ARIANO SUASSUNA: uma lição de vida
A vida fica mais suave
e bela na prosa inimitável do agora saudoso Ariano Suassuna. Nascido em João
Pessoa, na Paraíba, em 16 de junho de 1927, perdeu o pai nas lutas políticas
que antecederam a revolução de trinta, ainda quando contava com apenas 3 anos
de idade. Esse fato obrigou a família Suassuna a mudar-se para Recife em 1942.
Na capital pernambucana, Ariano bacharelou-se em Direito e seguiu seu destino
encontrando-se com a sua inescondível vocação: a literatura.
Na verdade, passei a
conhecer Ariano Suassuna através de sua obra intitulada “O Auto da Compadecida”
que virou filme e encantou a todos, crianças, jovens e adultos. A trama
envolvendo João Grilo e Chicó, o coronel Antonio Moraes, o cangaceiro Severino,
o padre João e o bispo, é de uma riqueza espetacular, pela qual o autor, como
exímio contador de causos, mostra naturalmente o contexto do interior
nordestino brasileiro, desvelando hábitos e costumes do homem do interior, como
a arrogância e prepotência do coronel Antonio Moraes que mandava na cidadezinha
através do poder do dinheiro e da intimidação, a questão da fé, do medo e da
ambição humana, a fragilidade do padre João e do bispo e as astúcias e as
mentiras de João Grilo e Chicó, sempre
acompanhado do ingrediente do humor refinado e inteligente, levando a todos que
assistiram ao prazer de rir desmedidamente. O enterro do cachorro encomendado
pelo padre em latim mostra o poder do dinheiro e a vulnerabilidade do pregador.
Depois li o seu romance intitulado “A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do
Vai-vai”, que foi contemplado com o Prêmio Nacional de ficção do Instituto Nacional
do Livro em 1972. A sua biografia é muito longa e muitos já discorreram sobre a
sua longa produção e os cargos públicos que ocupou durante sua vida.
Na verdade, a minha
admiração por Ariano Suassuna aumentou extraordinariamente quando o conheci pessoalmente
no XIX Congresso Nacional de Magistrados patrocinado pela Associação dos
Magistrados Brasileiros, realizado em Curitiba em novembro de 2006. Ele foi
convidado para ministrar uma aula-espetáculo para cerca de 1.500 magistrados.
Uma plateia seleta e falante o aguardava ansiosamente. Assim que ele apareceu,
meio envergado, andar lento, deixando à mostra o pesado fardo dos longos anos
vividos, foi aplaudido efusivamente pelos presentes. Sentou-se lentamente numa
cadeira no meio do palco com uma serenidade própria dos sábios. Silêncio no
auditório. Na minha mente, todavia, latejava uma pergunta conspiratória: o que
esse senhor vai falar para essa plateia tão exigente? Será que dará conta do
recado? Assim que ele começou a
falar com aquele seu jeito tão peculiar de ser como verdadeiro contador de
estória e autor de frases reflexivas, passou a reinar no ambiente um silêncio
sepulcral. Todos, indistintamente, não queriam perder uma frase sequer
proferida por aquele senhor, que sozinho no meio do palco, utilizava toda a
riqueza da linguagem coloquial, seja através de gestos, inflexões ou expressões
faciais, como seu grande instrumento, permeada de orações sábias e estórias
marcadas com humor, demonstrando assim uma retórica simplesmente envolvente, dominando
assim, em pouco tempo, todas as atenções.
O espetáculo durou
cerca de duas horas, mas a sensação é que tudo foi muito rápido tal a suavidade
proporcionada por aquele momento mágico que arrebatava a todos os espectadores,
transportando-os de um estado emocional para outro, prendendo assim, a atenção
de centenas de pessoas, tamanha a magia que brotava de suas palavras e dos seus
gestos encantando a todos.
Era um defensor
intransigente da cultura nordestina e detestava o lixo cultural despejado pelos
Estados Unidos no Brasil. Avesso e crítico ferrenho da vulgarização e
massificação da cultura industrial brasileira, foi fundador do Movimento
Armorial, pelo qual pretendia cultivar e valorizar uma cultura erudita baseada
em nossas raízes populares nordestinas, em suas variadas expressões, como
música, dança, teatro, artes plásticas, dentre outras. Concretizou parte do seu
projeto quando exerceu o cargo de Secretário de Cultura do Recife na década de
oitenta e parte dos anos noventa.
Lembro-me de uma estória que ele
contou nessa aula: disse que todo menino quando pretende descobrir sua vocação
deve observar bem os sinais: se o menino tem habilidade para fazer as quatro
operações matemáticas será certamente um bom engenheiro, entretanto, se ele se
interessar em matar calangos ou lagartixa, para depois abrir a barriga com uma
faca e ato contínuo costurá-la com um pedaço de fio, certamente será um bom
médico. Todavia, quando o menino não souber fazer absolutamente nada, acaba fazendo
vestibular para Direito, podendo ser um advogado. E acrescentou: “como eu não
sabia fazer absolutamente nada, resolvi fazer Direito, mas não fui muito
longe”.
Assim que se formou em
Direito, foi encaminhado para um grande escritório de advocacia em Recife. O
advogado, chefe do Escritório, assim que o recebeu encaminhou-lhe uma ação de
execução para que ingressasse em Juízo cobrando o valor de uma nota
promissória. Ariano, assim que recebeu a petição já revisada pelo
advogado-chefe, juntou a procuração e a nota promissória, encaminhou-se ao
Fórum e protocolou a petição de execução. O Executado foi citado e ofereceu
bens à penhora para garantir a execução, interpondo em seguida os embargos e
argumentando que não havia título válido a ser executado, pois no documento
acostado aos autos pelo advogado da credora (Ariano) não constava a assinatura
do seu cliente. O advogado do devedor-executado, matreiro, tarimbado,
acostumado às chicanas judiciais, simplesmente passou uma régua na nota
promissória que estava nos autos do processo e rasgou a parte debaixo do
título, expurgando a assinatura do seu cliente. A família do credor, assustada,
procurou o advogado chefe para saber o que aconteceu. O advogado-chefe tentou
tranquilizar a todos, informando que normalmente os advogados guardavam uma
cópia fotostática do título para evitar qualquer tramóia da parte ex-adversa.
Todavia, Ariano não havia guardado cópia alguma e indagado sobre o motivo pelo
qual ele não havia tirado uma cópia, respondeu de chofre: eu sou advogado, não
posso pensar como ladrão! Depois desse episódio Ariano, visivelmente
decepcionado, abandonou definitivamente a advocacia e partiu de corpo e alma
para a literatura, onde verdadeiramente encontrou a sua vocação e sua missão
aqui na terra. E assim, ele mesmo se definiu: “Arte para mim não é produto de
mercado. Podem me chamar de romântico. Arte para mim é missão, vocação e
festa”.
Ariano, esse ser humano
extraordinário, partiu, deixando o Brasil mais triste neste julho de 2014, mas
deixou para sempre o seu legado inesgotável para esta e para as futuras
gerações.
Marcos Bandeira, Juiz de Direito da Vara da Infância e
Juventude de Itabuna e ex-presidente da Academia de Letras de Itabuna.
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