terça-feira, 23 de março de 2010

A RELEITURA DO PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO SOCIETATE"

A RELEITURA DO PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO SOCIETATE”



Até há pouco tempo nós aplicávamos, no exercício da judicatura criminal, cegamente, o princípio in dubio pro societate, como vem ocorrendo com a maioria dos juízes que moureja na Vara do Júri, atendendo, principalmente, à produção dogmática predominante no Direito Processual Brasileiro, da qual o insigne e saudoso jurista Mirabete desponta como um dos seus maiores expoentes. Diz o saudoso jurista , a respeito do princípio in dubio pro societate o seguinte:



Como juízo de admissibilidade, não é necessário à pronúncia que exista a certeza sobre a autoria que se exige para a condenação. Daí que não vige o princípío in dubio pro reu, mas se resolve em favor da sociedade as eventuais incertezas propiciadas pela prova( in dubio pro societate).



Como se infere, na mesma linha teórica do princípio da presunção da culpabilidade, o legislador deu primazia à tutela da segurança pública em detrimento dos direitos e garantias fundamentais do sujeito acusado de ter praticado um crime doloso contra a vida, valendo-se de presunções e dúvidas para formar um juízo de admissibilidade de acusação em desfavor do acusado. Na verdade, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, o juiz, mesmo em se tratando da primeira fase do procedimento relativo ao Tribunal do Júri, bem como de mero juízo de admissibilidade de acusação, não deve nunca decidir com dúvidas, pois esse estado de incerteza é incompatível com uma decisão dessa magnitude, que lança o acusado de uma imputação penal para ser julgado “diante das sete feras” – os jurados -, os quais julgam por convicção íntima, não precisando, como o juízes togados, motivar suas decisões. Evidentemente, que diante das limitações valorativas na apreciação das provas por parte do juiz, não se exige o juízo de certeza que legitima uma decisão penal condenatória, entretanto, o juiz só deve admitir a acusação diante da certeza da existência de indícios de autoria e a prova da existência do crime. Caso contrário, em face da existência de indícios frágeis, vagos, nebulosos, subjetivos, o caminho é o da impronúncia. Trilhando esse caminho, o então juiz da Comarca de Campinas-SP, José Henrique Rodrigues Torres explicita:



Não me parece devido nem jurídico invocar, na pronúncia, o provérbio in dubio pro societate. Não se deve admitir nenhum julgamento com base na dúvida. Nenhum. O uso da mencionada expressão é um equívoco, que, infelizmente, tem ocorrido com frequência. Para prolatar a pronúncia , embora a decisão não seja de mérito, mas sim de exame da viabilidade da acusação, deve o juiz aferir a suficiência das provas e indícios (...) O julgamento com base na dúvida não interessa à sociedade, que exige certeza fundamentada em todas as decisões judiciais (Constituição Federal, artigo 93, inciso IX).



Não compartilho inteiramente com a posição do eminente magistrado de Campinas, porquanto, embora reconhecendo a consistência do seu embasamento teórico de se vedar que o juiz julgue com dúvidas, entendo que, em se tratando de um juízo de mera admissibilidade da acusação, portanto, de uma decisão interlocutória mista, de natureza processual, o juiz não deve ter dúvidas com relação à existência de indícios e da prova da materialidade delitiva ou da existência do crime, todavia, em face das próprias limitações que o magistrado pronunciante tem no exame e valoração das provas, não podendo confrontá-las ou imiscuir-se demasiadamente no meritum causae, entendo que a expressão in dubio pro societate não deve ser abolida, mas submetida a uma nova leitura ou a um novo olhar. Com efeito, o juiz que não pode aprofundar-se no exame valorativo das provas sob pena de influenciar indevidamente o ânimo dos juízes naturais, deve reservar para os jurados as questões de alta indagação, de maior esclarecimento dos fatos, ou seja, o manancial probatório que sustentará a decisão de mérito e que exige a análise crítica do juiz, pois essa dúvidas ou incertezas o juiz pronunciante não pode e nem tem legitimidade para dirimir, pois somente no plenário do júri é que todos os elementos probatórios serão dissecados e o meritum causae discutido à exaustão pelas partes, no sentido de erigir o poder de convencimento dos jurados.

Entende-se que a verdadeira função da pronúncia é enxugar a acusação, expurgando os excessos e, principalmente, segundo o escólio do jurista Vicente Greco Filho “é a de impedir que um inocente seja submetido aos riscos do julgamento social irrestrito e incensurável”. O festejado jurista explicita categoricamente:



A função do juiz togado na fase da pronúncia é a de evitar que alguém que não mereça ser condenado possa sê-lo em virtude do julgamento soberano, em decisão, quiçá, de vingança pessoal ou social. Ou seja, cabe ao juiz na fase de pronúncia excluir do julgamento popular aquele que não deva sofrer a repressão penal (...) pode-se dizer que compete ao juiz evitar que um inocente seja jogado “às feras”.



Desta forma, não se deve utilizar a expressão in dubio pro societate quando se estiver diante de indícios vagos, frágeis, nebulosos e incertezas quanto à existência do próprio crime, pois, agindo assim, se estará ressuscitando o princípio da presunção da culpabilidade e lançando na vala comum do referido princípio prováveis inocentes para serem julgados pelas “sete feras”, contribuindo, assim, para a construção de uma decisão iníqua e injusta, condenando-se um provável inocente, o que certamente não interessa à sociedade, por ferir de morte todos os direitos fundamentais e garantias constitucionais conquistados ao longo do tempo.

Vê-se, portanto, que a leitura dogmática que ainda se faz do princípio in dubio pro societate viola flagrantemente os princípios da presunção da inocência e da motivação das decisões judiciais, insculpidos nos art. 5º, LVII e 93, IX da Constituição Federal de 1.988, pois no que toca a esta última, consoante escólio de Aury Lopes , “sua principal função é a de permitir o controle da racionalidade, pois só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder”.

O juiz pronunciante, a despeito de ser um garantidor dos direitos fundamentais do acusado de um crime contra a vida, deverá adotar uma linguagem sóbria e comedida, apontando com equilíbrio onde se encontram os indícios suficientes de autoria e a prova material do crime, sem se imiscuir ou se aprofundar no exame das provas, confrontando-as ou valorando-as excessivamente, de sorte a evitar alguma influência no ânimo dos jurados e assim expor a decisão de pronúncia à nulidade.



Um comentário:

  1. Excelente artigo.

    O combate a essa "armadilha dogmática" ainda está ingatinhando. Precisamos estender a pesquisa sobre o tema para evitarmos mais injustiças.

    Em nota de rodapé explicativa de sua magnificaobra o professor Adriano Bretas relata que no dia 21 de outubro de 2008, às 17:38 min, realizou um breve acesso ao sítio virtual do TJRJ, onde constatou que, dos últimos 100 acórdãos proferidos em sede de recurso em sentido estrito, contra pronúncia, 96 deles mantiveram a decisão de encaminhar o acusado a júri, invocando, no mais das vezes, a malsinada convenção pretoriana in dúbio pro societate . E desabafa o autor:

    “Não é porque a decisão foi mantida, que ela esteja correta. Errado está o Tribunal que mantém a decisão de pronúncia estribada unicamente no intruso mito do exdrúxulo in dúbio pro societate, que precisa, ser, de uma vez por todas, expurgado da jurisprudência.”(apud, p. 21)

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