quarta-feira, 30 de novembro de 2011

SENTENÇA



O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, por intermédio de seu ilustre representante à época, titular da Vara da Infância e Juventude desta Comarca, ajuizou AÇÃO CIVIL PÚBLICA contra o ESTADO DA BAHIA, pessoa jurídica de direito público interno, com fulcro nos arts. 129, II e III, e 226 da Constituição Federal de 1988, c/c os arts. 94, 121 e 148, IV, da Lei nº 8.069/90, e art. 461 do Código de Processo Civil, estribada nos seguintes fundamentos fáticos e jurídicos a seguir expostos:

I - LEGITIMIDADE

O Órgão Ministerial realça a sua legitimidade para propor a presente actio, valendo-se de repertórios jurisprudenciais e dos arts. 127 e 129, III, da CF, e dos arts. 208, VIII, e § 1º, da Lei nº 8.069/90, asseverando que é atribuição do Parquet ajuizar ação civil pública para tutelar interesses individuais e coletivos de adolescentes em conflito com a lei, sempre que se constatar lesão ou ameaça de lesão a interesses individuais e coletivos afetos a crianças e adolescentes, em razão de omissão estatal. Acresce, ademais, que o Ministério Público é o legítimo protetor do direito assegurado a adolescentes acusados da prática de ato infracional de receberem tratamento especializado e adequado às suas necessidades pedagógicas, nos moldes previstos da Lei nº 8.069/90 e normativa internacional, e de forma completamente diferenciada em relação àquele destinado aos imputáveis;

II - COMPETÊNCIA

O titular da ação enfatiza a competência absoluta da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Itabuna para processar e conhecer do presente feito, nos termos do disposto nos  arts. 5º, 148, IV, e 208, VIII, e § 1º, e 209, da Lei nº 8.069/90, pois se trata de ação civil que versa sobre direito coletivo, difuso e indisponível, portanto, direitos transinviduais afetos a interesses de crianças e adolescentes, e que estão sendo violados em face da omissão do Estado, nos termos do art. 98, I, do ECA;

III - DOS FATOS

Aduz o Ministério Público em sua exordial que o Estado da Bahia, apesar de possuir uma grande extensão territorial, dispõe apenas de três unidades destinadas ao cumprimento de medida socioeducativa privativa de liberdade (internação), todas elas localizadas na região nordeste do Estado, precisamente na Comarca de Salvador, onde existem duas unidades, e uma outra em Feira de Santana. A distância entre as unidades não supera a distância de 100 Km, o que é insignificante em face da grande extensão territorial do Estado da Bahia. Argumenta a autora da ação que essa situação tem ocasionado enormes danos aos adolescentes residentes no interior do Estado, em localidades distantes da região metropolitana, pois a longa distância impossibilita o contato do adolescente com seus familiares, quebrando-se os vínculos familiares, e, por via de consequência,  violando gravemente os direitos assegurados nos incisos V e VI do art. 94 do ECA, bem como no art. 227, caput e inc. V da CF, asseverando, assim, a insustentabilidade do sistema para execução de medida socioeducativa de internação nos moldes em que se encontra atualmente, pois além da violação grave dos direitos do adolescentes assegurados em lei, como v.g. o disposto nos incisos VI e VII do art. 124 do ECA, o modelo atual em funcionamento no Estado da Bahia compromete seriamente a reeducação do adolescente em conflito com a lei.
Assevera, ainda, para reforçar o seu posicionamento, que a maioria esmagadora das famílias dos adolescentes que são encaminhados para cumprir medidas socioeducativa de internação em Salvador é de origem pobre e não dispõe de recursos para se deslocar até unidade de internação para visitar os adolescentes que lá se encontram abrigados cumprindo a medida socioeducativa privativa de liberdade, o que contribui ainda mais para dificultar o restabelecimento dos vínculos familiares e a própria ressocialização do jovem infrator.
Como se não bastasse, a falta de unidade de internação provisória em Itabuna ocasiona problemas sérios na instrução processual, pois de conformidade com o disposto no § 2º do art. 185 do ECA, o prazo máximo que é permitido ao adolescente permanecer em repartição policial, em seção isolada dos adultos, aguardando a sua remoção para uma unidade de internação é de cinco (5) dias, prazo por demais exíguo para a tomada de qualquer medida, o que tem ensejado frequentemente o relaxamento da apreensão de adolescente em flagrante por excesso de prazo, valendo enfatizar que os adolescentes desta Comarca cumprem medida de internação provisória em Salvador, distante mais de 400 Km.
Aduz, ainda, que a longa distância da Comarca de Itabuna para as unidades de internação acarreta mais uma violação aos direitos constitucionalmente assegurados aos adolescentes acusados da prática de algum ato infracional, que é o de participar da audiência de instrução, o que é inviabilizado pela dificuldade de transporte, ferindo, assim, o princípio da ampla defesa, nos termos do art. 5º, LV, da CF, e 111, II, do ECA. Assevera, ainda, que os custos gerados pelos constantes deslocamentos de adolescentes da Comarca de Itabuna para as unidades de Internação são exorbitantes, incluindo combustível, lanches para os adolescente e diárias para os agentes que fazem o transporte, os quais são obrigados a realizar uma grande operação e a percorrer quase 900 Km (inda e retorno à Comarca).
Salienta, finalmente, que o Relatório Final do Programa Medida Justa do Conselho Nacional de Justiça realizado no Estado da Bahia e datado de 08/11/2010 foi concludente em constatar “o desarranjo na estruturação e distribuição das unidades destinadas ao cumprimento de medidas socioeducativas com privação de liberdade, o que torna deficiente o sistema para execução da internação”, recomendando a construção de unidades de internação no interior do Estado em regiões previamente escolhidas, como forma de superar a gigantesca distância entre o local onde são internados os adolescentes em conflito com a lei e o local de suas residências, propiciando assim as condições para a preservação dos vínculos familiares do adolescente que cumpre medida de internação e sua consequente ressocialização.
O autor em sua exordial relaciona vários dispositivos legais – CF e ECA – violados em face da omissão ilícita do Estado da Bahia, destacando, sobretudo, o princípio reitor da CF, a dignidade da pessoa humana, estabelecido no inc. III do art. 1º da Carta Magna, bem como a doutrina da proteção integral insculpida no art. 227 da CF e art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, em face da inexistência nesta Comarca de unidade de internação para adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais.
Argumenta, em síntese, que os denominados direitos de segunda geração – direitos econômicos, sociais e culturais -, que se encontram inseridos no Título II, art. 6º da CF de 1988 não mais devem ser interpretados como meras normas programáticas, numa perspectiva positivista. Destarte, no âmbito da judicialização das políticas públicas,  cita as lições de Joaquim J. Gomes Canotilho para sustentar a normatividade das normas constitucionais, no sentido de obrigar o Poder Executivo do Estado da Bahia no campo das políticas públicas de criar e manter unidade de internação na Comarca de Itabuna para adolescentes infratores, como forma de cumprir o princípio da prioridade absoluta assegurado aos direitos infanto-juvenis no art. 227 da CF, não havendo que se falar em invasão no poder discricionário da Administração, pois a escolha pelo não fazer consiste em omissão ilícita do Estado da Bahia.
Requereu, por conseguinte, a antecipação da tutela, no sentido de que a demandada, no prazo de trinta (30) dias providenciasse local adequado aos adolescentes internados nesta Comarca, com fixação de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais), em caso de descumprimento do preceito, tudo isso, após a audiência do representante judicial da demandada. Requereu, ainda, a citação do Estado da Bahia, na pessoa de seu representante legal, para integrar o polo passivo desta relação processual e oferecer resposta à demanda no prazo legal. Finalmente, requereu a procedência do pedido com a condenação do Estado da Bahia a instalar uma unidade de internação para cumprimento de medida socioeducativa de internação, bem como internação provisória, para adolescentes autores de atos infracionais graves e que necessitem serem submetidos por um período de suas vidas a estas medidas de meio fechado, visando sua reeducação, observando-se o quanto disposto  nos arts. 94 e 124 do ECA, sob pena de imposição de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais), em caso de descumprimento da decisão judicial.
Atribuiu-se à causa o valor de R$ 1.000,00, todavia, requereu a dispensa do adiantamento de custas, emolumentos, honorários, nos termos do art. 18 da lei nº 7.437/85.
A exordial veio acompanhada dos documentos de fls. 26/40. Acostaram aos autos os documentos de fls. 42/43, ofícios encaminhados por autoridades da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia, informando que não mais realizariam o transporte de adolescente infratores de Itabuna para unidades socioeducativas.
Este Juízo determinou a intimação da demandada para se manifestar sobre o pedido de tutela antecipada, ensejando que assim o fizesse, conforme petitório de fls.49, oportunidade na qual se manifestou pela denegação da liminar. O Ministério Público tomando conhecimento da manifestação da demandada fez juntar aos autos a petição de fls. 64/65 para argumentar que a vedação prevista no § 2º do art. 7º não incide sobre a hipótese vertente, pugnando, destarte, pela concessão da tutela antecipada. A demandada ainda fez juntar aos autos os documentos de fls.68/ 138. Este Juízo mediante decisão fundamentada às fls.139/140 indeferiu o pedido de tutela antecipada, determinando, ainda, a citação da requerida. A demandada fez juntar aos autos também o plano plurianual às fls. 146/147.
Após ingentes dificuldades que culminaram com a procrastinação do presente feito, finalmente foi citada a demandada, através do seu procurador geral (fls. 264-verso), ensejando assim que oferecesse contestação à pretensão deduzida em Juízo pelo Ministério Público às fls. 312/329.
A demandada, com efeito, em sede de preliminar suscita a  ilegitimidade ad causam passiva,  argumentando que, nos termos das Leis nº 3.509/76 e 6.074/91 cabe a FUNDAC – Fundação da Criança e do Adolescente – a execução da política pública de atendimento à criança e ao adolescente envolvido em ato infracional, sendo, portanto, a demandada parte ilegítima para figurar no polo passivo desta relação processual. O ilustre procurador suscita também a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, sob o fundamento de violação ao disposto no art. 2º da CF, que consagra o princípio da separação e harmonia entre os poderes, bem como aos arts. 165 e 167, I, que tratam das normas orçamentárias, asseverando que “a procedência da ação representaria grave interferência na política de segurança pública do Estado, impondo restrições à gestão e execução da política pública executada pela FUNDAC”. Acresce, ademais, que não cabe ao Poder Judiciário adentrar no juízo de conveniência e oportunidade, no sentido de decidir como gerenciar recursos alocados no orçamento legislativo para execução da política de atenção à criança e ao adolescente.
Todavia, o ilustre Procurador em sua peça contestatória admite que já existe uma previsão de construção de um unidade de internação para adolescentes na Comarca de Itabuna, cujo valor previsto de R$ 2.049.000,00 (dois milhões e quarenta e nove mil reais) é insuficiente para a realização da obra que está programada para 2015, enfatizando que não se pode exigir que o Estado sacrifique outros setores como saúde e educação para priorizar o cumprimento de medida socioeducativas, não podendo, portanto, o Poder Executivo ser substituído neste mister pelo Poder Judiciário, ilustrando o seu posicionamento com vários repertórios jurisprudenciais.
No mérito, o ilustre Procurador em sua peça contestatória argumenta que a capacidade do Poder Público de prover todos os anseios e necessidades da população é limitada, e que o administrador busca cumprir os seus deveres legais e morais sempre privilegiando o interesse público, salientando a inexistência de meios físicos para atender a pretensão do Parquet. Faz ligeira menção à construção pretoriana da corte alemã da reserva do financeiramente possível, para afirmar que as decisões judiciais devem observar o critério da razoabilidade, principalmente quando as limitações de ordem econômica podem comprometer a implementação dos direitos sociais. Valendo do ensinamento do grande jurista Canotilho, assevera que a plena realização dos direitos sociais, econômicos e culturais deve ser examinada segundo os parâmetros da reserva do possível.
Aduz que já se encontra em andamento a construção de duas unidades de internação para atendimento de adolescente em situação de internação definitiva e internação provisória nos Municípios de Feira de Santana e Camaçari, de conformidade com o SINASE e o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo da Bahia, negando assim a pecha de omissão do Estado na execução das medidas socioeducativas de internação atribuída pelo Ministério Público, acrescentando que tais obras estão sendo realizadas com o apoio financeiro do Governo Federal. Aduz que não há omissão do Estado e que não há qualquer justificativa para priorizar o Município de Itabuna em detrimento de outros para os quais já foram direcionadas ações administrativas e verbas, nem tampouco sacrificar recursos que atualmente estão destinados à esfera da saúde, educação, transporte e outras.
Finalmente argumenta o ilustre Procurador que não se pode impor ao Estado a realização de qualquer obra ou a assunção de qualquer despesa sem contrapartida de receita, ou melhor, sem previsão na lei orçamentária, nos termos previstos no art. 167, I, da CF, salientando que a presente ação civil pública não é meio hábil para compelir a Administração Pública a realizar obras ou modificar a gestão de seus órgãos.
A demandada, após sustentar a inexistência dos requisitos para a concessão da tutela antecipada, defende a tese da existência “in casu” do denominado “periculum in mora inverso”, reforçando ainda mais a posição da denegação da tutela antecipada pleiteada pelo autor da ação.
Requer, por conseguinte, a extinção do processo em efeito de julgamento de mérito, ou se assim não entender este Juízo, que seja julgada improcedente a presente ação. A demandada fez acostar aos autos os documentos de fls.330/387 (Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo 2011/2015).
A FUNDAC tomou conhecimento do feito e atravessou petição nos autos na forma de contestação (fls. 390/424), juntando aos autos e os documentos de fls. 425/460, adotando a mesma linha de defesa da demandada, pugnando, destarte, pela denegação da tutela antecipada e pela improcedência do pedido deduzido em Juízo, todavia, é parte manifestamente ilegítima ad causam, pois se trata de mero ente executor da política de atendimento socioeducativo no Estado da Bahia, razão pela qual, desde já, determino o desentranhamento da petição de fls. 390/424, permanecendo nos autos, no entanto, os documentos de fls. 425/460, em face de constituir importante substrato para a instrução probatária. Poder-se-ia até admitir a intervenção da FUNDAC como mero assistente da parte demandada, todavia, não foi nessa condição que se habilitou nos autos.
 O ilustre Parquet instado a se manifestar sobre a contestação da demandada e a petição juntada aos autos pela FUNDAC sustenta a revelia da demandada, pois somente ofereceu contestação após o transcurso de 125 dias de sua cientificação pessoal, sendo absolutamente intempestiva a peça oferecida pela defesa.  Impugna fundamentadamente as preliminares levantadas pela demandada, e no mérito discorre longamente sobre a reserva do possível, alegada na peça contestatória, asseverando que essa justificativa cede diante da flagrante violação de direito fundamental, principalmente, quando a Administração Pública não garante o mínimo existencial. Tece considerações sobre a situação caótica a que são submetidos os adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional em Itabuna, e a total inércia do Estado, que não obstante tenha expandido as unidades prisionais na Bahia para custodiar os presos imputáveis, inclusive contemplando Itabuna, não dispensa o mesmo tratamento com relação aos direitos dos adolescente em conflito com a lei, chegando ao ponto de o Estado Desativar a SEMI – Seção do Menor Infrator -, para instalar uma Delegacia Especializada de Homicídios em Itabuna, quando se sabe que grande percentual de homicídios na cidade é praticado contra ou por adolescentes. Ressalta que o Estado da Bahia desprezou o princípio constitucional da prioridade absoluta conferida aos direitos fundamentais de criança e adolescentes, salientando que no ano de 2011, o Estado da Bahia gastou 122,3 milhões com propaganda e publicidade, e que bastaria a demandada contingenciar apenas cerca de 10% (dez por cento) do que gastou em 2011 com propaganda para obter os recursos necessários à instalação da unidade de internamento em Itabuna.
No que toca a contestação apresentada pela FUNDAC aduz que a mesma não é parte no processo, devendo, portanto, sua defesa ser desprezada, pois muito embora seja o órgão responsável pela execução de política socioeducativa em nosso Estado, não é dotado de competência decisória e capacidade orçamentária e financeira para atender ao pleito ministerial. Todavia, pugna para que os documentos apresentados pelo referido ente permaneçam nos autos.
Pugna, destarte, pelo julgamento antecipado da lide, reforçando a sua posição inicial já conhecida. Requerendo ainda, caso este Juízo entenda pela necessidade de instrução, que seja reconsiderada a decisão que indeferiu a antecipação da tutela, sugerindo a fixação do prazo de 180 (cento e oitenta) dias para a inauguração da unidade em Itabuna. Foram acostados aos autos os documentos de fls. 483/592.
Acostou-se aos autos os documentos de fls. 600/604 com reportagens noticiando o índice à vulnerabilidade juvenil à violência em Itabuna, abrindo-se oportunidade às partes a fim de que se manifestassem acerca dos mesmos em razão do princípio do contraditório.
Vieram-me os autos conclusos.

É O RELATÓRIO.
DA FUNDAMENTAÇÃO E DECISÃO.

A questão deduzida em Juízo cinge-se a matéria unicamente de direito, cujas provas documentais carreadas para os autos são suficientes para o deslinde da lide, não havendo necessidade de dilação probatória e nem de produção de qualquer outra prova para tal mister, razão pela qual, nos termos do disposto no art. 330, I, do CPC, passarei a conhecer diretamente do pedido deduzido em Juízo, antes, porém, impõe-se examinar as preliminares e questões prévias suscitadas nos autos.

I - DA INTEMPESTIVIDADE DA PEÇA CONTESTATÓRIA – DECRETAÇÃO DE REVELIA DA DEMANDADA:

O ilustre Parquet em sua réplica à contestação sustenta que o prazo para a Fazenda Pública contestar é de 60 dias, nos termos dos arts. 188 c/c o art. 297 do CPC, salientando que a demandada foi citada em 14/06/2012 e somente apresentou contestação em 17/10/2012, extrapolando, assim, o prazo legal. Com a devia venia, não assiste razão ao ilustre representante do Ministério Público, pois o prazo “in casu” só começou a fluir a partir do dia 11/09/2012, nos termos do disposto no art. 241, I, do CPC, considerando que a demandada foi devidamente citada através de carta precatória. A rigor, mesmo que se tratasse de demandada revel, não se aplicaria no presente caso os efeitos do art. 319, porquanto se trata de direitos indisponíveis, a teor do que dispõe o art. 320,II, do CPC.

II - DA PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE AD CAUSAM PASSIVA:

Aduz a demandada que o Estado da Bahia é parte ilegítima para figurar no polo passivo desta relação processual, pois de conformidade com os termos das Leis nº 3.509/76 e 6.074/91, a FUNDAC é o ente público que tem por finalidade executar, no âmbito estadual, a política de atendimento à criança e ao adolescente envolvido em ato infracional, salientando que em caso de ser provida a demanda caberia ao referido ente a execução da obra pretendida pelo Ministério Público. Infere-se à evidência que a presente preliminar suscitada não resiste ao mais tênue exame, pois a ação foi proposta precisamente contra o ente – Estado da Bahia -, pessoa jurídica de direito público interno que tem poderes e atribuições para praticar o ato – obrigação de fazer – ordenado pelo Poder Judiciário, caso a ação seja julgada procedente.
Consoante grassa na doutrina pátria as condições da ação – legitimidade de parte, interesse processual e possibilidade jurídica do pedido – são requisitos exigidos por lei para que se possa exigir um provimento jurisdicional de mérito. No caso específico da legitimidade ad causam passiva consiste ela na pertinência subjetiva que deve existir entre os sujeitos da relação jurídica de material e os polos ativos e passivos da relação processual. Ora, no caso em comento, a pretensão de direito material deduzida em Juízo, caso seja julgada procedente, só poderá ser cumprida pelo Estado da Bahia, com todas as suas prerrogativas de pessoa jurídica de direito público, mercê de sua autonomia orçamentária e financeira, pois a FUNDAC é um mero ente executor da política pública de atendimento a adolescente em conflito com a lei, sem autonomia e atribuições suficientes para cumprir o “decisum”. Nesse sentido, o professor e jurista José Orlando Rocha de Carvalho em sua excelente obra “ Teoria dos Pressupostos e dos Requisitos Processuais[1] explicita:

            “Em tese, pois, somente aquela pessoa que está vinculada à relação de Direito Material e que seja,  supostamente,  o titular  daquele direito subjetivo que está postulando em Juízo, é que está legitimada à propositura da demanda e, em situação inversa, aquele que figure na sujeição passiva da relação material será, também, o que deva sofrer a ação dele. Tem-se aí, por conseguinte, a definição da legitimação ativa e passiva para a causa”

            Como se infere, o Estado da Bahia, no presente caso, é parte legítima para se sujeitar as consequência de  uma decisão judicial a ser proferida na seara da judicialização das políticas públicas, caso o pedido seja julgado procedente, pois ele é o ordenador da execução das políticas públicas e responsável pela concretização dos direitos sociais afetos as competências individuais de cada órgão do Estado, razão pela qual, afasto a preliminar de ilegitimidade ad causam passiva suscitada pela demandada.

III - DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO:

Também não merecer melhor sorte a presente preliminar suscitada pela parte demandada, pois não existe no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma vedação, seja expressa ou implícita, sobre “res in judicium deducta”, mesmo porque como argumentou o ilustre Parquet em sua promoção de fls. 466, “assim toda e qualquer causa, desde que envolva lesão ou ameaça de direito, pode e deve ser julgada e processada pelo Poder Judiciário, independentemente de quem esteja no pólo passivo” , ilação que extrai do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional insculpida no art. 5º, XXXV, da CF de 1988, pelo qual é conferido ao Poder Judiciário, em face de omissão do Poder Executivo, o poder-dever de compelir a Administração Pública a efetivar ações afirmativas no campo do direitos sociais, precisamente na linha dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, como forma de concretizar direitos fundamentais e implementar políticas públicas assegurados em lei e na Constituição Federal, sem qualquer violação ao princípio democrático das separação dos poderes. Na verdade, essa espécie de ação já vem se multiplicando no País e já mereceu a apreciação do STF por diversas vezes, conforme se verifica pelo aresto colacionados  aos autos pelo Ministério Público (fls. 467), senão vejamos:

“Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Legitimidade do Ministério Público. Ação civil pública. Implementação de Políticas Públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Precedentes. Esta Corte já firmou a orientação de que o Ministério Público detém legitimidade para requerer , em Juízo, a implementação de políticas públicas por parte do Poder Executivo, de molde a assegurar a concretização de direitos difusos, coleitivos e individuais homogêneos garantidos pela Constituição Federal, como é o caso do acesso à saúde. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração  Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure  violação do princípio de separação de poderes”( AI 809018 – AGR relator: Ministro Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 25/09/2012, processo eletrônico DJE 199 divulg 09/10/2012, publicado 10/10/2012).

            Valendo-me, mais uma vez, da lição do professor e jurista José Orlando de Carvalho, vê-se que não há qualquer impedimento para que a pretensão de direito material deduzida em Juízo seja acolhida pelo Poder Judiciário. Diz o ilustre jurista na obra já citada[2]:

            “Possibilidade jurídica, portanto, diz respeito e pedido que não seja vedado explícita ou implicitamente pelo Direito.
            O Direito , ressalte-se, não se contém apenas na letra da lei, pois representa uma dimensão mais abrangente e, por isso, a possibilidade jurídica adquire o contorno de ser , sempre, a regra, a possibilidade. Logo, a não previsão expressa de um direito subjetivo em lei não inibe a possibilidade jurídica de se pleiteá-lo. A impossibilidade jurídica manifesta-se,sim, no inverso, ou seja, a na previsão de que determinada situação jurídica não pode ser obtida seja por determinação expressa, seja por decorrência lógica do sistema que o inadmite”

            Desta forma, e pelas razões ora invocadas, afasto também a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido sustentada pela demandada em sua peça contestatória.

IV - DA ILEGITIMIDADE AD CAUSAM PASSIVA da FUNDAC:

            Verifica-se também que a FUNDAC é parte manifestamente ilegítima ad causam para figurar no polo passivo desta relação processual, pois se trata de mero ente executor da política de atendimento socioeducativo no Estado da Bahia, sem qualquer autonomia financeira e orçamentária para atender ao pleito deduzido em Juízo, como bem afirmou o Ministério Público, razão pela qual determino o desentranhamento da petição de fls. 390/424, permanecendo nos autos, no entanto, os documentos de fls 425/460, em face de constituir importante substrato para a instrução probatória. Poder-se-ia até admitir a intervenção da FUNDAC  como mero assistente da parte demandada, todavia, não foi nessa condição que se habilitou nos autos, pelo que determino o seu afastamento desta relação processual.

            V - DO MERITUM CAUSAE:

            Ultrapassadas as preliminares suscitadas nos autos, passo a conhecer diretamente do pedido deduzido em Juízo.
Trata-se de uma Ação Civil Pública deflagrada pelo Ministério Público Estadual contra o Estado da Bahia, no sentido de condená-lo a obrigação de fazer uma unidade de internação definitiva e provisória destinada a custodiar adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internamento.
            Antes de adentrar nas questões de judicialização de políticas públicas, da reserva do possível, do mínimo existencial, da análise pelo Judiciário da discricionariedade da administração pública e dos princípios pertinentes no presente caso que serão analisados adiante, torna-se curial responder a uma indagação feita pelo ilustre procurador do Estado em sua contestação, quando, após asseverar que a questão dos menores infratores de Itabuna e região afigura-se um terrível erro de perspectiva, questiona “como um provimento judicial para obrigar o Estado da Bahia a construir uma unidade de internamento para menores infratores em Itabuna, quando, por exemplo, em Vitória da Conquista, Juazeiro, Barreiras ou outros municípios do Estado subsiste o mesmo problema?" A pergunta, de forma mais simples,  pode ser formulada da seguinte forma: "Por que a Comarca de Itabuna se credencia como legítima para receber uma unidade de internação para adolescentes em conflito com a lei?" A resposta pode ser inicialmente obtida pela leitura do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo 2011/2015 do Estado da Bahia, precisamente às fls. 343, que a aponta a Comarca de Itabuna como a cidade de maior vulnerabilidade para jovens com idades de 12 a 29 anos de idade. Vejamos parte do texto de fls. 343 dos autos:

            “Em pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro da Segurança Pública e o Ministério da Justiça (2009), o índice de vulnerabilidade juvenil e a violência (IVJV) é considerado muito alto, acima de 0,5%. Das dez situações mais críticas figura em 1º lugar o município de Itabuna, que tem mais de 100 mil habitantes, onde os adolescentes e jovens com idade de 12 a 29 anos estão mais vulneráveis à violência”

            Nesse diapasão, por se tratar de ser uma cidade violenta e de alta vulnerabilidade para crianças, adolescentes e jovens, é que Itabuna, depois de Salvador, é a Comarca que mais encaminha adolescente para cumprir medida socioeducativa de internação em Salvador, conforme se pode constatar pela leitura do Plano de Atendimento Socioeducativo do Estado da Bahia 2011/2015 às fls. 351 dos autos e pela certidão de fl. 604 que noticia a quantidade de decisões aplicando medidas de internação provisória e definitiva nos anos de 2010, 2011 e 2012. Como se não bastassem esses dados estatísticos iniciais torna-se imperioso frisar que a violência na Comarca de Itabuna é contínua e crescente ao longo desses quatros anos, muito embora 2010 tenha sido certamente (não dispomos de dados oficiais) o ano mais violento com mais de 160 jovens assassinados, dos quais 44 respondiam a processos na Vara da Infância e Juventude desta Comarca, conforme certidão de fls. 604. Em 2011, reportagem da Revista  VEJA do mês de abril, aponta Itabuna como o 2º município mais violento do País, apresentando uma média de 111,8 homicídios por cada 100 mil habitantes, só perdendo o primeiro posto para Marabá no Pará. Nesse mesmo ano, 11 adolescentes que respondiam a processo na Vara da Infância e Juventude de Itabuna morreram assassinados, conforme se constata pela certidão anexada aos autos. Para se ter uma idéia da gravidade da situação, Rio de Janeiro apresentou um índice de 34%, e a média nacional não chegou a 30%. Recente pesquisa realizada em 2012 recoloca o município de Itabuna em primeiro lugar no Brasil, como a cidade mais violenta para jovens de 12 a 18 anos, apresentando um percentual de 10,59, quando a média baiana é de 7,86. Diante desses números gigantescos, que dimensionam a gravidade da situação de violência em Itabuna creio que está mais do que justificável a necessidade inadiável de se instalar na Comarca de Itabuna uma unidade de internação definitiva e provisória para adolescentes em conflito com a Lei.
Ressalte-se que a Comarca de Itabuna é atualmente entrância final, ou seja, possui a mesma categoria da Comarca de Salvador e juntamente com Salvador, Feira de Santana, Vitória da Conquista e Ilhéus, é uma das poucas Comarcas da Bahia, onde existe Vara Especializada da Infância e Juventude. Trata-se de uma cidade polo da região sul da Bahia, com mais de 220 mil habitantes, cuja unidade de internação, caso instalada, vai servir a mais de 20 municípios, incluindo Ilhéus, Canavieiras, Camacan, Pau Brasil, Itajuípe, Buerarema, Coaraci, Itacaré, Uruçuca, Ubaitaba, Aurelino Leal, Una, dentre outros, atingindo uma população de mais de um milhão e quinhentas mil pessoas. Se pelos dados estatísticos da violência, e pela posição geográfica o projeto de implantação da unidade de internamento em Itabuna já se justifica, o critério econômico e da racionalidade também reforça a tese, pois Itabuna e todos os municípios da região sul da Bahia – que mais encaminham adolescentes para cumprir medida de internação em Salvador – deixarão de fazê-lo, economizando as despesas de deslocamento, como diárias, combustível, lanches para os adolescentes, inclusive evitando o desvio de função dos agentes da polícia civil que são obrigados a transportar os adolescentes infratores para a capital do Estado e Feira de Santana. Ressalte-se que o problema da superlotação das unidades de internamento de Salvador seria resolvido, pois deixaria de receber todo esse contingente de adolescentes infratores da região sul do Estado, racionalizando assim o sistema de internação na Bahia.
Indaga-se:  diante desse quadro como não falar de inércia e omissão do Estado da Bahia na política pública de atendimento ao adolescente infrator na Comarca de Itabuna? Esse desprezo e essa indiferença do Estado da Bahia para com o município de Itabuna não estariam violando direitos fundamentais assegurados aos adolescentes infratores pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente? O Estado da Bahia na escolha de sua política pública estaria observando a doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade absoluta assegurados aos adolescentes nos arts. 227 da CF e 4ª do ECA? Sem dúvida alguma, o Estado da Bahia foi omisso e vem violando ao longo do tempo direitos fundamentais garantidos por lei e pela CF aos adolescentes em conflito com a lei, especialmente, aquele contra quem é aplicada a medida socioeducativa de internação provisória e definitiva. Reza o art. 227 da CF, o seguinte “ in verbis”:

            “ É dever da família, da sociedade e do Estado , assegurar  à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
           
            Dessa forma, tendo como núcleo a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes, nasce a doutrina da Proteção Integral insculpida na CF e consagrada no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA - como um novo paradigma, conformando num mesmo diploma os denominados direitos civis e os direitos sociais do segmento infanto-juvenil – crianças, pessoas de 0 a 12 anos incompletos, e adolescentes, pessoas de 12 a 18 anos incompletos, e não se limitando apenas com a normatização de uma categoria ou classe – os menores - , como vinha ocorrendo com o diploma anterior, no âmbito da doutrina da situação irregular disciplinada pela Lei nº. 8.069/90, criando, assim, o princípio da responsabilidade solidária do Estado, da sociedade e da família. A responsabilidade pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente não está mais centralizada na figura do juiz, que passa a ser mais um dos diversos atores no sistema de garantias de Direito, embora importantíssimo, diria-se até imprescindível para a efetiva proteção dos direitos assegurados no ECA e na Constituição Federal. Segundo o escólio de Martha Toledo, a implementação de políticas públicas e a tutela jurisdicional consubstanciam em dois mecanismos jurídicos para que se alcance a efetiva proteção desses direitos. Preleciona a ilustre jurista :

"Na esfera da tutela jurisdicional, essa participação, embora não expressa e completamente pormenorizada, dá-se na medida em que a Constituição não apenas criou poderosos instrumentos de defesa judicial dos direitos fundamentais [...], como possibilitou a legitimação da sociedade civil organizada para a provocação da tutela jurisdicional em defesa dos direitos de crianças e adolescentes" (Na Constituição Federal, artigo 129, § 1º, concretizado pela Lei de Ação Civil Pública e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente).

No caso em comento, a situação do adolescente em conflito com a lei na Comarca de Itabuna, conforme relatado nos autos pelo Ministério Público é extremamente grave, pois diante do quadro de extrema violência incidente sobre o segmento infanto-juvenil, que lidera o ranking de cidade mais violenta do País para adolescentes de 12 a 18 anos de idade,  ainda não mereceu qualquer investimento por parte do Estado da Bahia, que se mostrou ao longo do tempo, inerte, omisso e indiferente. As unidades de semiliberdade e internação, consoante o disposto no art. 4º, III, da Lei nº 12.594/2012, é de responsabilidade do Estado, todavia até a presente data, e não obstante a gravidade verificada pelos dados da violência, não existe em Itabuna nenhuma unidade, seja de semiliberade, seja de internação. Como se não bastasse, e apesar da violência crescente e assustadora da delinquência juvenil em Itabuna nos últimos quatro anos, o Estado da Bahia, através da Secretaria de Segurança Pública, indiferentemente, extinguiu a SEMI – Seção do Menor Infrator -, para priorizar a instalação de uma Delegacia Especializada de Homicídios. Ora, a Comarca de Itabuna dispõe de uma Vara Especializada da Infância e Juventude e como tal necessitava de uma Delegacia Especializada para o adolescente em conflito com a lei, com pessoas qualificadas e com perfil que criassem as condições para prestar uma tutela diferenciada aos adolescentes em conflito com a lei, oferecendo um serviço de qualidade a esse segmento considerável de nossa sociedade, entretanto, o que se observa é que o mínimo que existia – SEMI – foi desativado, jogando literalmente os adolescentes às feras, isto é, a qualquer delegado de polícia sem preparação específica para atender aos adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional, com a consequente  violação dos direitos assegurados na CF e no ECA. O Adolescente que é apreendido pela Polícia acusado do cometimento de ato infracional praticado com violência ou grave ameaça é ouvido pela autoridade policial e em seguida encaminhado ao Ministério Público, que, depois, diante das provas coligidas pela autoridade policial, pode oferecer Representação acompanhada na maioria dos casos de pedido de internação provisória. O juiz da Infância e Juventude, dentro do prazo de 05 dias, deve realizar audiência, ouvir o representado e seus pais ou responsável, e deliberar sobre a decretação da internação provisória. Caso seja decretada a internação provisória é encaminhado um ofício com as guias de execução provisória à autoridade policial para providenciar a remoção do representado até a unidade do CASE em Salvador. O prazo máximo que é permitido ao adolescente permanecer numa seção da delegacia aguardando a sua remoção para uma unidade de cumprimento de medida socioeducativa é de 5 dias, conforme estabelece o art. 185, §2º, do ECA. Normalmente, em face das questões burocráticas e dificuldades do deslocamento, o representado só é encaminhado para Salvador quando decorridos 10, 15, ou mais dias de seu encarceramento inicial, violando  assim esse e outros dispositivos do ECA.
Todavia, os policiais civis não são obrigados a realizar este transporte, tanto que já fora interrompido várias vezes, criando enormes dificuldades para a instrução do processo. Vale ressaltar que sistematicamente são violados direitos assegurados ao adolescente, como o direito de participar das audiências de instrução, já que uma vez custodiados em Salvador ficam impossibilitados de compareceram a audiência por falta de transporte para tal fim. O Transporte de adolescentes para Salvador mais uma vez está na iminência de ser interrompido, o que poderá causar um caos na instrução e julgamento dos processos envolvendo adolescentes, com todos os prejuízos daí decorrentes. Todas essas dificuldades, sem dúvida alguma, seriam resolvidas e superadas com a instalação nesta Comarca de uma unidade de internamento que comportasse também internamento provisório, contemplando toda a região sul da Bahia.
            Como falar em observância do princípio da prioridade absoluta assegurado aos direitos de criança e adolescentes pela CF e pelo ECA diante do total desprezo e omissão aos direitos dos adolescentes em conflito com a lei pelo Estado da Bahia?
            No caso em comento não calha o argumento trazido à lume pelo ilustre Procurador de que eventual provimento jurisdicional favorável ao autor representaria indevida invasão do Judiciário nas escolhas discricionárias da Administração Pública. Este fundamento que sempre foi utilizado pela Administração Pública nas contestações das ações civis públicas ou nos mandados de segurança para que se mantivesse o controle do Judiciário somente em relação ao aspecto da legalidade do ato vinculado, e assim permitisse à Administração Pública permanecer longe do alcance do Poder Judiciário, mesmo que omitindo e violando direitos metaindividuais, há muito foi superado pelo fenômeno da judicialização da política, pelo qual é permitido ao juiz, como guardião das promessas do constituinte,  aferir as escolhas – ato discricionário – do administrador público, no sentido de verificar se elas se adequam às normas legais e se atendem ao interesse público, e, principalmente, analisar no caso concreto se direitos fundamentais estão sendo violados ou ameaçados de violação em face de eventual omissão da Administração Pública. Nesse sentido é lapidar a lição de Galdino Augusto Coelho Brandão, senão vejamos:                                                                                                                   

“Esta nova postura que se espera do Poder Judiciário nada mais será do que exercitar seu papel de controlar o cumprimento da Carta Magna pelos demais Poderes do Estado, fazendo com que seja dada efetividade às normas constitucionais. Isto implicará fazer com que sejam trazidas para apreciação pelo Judiciário as questões políticas, inclusive de repercussão nacional, porque , ao proferir a decisão em uma ação civil pública, o juiz estará analisando as opções governamentais e determinando que estas venham a se adequar às normas legais. É o fenômeno denominado pelo doutrina de judicialização da política”
            Logo adiante arremata categoricamente:

“O Judiciário deverá agir com firmeza, respondendo adequadamente e à altura dos anseios da sociedade, pois são os anseios sociais, corporificados em uma democracia participativa, que encontram-se traduzidos  na proteção dos direitos metaindividuais defendidos por intermédio da ação civil pública. Estamos diante do momento atual pelo qual passa a sociedade brasileira, onde o povo busca participação, além da política, no exercício do poder. Esta nova realidade de participação será através do adequado controle da legalidade dos atos estatais, visando, precipuamente, o respeito e a eficácia aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos”.

            Não obstante, no caso em comento torna-se desnecessário imiscuir-se no âmago da discricionariedade da Administração Pública, porquanto o Estado da Bahia no âmbito do Atendimento Socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei já fez a sua escolha, isto é, já elegeu a sua política pública do atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei no Estado com a regionalização das unidades de internação no interior do Estado com a previsão da construção de uma unidade de internação definitiva e provisória no município de Itabuna, conforme consta do Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo – 2011/2015 (fls. 330/387) – elaborado e discutido pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CECA BAHIA -, órgão deliberativo e formulador de políticas públicas com relação ao atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei, conforme previsão dos  incisos I e II, e §§ 1º e 2º do inc. X, todos do art. 4º da Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, também conhecida como Lei do SINASE, c/c o art. 88, II, da Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Vale ressaltar que o SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - que, consoante o conceito legal extraído do § 1º do art. 1º da  Lei nº 12.594/2012, “É o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei”,  além de indicar o órgão legitimado para formular políticas públicas com relação ao atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei no Estado, estabelece também a competência do Estado para a criação, desenvolvimento e manutenção de unidade de internação no Estado, senão vejamos:

            Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012:
            Art. 4º - Compete aos Estados:
            I – formular, instituir, coordenar e manter Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo, respeitadas as diretrizes fixadas pela União;
            II – elaborar o Plano Estadual de Atendimento Socioeducativo em conformidade com o Plano Nacional;
            III – criar, desenvolver e manter programas para a execução das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação;
            (....) – omissis;
            X – cofinanciar , com os demais entes federados , a execução de programas e ações destinados ao atendimento inicial de adolescente apreendido para apuração de ato infracional, bem como aqueles destinados a adolescente a quem foi aplicada medida socioeducativa privativa de liberdade.
            § 1º -  Ao Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente competem nas funções deliberativas e de controle do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo, nos termos previstos no inciso II do art. 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 ( Estatuto da Criança e do Adolescente), bem como outras definidas na legislação estadual ou distrital.
            § 2º - O Plano de que trata o inciso II do caput deste artigo será submetido à deliberação do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.
            § 3º - Competem ao órgão a ser designado no Plano de que trata o inciso II do caput  deste artigo as funções executiva e de gestão do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo. (grifos dom magistrado)

Com efeito, a política pública discutida e aprovada no Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CECA DA BAHIA – consistente na previsão da construção de uma unidade de internação definitiva e provisória destinada a adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional no município de Itabuna vincula o Poder Executivo Estadual, no sentido de compeli-lo a concretizar a política pública escolhida efetivando os direitos sociais pleiteados. Nesse sentido é lapidar a lição do jurista Murillo José Digiácomo:

“(...) uma resolução do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, que consiste na materialização de uma deliberação do órgão, tomada em pleno exercício de sua competência constitucional específica, VINCULA (OBRIGA) o administrador público, que não terá condições de discutir seu mérito, sua oportunidade e/ou conveniência, cabendo-lhe apenas tomar as medidas administrativas necessárias a seu cumprimento ( e também em caráter  prioritário, ex vi do disposto no art. 4º, parágrafo único, alínea “c”, in fine, da Lei  nº 8.069/90 c/c art. 227 , caput, da Constituição Federal, a começar pela adequação do orçamento público às demandas de recursos que em razão daquela decisão porventura surgirem”

Os juristas Wilson Donizeti Liberati e Públio Caio Bessa Cyrino reforçam essa assertiva, como se pode observar pelo seguinte trecho extraído de sua obra:

“Na medida em que a Constituição exigiu a estruturação de órgãos descentralizados, com a participação popular, para a formulação e controle das políticas públicas, uma vez criados por lei este órgãos, suas decisões serão verdadeiras manifestações estatais, “de mérito”, “ opções de políticas criativas” adotadas por um órgão público visando o interesse público”.

Patrícia Silveira Tavares é mais explícita e contundente, quando afirma:

            “(...) uma vez realizada a deliberação pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente – e estando o ato em conformidade com os requisitos e pressupostos dos atos administrativos em geral, e ainda, com as regras procedimentos constantes da legislação de regência – não resta outra alternativa à Chefia do Poder Executivo, senão acatar e respeitar a  vontade do colegiado, sendo-lhe vedada, portanto, a criação de qualquer espécie de embaraço à sua execução, sob pena de responder administrativamente ou criminalmente tal ato”.

            Seguindo essa linha de entendimento, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou caso semelhante, muito embora na esfera municipal,  na Ap. Cível de nº 057.700/7-0, no dia 11.01.2001, tendo como relator o Des. Nigro Conceição, cuja ementa é a seguinte:

“Obrigação de fazer – implantação de programa para atendimento de crianças e adolescentes viciados no uso de entorpecentes e inclusão de previsão orçamentária respectiva, com adoção de providências administrativas cabíveis – sentença de improcedência, sob o argumento de que o Município já vem oferecendo este programa – inadmissibilidade – Necessidade de observância de resolução baixada pelo Conselho Municipal de Direitos da Criança  e do Adolescente – Programa oferecido que, em última análise, não atende aos casos crônicos, por não prever tratamento mais acurado, com internação, se necessária – Dever do Poder Público em dar cumprimento às normas programáticas previstas na Constituição Federal e efetividade dessas normas – Implantação  de programa e inclusão de previsão orçamentária determinada, assim como adoção de todas as providências indispensáveis à sua efetivação – desacolhimento da argumentação  de intromissão indevido do Judiciário na esfera de atuação do Executivo – Necessidade, no entanto, de que seja ficado prazo para cumprimento de todos os pedidos – Recurso provido”.

VI - DA VIOLAÇÃO DO DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ADOLESCENTES PRIVADOS DA LIBERDADE NA COMARCA DE ITABUNA:

            A situação a quem são expostos os adolescentes apreendidos e acusados da prática de algum ato infracional grave na Comarca de Itabuna é degradante, humilhante, violando frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana insculpido no art. 3º de nossa Carta Magna, além de vários dispositivos da Convenção Internacional dos Direitos Humanos dos jovens privados de Liberdade, da qual o Brasil é signatário, principalmente no toca a inexistência de tratamento especial e adequado à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, em face da ausência de delegado e equipe especializados e condição degradante a que são submetidos, quando são obrigados a esperar numa repartição do Complexo Policial de Itabuna à sua remoção para unidade de internação em Salvador, ficando privados de se acomodarem em cama com lençóis, agasalho para suportar o frio, vestuário, alimentação adequada, e, algumas vezes ficam privados de receber visitas, em face da ausência de pessoas capacitadas para custodiá-lo nesse período. Na verdade, como será demonstrado, vários dispositivos da CF, do ECA e da Lei do SINASE são sistematicamente violados pelo tratamento dispensado pelo Estado da Bahia ao adolescente em conflito com a lei. Com efeito, os adolescente apreendidos em Itabuna ficam alijados, quando são apreendidos, de vários direitos assegurados no ECA, como se pode observar:

            Art. 123. A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade de infração.
Parágrafo Único. Durante o período da internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas.

            Como se sabe, a Comarca de Itabuna, embora dotada de uma Vara Especializada da Infância e Juventude, não dispõe de uma unidade de atendimento com esses requisitos mínimos, nem tampouco de uma Delegacia Especializada para atender adolescentes infratores, sujeitando-os a toda espécie de constrangimento, quando são obrigados a aguardar a sua remoção para Salvador (distante mais de 400 Km) em espaço inadequado, fétido e desprovido das condições mínimas para abrigar, ainda que temporariamente, o adolescente apreendido. Ademais, a distância acaba afetando os vínculos familiares e comunitários do adolescente internado, comprometendo assim, a sua própria ressocialização.
Por sua vez, o art. 124 assim dispõe:

Art. 124 . São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes:
I – entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público;
II – peticionar diretamente a qualquer autoridade;
III – avistar-se reservadamente com seu defensor;
IV – ser informado de sua situação processual sempre que solicitada;
V – ser tratado com respeito e dignidade;
VI – permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável;
VII – receber visitas, ao menos semanalmente;
VIII – corresponder-se com seus familiares e amigos;
IX – ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal;
X – habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade;
XI – receber escolarização e profissionalização;
XII – realizar atividades culturais, esportivas e de lazer;
XIII – ter acesso aos meios de comunicação social;
IV – receber assistência religiosa, segundo sua crença, e desde que assim o deseje;
XV -  manter a posse de seus pessoais e dispor de local seguro para guardá-lo, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade;
XVI – omissis
(...) -  omissis ( grifo nosso)

Como se depreende, vários dispositivos estão sendo violados na Comarca de Itabuna quando se trata de atendimento socioeducativo a adolescente em conflito com a lei, a começar pela impossibilidade de permanecer internado na mesma localidade onde residem seus pais ou responsáveis, ou em alguma entidade mais próxima, conforme previsão do inc. VI do art. 124 do ECA. A distância de mais de 400 Km constitui um grande obstáculo para a efetiva ressocialização do jovem infrator, que acaba quebrando os seus vínculos familiares e comunitários, contrariando assim também o disposto no art. 35, IX, da Lei nº 12.594/2012. Sem embargo de eventual ajuda financeira da FUNDAC às famílias que desejam visitar seus filhos na unidade de internamento em Salvador, torna-se inviável cumprir o disposto no inc. VII do referido artigo, porquanto além do cansaço físico, há outras despesas no referido deslocamento além dos custos de passagem, que inviabiliza a visitação semanal, mesmo porque o perfil dos adolescentes internados em Salvador é oriundo de classe pobre, alguns vivendo em situação de extrema miséria.
            Por outro lado, os adolescentes que são encaminhados para a Comarca de Salvador, como bem ponderou o Parquet em sua exordial, ficam impedidos de comparecerem à audiência de instrução e julgamento, em face da ausência de transporte para tal propósito, ensejando, assim, a violação dos princípios constitucionais à ampla defesa e do contraditório, estabelecidos no inciso LV do art. 5º da CF de 1988, bem como no art. 35, I da Lei nº 12.594/2012, porquanto agindo assim, o Estado está dispensando tratamento mais gravoso ao adolescente em relação ao imputável, que dispõe nesta Comarca de Presídio adequado para abrigar presos provisórios e condenados definitivamente pela Justiça.
            Sem dúvida alguma o Estado da Bahia passou ao largo da doutrina de proteção integral estabelecida no art. 227 da CF e reproduzida no art. 4º do ECA, ferindo vários direitos fundamentais assegurados aos adolescentes em conflito  com a lei, principalmente, no que se refere a seu dever de assegurar, com absoluta prioridade, o direto à dignidade, à convivência familiar e comunitária, e o de livrá-lo do tratamento degradante e cruel que é dispensado ao adolescente apreendido nesta Comarca, até a sua remoção para uma unidade de internamento em Salvador.

VII - DA JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS. DO ATIVISMO JUDICIAL. DA RESERVA DO POSSÍVEL E MÍNIMO EXISTENCIAL DOS DIREITOS SOCIAIS E FUNDAMENTAIS DE ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE:
            Ainda que não fosse feita a escolha da política pública de uma unidade de internação destinada a adolescente em conflito com a lei na Comarca de Itabuna, o substrato fático constante dos autos, principalmente no que se refere aos dados estarrecedores da violência juvenil na Comarca de Itabuna e o tratamento desumano e cruel dispensado aos adolescentes apreendido nesta Comarca pelo Estado da Bahia, com espaços inadequados, fétidos e insalubres – iminência de ser interditado -, com a violação sistemáticos de vários direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal e pelo ECA, já justificaria o controle judicial dessa política pública, no sentido de compelir a Administração Pública Estadual a criar, desenvolver e manter uma unidade de internação definitiva e provisória de adolescentes em conflito com a lei,  como lhe compete, nos termos do art. 4º, III, da Lei nº 12.594/2012, porquanto a discricionariedade administrativa não é absoluta no âmbito do neoconstitucionalismo, pois a política pública, como direito de 2ª geração têm um caráter finalístico, que é a concretização dos princípios e regras constitucionais, no sentido de atender de forma difusa ou coletiva  os direitos sociais, econômicos e culturais de determinada sociedade, no caso em tela, os direitos assegurados na Constituição Federal e no ECA aos adolescentes privados de liberdade. Com efeito, o neoconstitucionalismo, dentro da filosofia pós-positivista, demarca a passagem do estado liberal positivista, onde a lei era a única fonte de legitimação do Direito, para a construção de um Estado Democrático e Constitucional de Direito, no qual é reconhecida a supremacia da Constituição e a força vinculante e normativa de seus princípios, regras e valores, podendo, portanto, controlar judicialmente as políticas públicas, sem que se fale em violação ao princípio de separação dos poderes. O autor José Sérgio da Silva Cristovam  em seu excelente artigo sobre “Breves Considerações sobre o Conceito de Políticas Públicas e seu Controle Jurisdicional" explicita, com maestria:
“A supremacia da Constituição é o traço marcante do Estado constitucional . A própria  teoria da soberania do Estado deve ser deslocada para a idéia de soberania da Constituição. O Estado somente alcança legitimidade , na medida em que garante as liberdades fundamentais e implementa os direitos fundamentais sociais, numa clara redefinição do conceito de soberania. Soberania é a Constituição. O Estado é apenas instrumento de efetivação dos ditames constitucionais.
Partindo desses parâmetros, não parece que o controle jurisdicional de políticas públicas afronta o princípio constitucional de separação de poderes. Antes o torna efetivo, vez que por meio da justicialidade de políticas públicas se busca garantir a implementação de direitos fundamentais positivos”.

Destarte, superada a fase positivista da separação linear e estática das funções dos poderes criada por Monstesquie, urge reconfigurar o papel do Judiciário, como instância legitimadora da efetividade das políticas públicas. Vejamos o conceito de José Sérgio da Silva Cristóvam na obra já citada, sobre Políticas Públicas:

            “ As políticas públicas podem ser entendidas como o conjunto de planos e programas de ação governamental voltados à intervenção no domínio social, por meio dos quais são traçadas as diretrizes e metas a serem fomentadas pelo Estado, sobretudo na implementação dos objetivos e direitos fundamentais dispostos na Constituição”.

Nesse contexto, é hoje pacífico que o legislador e o administrador público não são completamente livres para fazer suas escolhas, mormente quando o conteúdo desses programas governamentais ou sua omissão possa violar direitos fundamentais, exigindo-se uma nova postura do Judiciário – intervencionista -, com a figura de um novo juiz sincronizado com o direito aberto, cuja decisão livre de qualquer método dogmático-positivista, seja construída em cada caso concreto numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, sendo, verdadeiramente, o garantidor das promessas do constituinte.  Nesse sentido, merecer transcrição o seguinte aresto que se amolda perfeitamente ao caso sub judice, senão vejamos:

            AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ECA. OBRIGAÇÃO DE O ESTADO-MEMBRO CRIAR, INSTALAR E MANTER PROGRAMAS DESTINADOS AO CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIO-EDUCATIVAS DE INTERNAÇÃO E SEMILIBERDADE DESTINADOS A ADOLESCENTES INFRATORES. INCLUSÃO NECESSÁRIA NO ORÇAMENTO. TEM O ESTADO O DEVER DE ADOTAS AS PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS A IMPLANTAÇÃO. A DISCRICIONARIEDADE, BEM COMO O JUÍZO DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE SUBMETEREM-SE A REGRA DA PRIORIDADE ABSOLUTA INSCULPIDA NO ART. 4º DO ECA E NO ART. 227 DA CFB. RECURSO DESPROVIDO, POR MAIORIA. ( TJRS, 7ª C.CÍVEL, AP. CÍVEL Nº 597097906, REL.SÉRGIO FERNANDES DE VASCONCELOS CHAVES, J. 22.04.98)

Como é cediço, essa espécie de decisão judicial – controle judicial sobre políticas pública – tem se multiplicado no Brasil, e já constitui posicionamento pacífico do STF, conforme se pode observar do RE 63463, da lavra do Relator Min. Joaquim Barbosa, bem como da ementa resumida extraída do Agravo de Instrumento de nº 809018, cujo relator foi o Min. Dias Tóffoli, lavrada nos seguintes termos:
            “ O poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucinalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes”

Dessa forma, está legitimada a intervenção do Poder Judiciário para compelir o Estado da Bahia a implementar políticas públicas, consistente na criação, desenvolvimento e manutenção de uma unidade de internamento definitivo e provisório para adolescentes infratores na Comarca de Itabuna, sem que se fale em violação ao princípio da separação dos poderes, principalmente, em face da situação excepcional e extremamente grave de Itabuna, considerada a cidade mais violenta do país para jovens de 12 a 18 anos, cujo atendimento dispensado ao adolescente em conflito com a lei é precário e deficiente, em face da inexistência de uma unidade de internamento nesta Comarca, sendo por isso mesmo, a Comarca que mais encaminha adolescente infratores para cumprir medida socioeducativa de internação na capital do Estado.
            O argumento da “reserva do possível” não constitui óbice ao acolhimento do pleito, pois nem sempre a escassez de recursos ou a limitação orçamentária pode servir de justificativa genérica para a omissão estatal e o desrespeito à concretização de direitos sociais fundamentais. A demandada se limitou a afirmar a escassez de recurso, sem comprovar especificamente essa limitação do orçamento. O orçamento não pode ser considerado um mero instrumento contábil, formal de previsão de receitas e despesas. O acadêmico da UESC, Pedro Andrade Santos, em sua excelente monografia intitulada “Judicialização da Política e Efetivação da Constituição: um estudo acerca do controle judicial de políticas públicas", explicita:

“Hodiernamente, concebe-se o orçamento como orçamento-programa, uma vez que destinado ao planejamento das ações governamentais e definição de planos de governos e atuação estatal, destinados ao desenvolvimento social e econômico. A Constituição, portanto, vincula a elaboração e execução das leis orçamentárias, exigindo estejam direcionadas a implementação dos direitos fundamentais sociais”.

A teoria da reserva do possível não pode servir como justificativa para negar à pretensão ministerial quando se está diante de uma omissão estatal que não assegura o mínimo existencial no que toca aos direitos dos adolescentes em conflito com a lei e privados da liberdade na Comarca de Itabuna. Como bem disse o ilustre Parquet, “ente público apenas terá um juízo de conveniência e oportunidade na implementação de determinadas políticas públicas quando já tiver garantido o mínimo aceitável”, o que, seguramente, não é o caso dos autos,  pois a ausência de política pública do atendimento socioeducativo do Estado da Bahia com relação ao adolescente em conflito com a lei privado de liberdade é incontroversa. Não obstante a violência assustadora verificada na Comarca de Itabuna, principalmente no que concerne a delinquência juvenil, não há qualquer investimento do Estado na Comarca de Itabuna, nem mesmo uma unidade de semiliberdade, como também é de sua competência . Como sustentar a teoria da reserva do possível e a concretização do princípio da prioridade absoluta conferida aos adolescentes em conflito com a lei no presente caso, nos termos do art. 227 da CF, se o Estado da Bahia  no exercício de 2011 gastou R$ 122.300.000,00 (cento e vinte e dois milhões e trezentos mil reais) com propaganda e publicidade, mas não dispõe de pouco mais de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais) para construir uma unidade de internamento para adolescentes infratores na Comarca de Itabuna, considerada a mais violenta do país para adolescentes entre doze a dezoito anos de idade? Como justificar diante dos números a escassez de recursos e orçamento limitado para a construção da unidade de internamento provisório e definitivo para adolescentes infratores na Comarca de Itabuna? Na verdade, a referida unidade serviria para custodiar os adolescentes de toda a região sul do Estado da Bahia, diminuindo assim, consideravelmente, o contingente de adolescente infratores que são encaminhados para a capital do Estado, resolvendo assim, o problema da superlotação no CASE. O problema do transporte dos adolescentes também seria sanado, pois o acordo celebrado entre as autoridades da FUNDAC, da Secretaria de Segurança Pública, do Ministério Público e da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça da Bahia já findou e os problemas já começaram a acontecer em algumas Comarcas com a recusa sistemática dos agentes da polícia civil em fazer o transporte, sob a alegação de desvio de função. Na verdade, o Estado da Bahia está retrocedendo na esfera da política pública de atendimento socioeducativo, pois nem sequer o mínimo existencial está assegurado ao adolescente em conflito com a lei em Itabuna. Nesse sentido, merece transcrição o seguinte aresto do TJMG, que guarda pertinência com o caso em tela:

“EMENTA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. LIMINAR. IMPLANTAÇÃO DO SERVIÇO DE ACOLHIMENTO DE MENORES. DISCRICIONARIEDADE E SEPARAÇÃO DOS PODERES. MÍNIMO EXISTENCIAL E PROIBIÇÃO DO RETROCESSO NA SEARA DOS DIREITOS SOCIAIS. LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. O acolhimento institucional, como eficiente instrumento de concretização dos direitos da criança e do adolescente, é medida indiscutivelmente afeta à política social pública que, por enfática exigência da vigente Constituição Federal, goza de absoluta prioridade, razão pela qual a omissão do Poder Executivo em sua prestação está sujeita ao controle do Poder Judiciário, cuja interferência , em casos tais, não ofende o princípio da separação dos  poderes e nem mesmo o dia reserva do possível, aos quais se sobrepõem os princípios constitucionais do mínimo existencial e da proibição do retrocesso na seara dos direitos sociais, como já vaticinou a Suprema Corte Constitucional (Ag no RE com Ag nº 639337/SP, 2ª T/STF, rel. Ministro Celso de Mello). Agravo de Instrumento Cível nº 1.078.10.002965-9/001. Rel. dês. Peixoto Henriques j. 10/01/2012, p. 03/02/2012.

É precisamente o caso dos autos. O Estado da Bahia não apenas deixou de priorizar o atendimento socioeducativo para adolescente em conflito com a lei na Comarca de Itabuna, mas sobretudo de garantir um mínimo existencial – uma delegacia especializada, um setor especializado com delegado designado exclusivamente para o atendimento socioeducativo de adolescentes acusados da prática de ato infracional, um local adequado para custodiar adolescentes apreendidos com pessoas capacitadas para cuidar dos mesmos, transporte adequado para transportar adolescentes para Salvador no prazo estabelecido em lei e para trazê-los para as audiências de instrução realizadas nesta Comarca,  regular visitação dos familiares, vestuário, alimentação adequada e produtos de higiene e asseio pessoal à disposição dos adolescentes, dentre outros direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal e pelo ECA. Sem dúvida, é manifesto o desprezo do Estado da Bahia e omissão total com relação ao atendimento socioeducativo prestado nesta Comarca.
Dessa forma, e em face de todas as questões examinadas e as razões expendidas, é de rigor o julgamento procedente do pedido contra o Estado da Bahia, que é o ente responsável pela articulação dos demais sistemas que serão acionados para a consecução do atendimento socioeducativo a ser dispensado ao adolescente em conflito com a lei na Comarca de Itabuna, como o sistema segurança pública, saúde, educação, assistência social, dentre outros, no sentido de materializar a política pública consistente na criação, desenvolvimento e manutenção de uma unidade internamento provisório e  definitivo (adolescentes julgados e condenados definitivamente) na Comarca de Itabuna, nos termos estabelecidos no art. 4º, III da Lei nº 12.594/2012.
            O decisum numa ação civil pública de obrigação de fazer, em face seu caráter de tutela transindividual, embora se revista de caráter condenatório e até mesmo cominatório, difere da sentenças tradicionais prolatada nos processos relativos a direitos individuais, porquanto o manto coberto pela sentença deverá chegar ao resultado prático equivalente a adimplemento, nos termos do disposto nos arts. 267 e 461 do CPC c/c o art. 213 da Lei nº 8.069/90, valendo dizer que todas as providências subrogatórias serão direcionadas ao executado, no sentido de seja cumprida fielmente a decisão e evitada imediatamente a violação de direitos fundamentais assegurados aos adolescentes em conflito com a lei. Nesse sentido merece transcrição do texto de Galdino Augusto Coelho Brandão extraído da obra já mencionada nestes autos, vazada nos seguintes termos:

“Na lei de ação Civil Pública o juiz foi dotado de uma gama maior de poderes, como, por exemplo, a possibilidade de conceder mandado liminar sem ouvir a parte contrária(salvo se a situação fática se enquadrar na hipótese da malfadada Lei nº 8.437/92). Julgar extra petita nas obrigações de fazer e não fazer, aplicando astrientes, mesmo que o autor não as tenha pedido; determinar providências sub-rogatórias, mediante ordens impostas ao devedor ou a terceiros para chegar a um resultado prático equivalente a adimplemento, regra esta que a reforma do CPC incluiu nos arts. 273 e 461( arts. 11 e 12 da LACP); art. 213 da Lei nº 8.069/90; arts. 83 e 84 da Lei nº 8.078/90).
Em sede de direitos metaindividuais, a atuação do Poder Judiciário será mais ampla do que a existente nos processos que cuidam de direitos individuais, pois,em virtude da natureza especial deste direitos, que se espraiam por toda a sociedade ou atingem um grupo muitas vezes indeterminado de pessoas, suas conseqüências serão mais amplas”.

É curial, entretanto, que se atentem “in casu” que a eventual obrigação de fazer imposta ao Estado não se cumprirá no prazo inicialmente requerido pelo Ministério Público em sua exordial, por demais exíguo, em face das exigências legais com questões de ordem orçamentária, fiscal e financeira, envolvendo os processos licitatórios e os contratos administrativos que deverão ser celebrados, nos termos do que prescrevem as leis 8.666/93 e 9.433/2005, além de outros diplomas legais pertinentes, o que evidentemente levará algum tempo para se concretizar, valendo ressaltar que a previsão para a construção da unidade de internamento para menores infratores na Comarca de Itabuna já consta do Plano Plurianual, conforme reconheceu o próprio Procurador. Todavia, nada impede que algumas providências imediatas sejam tomadas pela demandada, no sentido de erigir um mínimo de estrutura física e humana, capaz de efetivar transitoriamente o atendimento socioeducativo para adolescentes apreendidos nesta Comarca até que seja construída a unidade de internamento provisório e definitivo para adolescentes infratores, considerando que o atual espaço destinado à apreensão de adolescente em conflito com a lei na Comarca de Itabuna é insalubre e inadequado para custodiá-los à luz das diretrizes estabelecidas pelo ECA e pela Lei do SINASE, conforme se verifica pelo termo de inspeção acostado aos autos.
Posto isso, julgo parcialmente procedente o pedido, para condenar o Estado da Bahia a inserir no próximo orçamento anual, após o trânsito em julgado desta sentença,  dotação específica e suficiente para a construção de uma unidade de internação na Comarca de Itabuna, destinada a adolescente infratores, encaminhados para cumprir internamento provisório ou internamento decorrente de sentença condenatória definitiva, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) em caso de descumprimento do preceito. Determino também, a título de tutela parcial e antecipada, nos termos do art. 273 do CPC, que  também o demandado adote as providências cabíveis, em caráter urgência, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, no sentido de disponibilizar um espaço adequado, com salubridade e boas condições de higiene, para abrigar temporariamente adolescentes infratores apreendidos, devendo para tanto designar delegado especial e exclusivo com agentes públicos para prestar atendimento socioeducativo a adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional, além de providenciar transporte adequado para transportar adolescentes para as unidades de internamento e semiliberdade situadas no Estado da Bahia e seu retorno para participar das audiências de instrução e julgamento, tudo no sentido de evitar a sistemática violação de direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sob pena de imposição de multa diária, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), nos termos do art. 461 do CPC.
            Sem custas e sem condenação em honorários advocatícios, na forma de lei.
            Decorrido o prazo recursal, sem recurso voluntário, encaminhem os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça da Bahia, para fins de reexame obrigatório, nos termos do art. 471 do CPC.
            P.R.I.




[1]    CARVALHO, José Orlando de. Teoria dos Pressupostos e dos Requisitos Processuais.Lumens Juris Editora: Rio da Janeiro, 2005 p. 18
[2]    Ob. Cit. p. 15/16

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