situação eram privados de sua liberdade, sem qualquer garantia constitucional , por determinação do juiz de menores e encaminhados para as febens, onde permaneciam institucionalizados indefinidamente. O simples filho rebelde, até mesmo o filho pobre ou desvalidos e aquele que cometia ato infracional eram colocados na mesma vala e tratados como meros objetos de intervenção do poder estatal. Nesse sentido, com inegável percuciência, a Promotora de Justiça e jurista Martha Toledo assim se posiciona sobre a linha ideológica dessa doutrina:
Em síntese , com a constituição dos juízos de menores e a cristalização do direito do menor criou-se um sistema sociopenal de controle de toda a infância socialmente desassistida, como meio de defesa social em face da criminalidade juvenil, que somente se revelou possível em razão da identificação jurídica e ideológica entre infância carente e infância delinqüente
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Permissa vênia da insistência e da certa crueza de minhas palavras, note-se a perversidade da ardilosa construção intelectual: o carente pode ser privado de liberdade, sob a presunção de que ele é o futuro delinqüente; aquele que delinqüiu efetivamente pode ser encarcerado sem observância das garantias individuais que continuaram a ser conferidas aos adultos, sob a falaciosa premissa de que ele está sendo protegido pelo Estado, um vez que a medida jurídica imposta pela prática do crime( internação em reformatório) é essencialmente a mesma aplicada ao carente e ao abandonado.
Desta forma, no âmbito de um Estado totalitário havia uma legislação específica para os menores considerados em situação irregular e outra destinada às crianças e jovens em situação regular, ou seja, filhos de pessoas de “ bem” ou da classe social mais favorecida da sociedade. A expressão “situação irregular”, segundo Alýrio Cavalieri,...foi proferida pela primeira vez num Congresso realizado na Venezuela
O juiz de menores continuava a utilizar dos superpoderes, de forma que podia legislar praticamente sobre qualquer assunto que se referisse a menor, através de portarias. O internamento era, de fato, a única medida utilizada pelo juiz de menores toda vez que um menor estivesse enquadrado numa situação considerada irregular. As febens passaram a ficar com superpopulação, reproduzindo mutatis mutandi o que ocorria nos cárceres brasileiros destinados aos imputáveis. Os menores eram submetidos a tratamento desumano e cruel, muitos deles era torturados pelos monitores. Não havia a implementação na prática de qualquer projeto pedagógico de ressocialização. O menor ficava trancafiado anos a fio nos reformatórios das febens, quebrando-se assim os seus vínculos familiares e comunitários.
Essa situação passou a chamar a atenção de vários segmentos da sociedade, como o movimento meninos e meninas de rua, bem como de profissionais de diversas áreas, como juízes, promotores, assistentes sociais, pedagogos, psicólogos, que começaram a se mobilizar criando uma frente parlamentar suprapartidária e sensibilizando a população brasileira para a necessidade da mudança na política infanto-juvenil.
Começava a soprar no Brasil os primeiros ventos da democracia. No Brasil em 1985, o governo ditatorial deixa o poder. Tancredo Neves é eleito pelo Colégio Eleitoral Presidente do Brasil, todavia, morreu antes de tomar posse. Em seu lugar e com a liderança de Ulisses Guimarães, José Sarney assume a Presidência da República e dá início ao processo de redemocratização do país.
A comunidade internacional continua a se movimentar para tentar implementar os direitos humanos voltados para as crianças, assim consideradas as pessoas com até 18 anos de idade. Com efeito, é realizada em Beijing em 1985 a Convenção internacional promovida pela ONU voltada para os direitos das crianças, também conhecida como “ as regras mínimas de Beijing” , cujo conteúdo proclamavas uma série de garantias às crianças acusadas da prática de algum ato infracional, como direito de comunicar imediatamente aos seus pais ou seus pais sobre á sua prisão; já previa o devido processo legal e já previa uma série de medidas socioeducativas para o juiz aplicar, como prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, indenizações, multas, advertência, remissão, semiliberdade e internamento, está última já permeada pelos princípios da brevidade e excepcionalidade. A convenção denominada “ regras mínimas de Beijng’ já previa a incidência do princípio da presunção da inocência com relação a menores acusados da prática de algum ato infracional, todavia, já admitia a prisão preventiva, que em nosso caso corresponde ao internamento provisório. Caminhava-se assim, para transformar o menor – mero objeto de direito – em verdadeiro sujeitos de direito com os mesmos direitos e garantias processuais dos adultos, determinando ainda que viessem a cumprir a pena – medida socioeducativa – em lugar diverso do adulto, e que respeitasse a condição de pessoa em desenvolvimento e o princípio da proporcionalidade na aplicação da medida. Vejamos alguns princípios norteadores das “regras mínimas de Beijing”:
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17. Princípios norteadores da decisão judicial o das medidas
17.1 A decisão da autoridade competente pautar-se-á pelos seguintes princípios:
a) a resposta à infração será sempre proporcional não só às circunstâncias e à gravidade da infração, mas também às circunstâncias e às necessidades do jovem, assim como às necessidades da sociedade;
b) as restrições à liberdade pessoal do jovem serão impostas somente após estudo cuidadoso e se reduzirão ao mínimo possível;
c) não será imposta a privação de liberdade pessoal a não ser que o jovem tenha praticado ato grave, envolvendo violência contra outra pessoa ou por reincidência no cometimento de outras infrações sérias, e a menos que não haja outra medida apropriada;
d) o bem-estar do jovem será o fator preponderante no exame dos casos.
17.2 A pena capital não será imposta por qualquer crime cometido por jovens.
17.3 Os jovens não serão submetidos a penas corporais.
17.4 A autoridade competente poderá suspender o processo em qualquer tempo.
18. Pluralidade das medidas aplicáveis
18.1 Uma ampla variedade de medidas deve estar à disposição da autoridade competente, permitindo a flexibilidade e evitando ao máximo a institucionalização.
Tais medidas, que podem algumas vezes ser aplicadas simultaneamente, incluem:
a) determinações de assistência, orientação e supervisão;
b) liberdade assistida;
c) prestação de serviços à comunidade;
d) multas, indenizações e restituições;
e) determinação de tratamento institucional ou outras formas de tratamento;
f)determinação de participar em sessões de grupo e atividades similares;
g) determinação de colocação em lar substituto, centro de convivência ou outros estabelecimentos educativos;
h) outras determinações pertinentes.
18.2 Nenhum jovem será excluído, total ou parcialmente, da supervisão paterna, a não ser que as circunstâncias do caso o tornem necessário.
19. Caráter excepcional da institucionalização
19.1 A internação de um jovem em uma instituição será sempre uma medida de último recurso e pelo mais breve período possível.
20. Prevenção de demoras desnecessárias
Nesse contexto de universalização de normas de direitos humanos voltados para crianças, pessoas consideradas até 18 anos incompletos, é realizada pela ONU a Convenção internacional para a prevenção da delinqüência juvenil, no período de 28 de fevereiro a 1º de março de 1988, também conhecida como “ as diretrizes de Riad”, quando foi enfatizada a condição de sujeitos de direitos das crianças e de titulares de direitos fundamentais, como o direito à educação, á saúde, à liberdade, à dignidade, direito à convivência familiar e comunitária, bem como o direito de não receber tratamento mais rigoroso do que aquele dispensado aos imputáveis, quando se tratar de acusação da prática de algum ato infracional.
Logo depois, No dia 20 de novembro de 1989 a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas aprovou a convenção internacional sobre os direitos da criança, fazendo com que tivesse força coercitiva para todos os países signatários. O Congresso Nacional aprovou a convenção internacional através do Decreto Legislativo de nº 28, de 14 de setembro de 1990, ratificada pelo governo brasileiro em 24 de setembro de 1990 e entrou em vigor no dia 23 de outubro de 1990. Vários dispositivos dessa convenção foram compilados e inseridos no Estatuto da Criança e do Adolescente, que ainda estava nascendo.
O Brasil se mobiliza de forma inédita e consegue levar ao Congresso Nacional mais de 200.000 assinaturas de eleitores de todo o país e 1.200.000 assinaturas de crianças e adolescentes, fazendo com que a Assembléia Constituinte inserisse na nova carta a doutrina da proteção integral, precisamente no art. 227, rompendo assim, definitivamente, com a doutrina da situação irregular e fazendo exsurgir o novo direito da infância e juventude, com seus próprios princípios e diretrizes, não focado apenas no aspecto criminal, mas nos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, fundada na sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, como o direito à vida, à educação, à saúde, ao lazer, a profissionalização, á liberdade, à convivência familiar e comunitária, colocando-o livre de qualquer tratamento discriminatório ou cruel. Nascia assim um novo direito, o novo paradigma dos Direitos da infância e juventude não mais centralizado na figura autoritária do “ todo poderoso” juiz de menores, mas na rede horizontalizada de vários atores sociais, numa articulação e co-responsabilidade da família, da sociedade e do poder público nas suas diversas esferas de poder . O juiz da infância e juventude passa a ser o garantidor das promessas do constituinte, mormente no que toca a preservação dos interesses superiores das crianças e adolescentes, agora não mais considerados mero objetos de direito, mas verdadeiros sujeitos de direitos fundamentais e protagonistas de suas próprias histórias.
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Desta forma, tendo como núcleo a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes, nasce o ECA como um novo paradigma, conformando num mesmo diploma os denominados direitos civis e os direitos sociais do segmento infanto-juvenil, e não se limitando apenas com a normatização de uma categoria ou classe – os menores - , como vinha ocorrendo com os diplomas anteriores, criando assim, o princípio da responsabilidade solidária do Estado, da sociedade e da família. A responsabilidade pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente não estão mais centralizados na figura do juiz, que passa a ser mais um dos diversos atores, embora importantíssimo, diria até, imprescindível para a efetiva proteção dos direitos assegurados no ECA e Na Constituição Federal. Segundo o escólio de Martha Toledo, a implementação de políticas públicas e a tutela jurisdicional consubstanciam em dois mecanismos jurídicos para que se alcance a efetiva proteção desses direitos. Preleciona a ilustre jurista :
“ Na esfera da tutela jurisdicional, essa participação, embora não expressa e completamente pormenorizada, dá-se na medida em que a Constituição não apenas criou poderosos instrumentos de defesa judicial dos direitos fundamentais ..., como possibilitou a legitimação da sociedade civil organizada para a provocação da tutela jurisdicional em defesa dos direitos de crianças e adolescentes( Na Constituição Federal, artigo 129, § 1º , concretizado pela Lei de Ação Civil Pública e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente)
Já na esfera das políticas públicas a participação popular veio expressamente destacada pela remissão do parágrafo 7º do art. 227 ao art. 204 da CF: a) instituiu-se, como comando constitucional, a participação popular na formulação e no controle das ações, ou seja, no controle da execução das políticas públicas relacionadas com a proteção de crianças e adolescentes( art. 204, II, da CF)b) chamou-se as comunidades organizadas em entidades de classe, ou organizações não-governamentais se assim se preferir, a executar uma parcela das políticas públicas de atenção à infância e à adolescência( art. 204, I, in fine, da CF).
Essa participação da comunidade organizada na defesa dos direitos de crianças e adolescentes reforça a noção de proteção integral deles e, penso, deriva também da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, pela faceta de maior vulnerabilidade que ela traz em si, mas, sobretudo, pela faceta de força potencial de transformação da realidade para redução das desigualdades sociais, ligadas ao princípio fundante da dignidade humana e aos objetivos fundamentais da República referidos no artigo 3º da Constituição Federal”.
No âmbito do ECA, portanto, não há mais margem para atuação do “juiz de menores” e seus superporderes, Como v.g., o de legislar, através de portaria sobre todo o tema afeto à criança e adolescente, como era permitido na legislação anterior. Atualmente, o Juiz da Infância e Juventude, em face do princípio da legalidade, só pode baixar portarias nos casos expressamente admitidos pelo art. 149 do ECA, de forma motivada, caso a caso, vedadas as determinações de caráter genérico. Com a devida vênia daqueles que defendem o “toque de Recolher”, ou suavizando melhor.,“ toque de acolher”, ou a nomenclatura que quiser emprestar, entendo que fere o direito fundamental da liberdade de ir e vir de crianças e adolescentes assegurados pelo art. 227 da CF, bem como o art. 149 do ECA, que não confere ao juiz da infância tal poder. Acionar os antigos “comissários de menores” para “recolher” crianças e adolescentes nas ruas porque existe uma portaria baixada por um juiz determinando tal medida é retroceder ao código de menores e resgatarmos a figura temível do juiz de menores da doutrina ultrapassada da situação irregular. Creio que a medida – toque de recolher -, que tem grande apoio popular em face da crescente violência juvenil, só poderá ser viabilizada através de alteração legislativa, pois o art. 15 do ECA assegura à criança e o adolescente o “direito à liberdade, ao respeito e á dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”, e o art. 16, I do ECA, reforçando e explicitando ainda mais essa garantias constitucional, estabelece que “ o direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais”.
No âmbito do ECA, criança passou a ser a pessoa de até doze anos incompletos, e adolescente aquela pessoa de doze até 18 anos incompletos, todos, não mais como mero objetos de direitos, mas como sujeitos de Direitos e titulares dos direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, educação, á liberdade, ao lazer, ao esporte, à alimentação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à profissionalização e a convivência familiar e comunitária. A implementação desses direitos fundamentais depende do trabalho articulado e sincronizado de toda uma rede horizontalizada de atores em exercício nas diversas áreas. O legislador instituiu um sistema de garantias de direitos, estabelecendo o devido processo legal para que um adolescente tenha o seu direito restringido ou á sua liberdade privada, assegurando em seu arts. 106 e 110, que nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, ou seja, observado o princípio da legalidade ou o devido processo legal. A Secretaria Especial de Direitos Humanos e o CONANDA instituiu através de portaria o SINASE – sistema Nacional de Atendimento socioeducativo - , que é conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa. O SINASE se apóia nas diretrizes do ECA e nas convenções internacionais sobre direitos humanos na área dos direitos da criança e do adolescente. Trata-se de um sistema integrado envolvendo os diversos níveis de governo e a co-responsabilidade da família, da sociedade e do Estado. O SINASE prioriza a municipalização do atendimento socioeducativo relativo aos adolescentes em conflito com a lei, ressaltando o caráter pedagógico da medida socioeducativa, principalmente às medidas socieoducativas em meio aberto – que preserva o direito à convivência familiar e comunitária – deixando o internamento como a ultima ratio.Também tem uma função especifica de estabelecer parâmetros e condições de funcionamento das unidades de atendimento socioeducativo, seja meio aberto, semiliberdade ou internação, explicitando toda a operacionalização da medida socioeducativa e o plano individual de atendimento.
O legislador criou o Conselho Tutelar, como órgão autônomo, não-jurisdicional, com atribuição de aplicar medidas protetivas às crianças que cometerem algum ato infracional ou que estejam em situação de risco, sofrendo algum tipo de violência. Criou um sistema de resposta diferenciada para os adolescente que cometerem atos infracionais, estabelecendo as medidas socioeducativas – advertência, reparação de danos, liberdade assistida, prestação de serviços comunitários, semiliberdade e internação - , todas revestidas de um caráter retributivo, mas preponderantemente pedagógico, levando em consideração a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, consolidando ainda o caráter de brevidade e excepcionalidade das medias socioeducativas de semiliberdade e internamento, cuja competência para aplica-las será do juiz da infância e juventude, depois de observado o devido processo legal. O Ministério Público passou a ser um ator importantíssimo, único legitimado a ajuizar a ação socioeducativa e acompanhar todos os processos, seja cível ou administrativo, onde haja interesses de crianças e adolescentes. É um dos legitimados para ajuizar ação civil pública relacionados a direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos de crianças e adolescentes.
O ECA passa a ser um microssistema, onde é previsto vários procedimentos – cível, administrativo e criminal - , que visa fundamentadamente tutelar todos os direitos e interesses de crianças e adolescentes, independentemente de serem pessoas “carentes’ , bem criadas, filha de famílias milionárias, infratoras, enfim, a norma é direcionada para seres humanos na peculiar condição de pessoas em desenvolvimento. O ECA é um sistema normativo – com princípios e regra - de garantias de direitos de crianças e adolescentes, independentemente de sua situação ou classe social.é um ordenamento normativo direcionado à toda infância e juventude.
O ECA criou um órgão responsável pela formulação de políticas públicas relativas à infância e Juventude, que é o conselho dos Direitos da Criança e Adolescente – CONANDA - , na esfera da União, o Conselho Estadual nos estados membros, e na órbita municipal , o CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, que tem como função precípua deliberar e formular políticas públicas relativa à infância e juventude no município, sendo também o órgão onde todas as organizações governamentais e não-governamentais que trabalhem com crianças e adolescentes devem inscrever-se seus programas de atendimento socioeducativo.
O ECA estabeleceu as infrações administrativas cominando pena de multa a pessoas físicas ou jurídicas, prevendo, inclusive, em alguns casos a interdição do estabelecimento, para a hipótese de prática reiteradas de condutas que venham violar normas de proteção à criança ou adolescente. Também estabeleceu várias figuras típicas para determinadas condutas graves praticadas contra criança e adolescente, cominando penas de multa e de privação de liberdade. O ECA disciplina o acolhimento institucional e familiar de crianças abandonadas ou vitimas de maus-tratos, objetivando a reintegração familiar ou a colocação em família substituta, seja através da guarda, tutela ou adoção.
Na verdade, como já enfatizado, o Estatuto da Criança e do Adolescente inaugura um novo paradigma, fundado no principio da proteção integral e da dignidade da pessoa humana, reconhecendo a qualidade de sujeitos de direitos de crianças e adolescente, na sua peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento físico, intelectual, emocional, moral e espiritual, e que deve merecer um tratamento diferenciado do Estado, principalmente, na preservação dos seus direitos fundamentais, como o direito à vida, Saúde, educação, alimentação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, convivência familiar e comunitária, e, acima de tudo, liberdade, que devem ser tutelados como prioridade absoluta. Ademais, de conformidade com as diretrizes de Riad, o adolescene não pode e não deve receber tratamento mais rigoroso do que aquele dispensado ao adulto imputável. Nesse diapasão, o juiz da infância e juventude deve ser o guardião dessas garantias e direitos inseridos em nosso ordenamento jurídico pelas convenções internacionais, pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
AUTOR: MARCOS BANDEIRA
Muito bom esta trajetória histórica . Mas gostaria de ler também alguma coisa relacionada a vara da infância e juventude na bahia.
ResponderExcluirA Vara da Infância e Juventude de Itabuna é uma das varas de referência na Bahia, onde no mesmo local, funciona o Conselho tutelar, equipe técnica, Defensoria Pública da Infancia, Ministério Público da Infancia, agentes de proteção, o cartório e o gabinete do juiz. São realizadas normalmente mutirões com adolescentes em conflito com a lei - cerca de 50 processos por dias -,no âmbito da justiça consensualizada. São realizadas práticas restaurativas e realizadas audiencias concentradas no orfanato SOS Canto da Criança. Existem vários projetos em parceira com a comunidade. É uma vara que tem uma grande movimentação de processos. Saõ relizadas em média 45 adoções por ano. Na última audiencia concentrada que foi realizada na semana passada cerca de 10 crianças foram desligadas do orfanatos e inseridas em famílias substituta. Maiores informações, pode obter na parte de notícias deste blog.
ResponderExcluirMarcos Bandeira
Obrigado Dr.Marcos!
ResponderExcluirAmei, professor estou precisando de um momento para falar com o senhor sou estudante aqui de Ilhéus amiga de um grande amigio seu Djalma e sempre ouvia falara de ti. Hoje eu estou começando a fazer meu projeto de monografia que engloba em parte este tema poderia me dá umas orientações?? Abraços kádja Barroso
ResponderExcluirEstou à sua disposição, Kadja. Pode me procurar na Vara da Infancia de Itabuna, de preferencia, dia de segunda-feira à tarde.
Excluiratt
Marcos Bandeira
Parabéns Marcos, adorei o tema e toda a explicação sobre a evolução histórica da proteção do menor. Com certeza, vou citá-lo em meu trabalho acadêmico. Eu gostaria muito de saber as referências bibliográficas utilizadas, para que também possa utilizá-las.
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