Excelente artigo das pesquisadoras Aline Cardoso Siqueira e Débora Dell´Aglio sobre os efeitos da institucionalização no desenvolvimento da criança.
O impacto da
institucionalização na infância e na adolescência: uma revisão de literatura
The impact of institutionalization on childhood and adolescence: a
literature review
Aline Cardoso
Siqueira; Débora Dalbosco Dell'Aglio
Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
RESUMO
Este artigo apresenta uma revisão de literatura
sobre as instituições de abrigo, discutindo sua influência no desenvolvimento
de crianças e adolescentes. A partir da Teoria Ecológica do Desenvolvimento
Humano e do Estatuto da Criança e do Adolescente, foram considerados estudos
sobre abrigamento, realizados ao longo das últimas décadas. Muitos estudos
discutem a vivência institucional, sendo que alguns apontam prejuízos ao
desenvolvimento, enquanto outros indicam que a instituição pode ser uma
alternativa positiva, quando o ambiente familiar é desorganizado e caótico.
Embora sejam observadas melhoras na qualidade da assistência oferecidas pelos
abrigos, especialmente após o ECA, discute-se a necessidade de ações
direcionadas às equipes das instituições, a fim de oportunizar melhores
condições de trabalho e diminuição da rotatividade. Além disso, é necessário
entender a instituição como parte da rede de apoio social e afetivo, que também
pode oferecer um espaço para o desenvolvimento saudável de crianças e
adolescentes.
Palavras-chave: institucionalização; crianças; adolescentes; desenvolvimento.
ABSTRACT
This article
reviews the literature about the impact of shelter institutions on children and
adolescents' development. From a theoretical foundation based on the Ecology of
Human Development and the views expressed in the Child and Adolescent's
Statute, we searched for research conducted over the past few decades on the
impact of shelters. Many researchers discuss institutional life, with some of
them discussing its damage to development and others indicating its positive
features, particularly when the family environment is disorganized and chaotic.
Although progress was observed in the quality of the assistance offered by shelters,
especially following passage of the Child and Adolescent's Statute, we
discuss proposals aimed at institutions' staff, focusing on improving working
conditions and decreasing turnover. In addition, it is necessary to understand
those institutions as part of the social and emotional support network, and
thus an important space for the healthy development of children and
adolescents.
Keywords: institutionalization;
children; adolescents; development.
A problemática da institucionalização na infância e
na adolescência, por estar presente na realidade de muitas famílias brasileiras
em condições socioeconômicas desfavorecidas, representa uma dimensão relevante
de estudo na atualidade. O Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e
Adolescentes (Silva, 2004) encontrou cerca de 20 mil crianças e adolescentes
vivendo em 589 abrigos pesquisados no Brasil, sendo na sua maioria meninos
entre as idades de 7 e 15 anos, negros e pobres. Os dados mostraram ainda que
87% das crianças e adolescentes abrigados têm família, sendo que 58% mantêm
vínculo com seus familiares. No entanto, foi também constatado que o tempo de
duração da institucionalização pode variar até um período de mais de 10 anos.
Os efeitos de um período de institucionalização prolongado têm sido apontados
na literatura, por interferirem na sociabilidade e na manutenção de vínculos
afetivos na vida adulta. Para Carvalho (2002), o ambiente institucional não se
constitui no melhor ambiente de desenvolvimento, pois o atendimento
padronizado, o alto índice de criança por cuidador, a falta de atividades
planejadas e a fragilidade das redes de apoio social e afetivo são alguns dos
aspectos relacionados aos prejuízos que a vivência institucional pode operar no
indivíduo. Entretanto, outros estudos apontam as oportunidades oferecidas pelo
atendimento em uma instituição, salientando que, em casos de situações ainda
mais adversas na família, a instituição pode ser a melhor saída (Dell'Aglio,
2000). Assim, a partir dos pressupostos teóricos da Teoria Ecológica do
Desenvolvimento Humano (TEDH) (Bronfenbrenner, 1979/1996), e de considerações
sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), busca-se discutir a
influência das instituições de abrigo sobre o desenvolvimento de crianças e
adolescentes, compreendendo-as como um elemento constituinte da rede de apoio.
Teoria Ecológica do Desenvolvimento
Humano
A abordagem ecológica, proposta por Bronfenbrenner
(1979/1996), tem sido usada para reconhecer os processos evolutivos e os
múltiplos fatores que influenciam o desenvolvimento humano. Investigar
ecologicamente o desenvolvimento de crianças e adolescentes institucionalizados
significa entendê-los como "pessoas em desenvolvimento" e considerar
este desenvolvimento "no-contexto" (Bronfenbrenner, 1979/1996). A teoria
ecológica possibilita que as particularidades desenvolvimentais vivenciadas
pelas crianças e pelos adolescentes, que se desenvolvem neste contexto
diferenciado, sejam enfatizadas, e não os déficits encontrados em função da comparação com crianças e adolescentes que se
desenvolvem em contextos culturalmente esperados (Santana, 2003). Nesta
abordagem, o indivíduo está em interação bidirecional, dinâmica e constante com
o ambiente.
O ambiente ecológico é entendido por Bronfenbrenner
(1979/1996) como um sistema de estruturas agrupadas, independentes e dinâmicas.
O primeiro nível está relacionado ao efeito de influências proximais,
ambientais e organísmicas, que advém do interior do indivíduo, de suas
características físicas e de objetos do ambiente imediato, que caracterizam a
relação face a face. Segundo Bronfenbrenner (1979/1996), este nível mais
interno é chamado de microssistema, e deve ser entendido para além da família,
estendendo-se para outros contextos. As crianças e os adolescentes que vivem em
instituição de abrigo têm na própria instituição o microssistema central de seu
ambiente ecológico (Yunes, Miranda & Cuello, 2004). O mesossistema
refere-se aos elos e aos processos entre dois ou mais ambientes, nos quais os
indivíduos se desenvolvem, isto é, a interação entre os diversos
microssistemas. Desta forma, o mesossistema das crianças e dos adolescentes
abrigados consiste nas interações entre o próprio abrigo e a sua família de
origem, entre a escola e o abrigo, como também entre a família de origem e seus
parentes, vizinhos, um programa social no qual a família participa, entre
outros. O microssistema e o mesossistema representam os ambientes cujos níveis
de relação são proximais e suas influências são mais evidentes, sendo de
crucial importância para os processos desenvolvimentais. Aqueles ambientes nos
quais o indivíduo não participa diretamente, mas recebe influência indireta,
estão em seu exossistema. Assim, a direção da instituição, o Conselho Tutelar e
o Conselho Municipal dos Direitos de crianças e adolescentes, por exemplo, são
instâncias que podem constituir o exossistema de crianças e adolescentes
abrigados (Santana, 2003). Além disso, o mesossistema e o exossistema, a partir
de suas dinâmicas de funcionamento, irão influenciar na vida e nas relações
destas crianças e adolescentes, sendo fundamental a comunicação e a integração
destes ambientes (Miranda, Adorno, Cuello & Yunes, 2003). O macrossistema,
por sua vez, é o sistema mais amplo, abrange os valores, as ideologias e a
organização das instituições sociais comuns a uma determinada cultura. No que
tange à institucionalização, o estigma social, carregado de valor pejorativo e
depreciativo, associado aos valores culturalmente esperados podem ser
considerados elementos integrantes do macrossistema que envolve estas crianças
e adolescentes. Estes elementos estão presentes no modo como os monitores da
instituição lidam com eles, no modo como a professora ensina a criança
abrigada, ou ainda, na forma como uma adolescente que vive em instituição relaciona-se
com outra adolescente que vive com sua família. Segundo Santana (2003), é
essencial que o pesquisador considere o macrossistema, para que ele possa
compreender a rede de significações apresentadas pela população em estudo, no
que tange à complexa vivência institucional. Assim, o macrossistema é
influenciado pelos seus contextos específicos, no caso o cotidiano
institucional, e também pelo contexto mais amplo, como os valores culturais.
Somente a partir da compreensão destes complexos sistemas e das interações
entre eles será possível entender o desenvolvimento humano e, especialmente, o
das crianças e adolescentes que vivem em instituição de abrigo.
As diferentes configurações dos microssistemas
formam a rede de apoio social, importantes pelo seu efeito moderador no
desenvolvimento. A rede de apoio social e afetivo da criança é constituída por
tios, avós, primos, além do grupo familiar. Além disso, seus vizinhos, seus
amigos e colegas, e também um posto de saúde, um abrigo ou algum programa social
da comunidade podem constituir a rede de apoio. A influência será positiva se
estes vínculos reforçarem o sentido de eficácia pessoal, caso contrário, seu
efeito será evidente no comportamento desadaptado (Hoppe, 1998).
A família é o primeiro microssistema com o qual a
pessoa em desenvolvimento interage. Para Bronfenbrenner (1979/1996, 1986), a
família é considerada um sistema dinâmico e em interação, compreendida em um
ambiente, próximo e imediato, da pessoa em desenvolvimento, que envolve
atividades, papéis e um complexo de relações interpessoais. A introdução de
aspectos físicos, sociais e simbólicos na sua estrutura contribui para o
desenvolvimento dos processos proximais. Na atualidade, a abordagem ecológica
atribui papel central aos processos proximais, nos quais as diferentes formas
de interação entre as pessoas são vistas como uma função do processo. Assim, os
processos proximais são definidos como as formas particulares de interação
entre o organismo e o ambiente, cada vez mais complexas, que operam ao longo do
tempo, sendo os principais motores do desenvolvimento (Bronfenbrenner &
Morris, 1998).
Segundo Yunes et al. (2004), tendo em vista a história pregressa das crianças e dos
adolescentes abrigados, a institucionalização pode ou não constituir um risco
para o desenvolvimento. Esta condição dependerá dos mecanismos através dos
quais os processos de risco operarão seus efeitos negativos sobre eles, sendo o
risco entendido como as condições ou variáveis que estão associadas a uma alta
possibilidade de ocorrência de resultados negativos ou não desejáveis (Jessor,
Van Den Boss, Vanderryn, Costa & Turbin, 1995). Em contrapartida, inúmeros
fatores de proteção podem operar neste momento. Os fatores de proteção
correspondem às influências que modificam, melhoram ou alteram a resposta dos
indivíduos a ambientes hostis que predispõem a conseqüências mal adaptativas
(Hutz, Koller & Bandeira, 1996). Entretanto, deve-se compreender o conceito
de fatores de proteção enfatizando-se uma abordagem de processos, através dos
quais diferentes fatores interagem entre si e alteram a trajetória da pessoa,
podendo produzir uma experiência estressora ou protetora em seus efeitos
(Morais & Koller, 2004).
As estruturas interpessoais, tais como as formas de
interação no abrigo, estão alicerçadas sob três características de interação: a
reciprocidade, o equilíbrio de poder e a relação afetiva (Bronfenbrenner,
1979/1996). Estas características ajudam o microssistema a manter-se
estruturado a fim de permitir o desenvolvimento saudável. A reciprocidade está
centrada no processo proximal que ocorre entre duas ou mais pessoas. Com seu feedbackmútuo, ela gera um momento próprio que os motiva a perseverarem e a se
engajarem em padrões de interação subseqüentemente mais complexos (Bronfenbrenner,
1979/1996). Assim, é preciso incentivar as relações recíprocas nos abrigos,
visto que incrementam os processos proximais. Entretanto, mesmo havendo
reciprocidade, um dos integrantes da relação pode ser mais influente do que o
outro. O equilíbrio de poder se refere à distribuição deste poder na relação. É
importante o estabelecimento do equilíbrio de poder porque (1) ajuda a pessoa
em desenvolvimento a aprender a conceitualizar e a lidar com relações de poder
diferenciais; e porque (2) uma situação ótima para a aprendizagem e
desenvolvimento é aquela em que o equilíbrio do poder gradualmente é alterado
em favor da pessoa em desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1979/1996). No ambiente
institucional, por exemplo, os diretores e os monitores devem possuir mais
poder do que os adolescentes, embora esta distribuição deva ser alterada
gradativamente com o amadurecimento destes últimos. A relação afetiva é
estabelecida no envolvimento em interações diádicas, possibilitando o
desenvolvimento de sentimentos de uns para os outros, podendo ser mutuamente
positivos, negativos, ambivalentes ou assimétricos (Bronfenbrenner, 1979/1996).
Na medida em que as relações afetivas são positivas e recíprocas no início,
sendo cada vez mais positivas, é possível que incrementem o ritmo e a
ocorrência dos processos desenvolvimentais. Desta forma, as instituições de
abrigo devem considerar o afeto presente nas relações entre seus integrantes,
tanto entre as crianças e adolescentes quanto entre estes e seus monitores. A
dimensão afetiva é parte inerente das relações humanas, não devendo, portanto,
ser excluída enquanto elemento propiciador de desenvolvimento.
A instituição de abrigo consiste em um ambiente
ecológico de extrema importância para crianças e adolescentes
institucionalizados, configurando o microssistema onde eles realizam um grande
número de atividades, funções e interações, como também um ambiente com
potencial para o desenvolvimento de relações recíprocas, de equilíbrio de poder
e de afeto. Yunes et al. (2004) adaptaram as proposições essenciais para o desenvolvimento
positivo, apresentadas por Bronfenbrenner (1990), descritas como processos que
podem favorecer o desenvolvimento da competência e do caráter. A primeira
proposição está relacionada à necessidade de a criança participar de atividades
recíprocas, progressivamente mais complexas, com uma ou mais pessoas, de forma
regular. A segunda proposição está centrada na consolidação dos padrões
interacionais mencionados na primeira proposição, destacando a importância do apego
forte e mútuo, que aumentará o repertório de respostas da criança, convidando-a
à exploração do ambiente imediato físico, social e simbólico. A terceira
proposição enfatiza a disponibilidade e o envolvimento de adultos que também se
engajem na atividade. A quarta proposição destaca a troca de informações, numa
comunicação em via dupla, e a quinta proposição salienta os aspectos
macrossistêmicos. Assim, as políticas públicas e as práticas sociais e
educativas devem partir do reconhecimento dos aspectos macrossistêmicos
relacionados à vivência institucional, de forma a tentar desestigmatizá-los,
desenvolvendo ações não só direcionadas aos pais ou educadores das
instituições, mas a todos os membros da sociedade (professores, profissionais
da saúde, amigos, parentes, órgãos econômicos, sociais e políticos). Estas
proposições inovam ao focalizar as características das relações interpessoais e
afetivas como elementos essenciais no microssistema, os quais estão diretamente
relacionados ao desenvolvimento saudável dos indivíduos. Além disso, os
processos proximais estão presentes em cada uma destas proposições, podendo
influenciar a trajetória de vida das crianças, de forma a inibir ou incentivar
a expressão de competências cognitivas, sociais e emocionais. Estes processos
são considerados ativadores do desenvolvimento psicológico, sendo que a simples
ausência de interações com um ou mais adultos, que queiram o bem incondicional
destas crianças e adolescentes, que estão sob seus cuidados, pode configurar em
uma ameaça ao desenvolvimento psicológico sadio (Yunes et al., 2004).
Instituições de Abrigo e ECA: uma
revisão histórica
Bronfenbrenner (1979/1996) contemplou a
institucionalização em seus estudos, compreendendo que uma instituição de
atendimento infantil pode servir como contexto abrangente para o
desenvolvimento humano. Para ele, duas hipóteses acerca do ambiente
institucional são importantes: a primeira se refere a um aumento do prejuízo
quando o meio ambiente oferece poucas possibilidades de interação cuidador-criança
e quando existe uma restrição quanto às oportunidades de locomoção e
brincadeiras espontâneas; e a segunda hipótese focaliza o impacto disruptivo
imediato, quando a separação das crianças ocorre na segunda metade do primeiro
ano de vida. Desta maneira, as reações nocivas, a longo prazo, de um meio
ambiente institucional, físico e socialmente empobrecido, diminuem com o
aumento da idade da criança na entrada à instituição, e com a presença de um
leque de atividades que possibilite engajamento.
Apesar de ser um contexto possível de
desenvolvimento, a instituição não fornece um equivalente funcional familiar
para seus internos (Bronfenbrenner, 1979/1996). Além disso, outros autores
destacam que em certos lares, o meio ambiente físico e social é tão empobrecido
e caótico que a colocação de uma criança em uma instituição pode proporcionar a
recuperação e um crescimento psicológico (Clarke & Clarke, 1976, citados em
Bronfenbrenner, 1979/1996). Sendo assim, torna-se importante analisar
historicamente os estudos acerca da institucionalização, a fim de compreender
melhor os fatores presentes neste contexto.
Estudos mais antigos (Bowlby, 1973/1998; Goldfarb,
1943, 1945, citados em Grusec & Lytton, 1988) apontaram os prejuízos
cognitivos que a vivência institucional proporcionava para as crianças
abrigadas, tal como déficitintelectual,
especialmente no desenvolvimento da linguagem. Estas crianças eram mais
distraídas e agressivas, apresentando dificuldades emocionais, de comportamento
e incapacidade de formar laços afetivos duráveis com outros. Embora estes
estudos convergissem ao apontar os prejuízos ocasionados pela vivência
institucional, Grusec e Lytton (1988) problematizaram estes resultados,
considerando que estes efeitos poderiam surgir de outros fatores. Segundo estes
autores, estudos posteriores confirmaram que, de fato, muitas crianças, que
viveram os primeiros anos de vida em abrigo, apresentaram problemas de
aprendizagem e também má adaptação social. Entretanto, é provável que a
ausência de estimulação e de oportunidades de brincadeiras, encontradas em
instituições pobres da década de 40, e a ausência de estrutura emocional
familiar tenham contribuído para agravar este panorama.
Estudos apontam mudanças nas práticas de cuidados
direcionados às crianças e aos adolescentes abrigados, ao longo do tempo. Por
exemplo, no final da década de 1970, já existiam abrigos residenciais de alta
qualidade, na Inglaterra, nas quais cada unidade era composta por seis
crianças, que tinham acesso a brinquedos, livros e também a uma proporção
cuidador/criança generosa. O sistema destas unidades se assemelhava ao sistema
familiar (Grusec & Lytton, 1988). O estudo de Tizard, Cooperman, Joseph e
Tizard (1972) investigou o efeito da qualidade do trabalho dos monitores e o desenvolvimento
do nível da linguagem das crianças institucionalizadas, nestes abrigos
residenciais. Este estudo apontou que o atraso intelectual não estava
necessariamente relacionado à vivência institucional. O nível ótimo de
desenvolvimento da linguagem foi relacionado à qualidade da conversa do
cuidador, e não à freqüência de conversações iniciadas pelo mesmo. Além disso,
os cuidadores com maior autonomia tendiam a brincar e a conversar mais com as
crianças, levando-as a um melhor escore na avaliação do desenvolvimento da
linguagem. Assim, foi possível observar que os efeitos prejudiciais da entrada
em instituição, nos primeiros anos de vida, existiam, contudo estavam sendo
demasiadamente enfatizados.
Segundo Grusec e Lytton (1988), os fatores que
modificam os efeitos dos cuidados em instituição de abrigo são de origem
multifatorial, sendo estes efeitos não uniformes ou fixos. Os fatores são: (1)
motivo da separação da criança e sua família; (2) qualidade da relação prévia
com a mãe; (3) oportunidade para desenvolver relações de apego depois da
separação; (4) qualidade do cuidado na instituição; (5) idade da criança e
duração da separação; e (6) também o sexo e o temperamento da criança. Bowlby
(1973/1998), por sua vez, destaca duas condições de maior importância no que
tange à diminuição das reações negativas frente à separação de crianças e suas
mães: a primeira está relacionada à presença de uma pessoa conhecida e/ou de
objetos familiares no novo ambiente de desenvolvimento da criança; e a segunda,
à presença de cuidados maternais de uma mãe substituta. Desta forma, os efeitos
danosos da separação são mínimos quando estas duas condições estão associadas.
Assim, Grusec e Lytton (1988) propõem duas
questões-chave no que tange à institucionalização: (1) os efeitos danosos advêm
da privação de estimulação necessária para o desenvolvimento ou da privação do
cuidado materno? E (2) estes efeitos surgem do rompimento dos vínculos de apego
ou de distúrbios das relações familiares? Quanto à primeira questão, muitos déficits intelectuais, observados em
instituições de abrigo, podem ser devido a privações de algum tipo de
estimulação sensorial, independente do cuidado materno. De qualquer forma,
mesmo em instituições de alta qualidade, a inteligência e autonomia de crianças
deste contexto são marcadamente menores do que aquelas que foram cuidadas em
suas casas. Isto sugere que a segurança emocional, derivada da existência de
relações estáveis na vida da criança, pode contribuir para o funcionamento
intelectual adequado. Quanto à segunda questão, muitos dos problemas de conduta
de crianças abrigadas já estavam presentes antes da institucionalização. Isto
aponta para os fatores de risco no ambiente familiar, onde as relações eram
marcadamente instáveis, estressantes e conflituosas. Assim, estas experiências
precoces demonstraram operar um papel importante no desenvolvimento posterior,
e, desta forma, a separação em si não constituiu o fator decisivo.
No Brasil, historicamente, a política de
atendimento à infância e à juventude em situação de abandono vem sofrendo
transformações. O gerenciamento e a implantação destas políticas de atendimento
saiu, gradativamente, do domínio da Igreja, passando por profissionais
filantropos, até ser de responsabilidade do estado, como é nos tempos atuais.
No Brasil Colonial, o abandono de crianças foi uma prática encontrada entre
índios, brancos e negros (Leite, 1997). Da mesma forma, Priore (1991/1996)
afirmou que o abandono de bebês, a vida em abrigos e as violências cotidianas
(abusos sexuais e físicos, por exemplo) foram características da infância no
Brasil por mais de três séculos.
Uma das mais duradouras instituições de assistência
à infância, vinculada à Igreja, foi a roda dos expostos, prática que tinha como
objetivo recolher crianças abandonadas anonimamente (Marcilio, 1997). Criada no
período do Brasil Colônia, a roda dos expostos atravessou e multiplicou-se no
período imperial, conseguindo manter-se durante a República e só foi extinta
definitivamente em 1950. Durante mais de um século, a roda de expostos foi
praticamente a única instituição de assistência à criança abandonada em todo o
Brasil. Algumas vezes, famílias substitutas acolhiam estes bebês, seja pelo
espírito de caridade, ou mesmo com a intenção de transformá-los em mão-de-obra familiar
fiel, reconhecida e gratuita, na juventude e na adultez. Marcilio (1997) afirma
que a prática de criar filhos alheios sempre, e em todos os tempos, foi
difundida e aceita no Brasil. Ainda hoje, esta prática está fortemente
integrada à sociedade (Fonseca, 1987, 1993, 1995).
A partir de 1860, inúmeras instituições de proteção
à infância desamparada surgiram no Brasil, como estabelecimentos de abrigo e de
educação para menores "desvalidos", de caráter público ou privado. A
menina foi essencialmente protegida, devido à preservação da honra e da
castidade. Inaugurou-se uma nova fase do assistencialismo no Brasil: a
filantropia, surgindo como um modelo capacitado para substituir o modelo
representado pela caridade, vinculada à Igreja (Marcilio, 1997; Rizzini, 1990).
A filantropia organizou a assistência dentro das novas exigências sociais,
políticas, econômicas e morais, que nasceram com o início do século XX no
Brasil, juntamente com a República.
Segundo Freitas (1997), o advento da República
ensejou uma revalorização da infância, uma vez que o imaginário republicano
reiterava de várias formas a imagem da criança como herdeira do novo regime que
se estabelecia. Entretanto, a problemática do menor republicano no Brasil,
vítima de violência e de abandono, somente passou a ser enfrentada em meados
dos anos de 1970, principalmente através de denúncias regulares contra esta
situação (Passetti, 1991/1996). Desta forma, foi com a indicação de 1978 como o
"Ano Internacional da Criança" que a história da criança no Brasil
começou a ser focalizada e pesquisada. Este fato levou à formação de diversas
associações, que se articularam a outras, na defesa dos direitos da criança e
que acabaram influenciando na elaboração do Estatuto da Criança e do
Adolescente de 1990. Desta forma, foi durante a vigência do século XX que um
modo mais humano de lidar com a infância e com a juventude abandonada passou a
existir, juntamente com uma real preocupação quanto à situação psicossocial dos
mesmos.
A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA, 1990), as crianças e os adolescentes passam de objetos de tutela a
sujeitos de direitos e deveres. Contudo, Santana (2003) destacou que o
movimento social que deu origem ao ECA, ainda que tenha contado com a
participação da sociedade civil, em termos de representatividade social, deixou
a desejar. Desta forma, foi possível perceber que a noção de criança e
adolescente como sujeitos ainda não estava compartilhada por grande parte da
sociedade. Este fato ainda hoje pode ser observado, especialmente em relação às
crianças e aos adolescentes em situação de rua, sendo muitas vezes exigidas, do
poder público, soluções enérgicas contra os mesmos, geralmente no sentido de
puni-los, sem a intenção de garantir seus direitos (Santana, 2003). Para que os
dispositivos do ECA sejam cumpridos, de acordo com Silva (2004), é necessário
que tanto os responsáveis por sua aplicação quanto os executores, tenham não
apenas amplo conhecimento do estatuto mas também partilhem seus objetivos,
contribuindo para que efetivamente as crianças e adolescentes possam exercer
plenamente seus direitos.
Entre os diretos previstos pelo ECA (1990),
destaca-se o direito à convivência familiar e comunitária, que prevê o fim do
isolamento, presente na institucionalização em décadas anteriores (Rizzini
& Rizzini, 2004; Silva, 2004). O ECA também preconiza a
desinstitucionalização no atendimento de crianças e adolescentes em situação de
abandono e valoriza o papel da família, as ações locais e as parcerias no
desenvolvimento de atividades de atenção, trazendo mudanças no panorama do
funcionamento das instituições de abrigo. Assim, as instituições de abrigo
devem estar configuradas em unidades pequenas, com poucos integrantes, manter
um atendimento personalizado, estimular a participação em atividades
comunitárias e preservar o grupo de irmãos, entre outros pontos. A implantação
do ECA contribuiu para mudanças efetivas no que tange às instituições de
assistência e à sua configuração como um todo, partindo não de uma visão
puramente assistencialista, mas concebendo-as como espaço de socialização e de
desenvolvimento. Quanto às condições dos atuais abrigos, Silva (2004) sinaliza
que, dentre os abrigos pesquisados da Rede SAC, (1) cerca de 56,7% foram
considerados de pequeno porte, atendendo até 25 abrigados; (2) em geral,
possuem as condições físicas, de abastecimento de luz, saneamento e esgoto
adequados; (3) 56% mantêm salas para atendimento técnico especializado; (4)
possuem dirigentes mulheres (60,4%) com ensino superior completo (60,8%), entre
outros aspectos. Entretanto, há diferenças evidentes entre as regiões
brasileiras. Por exemplo, a região norte destacou-se por possuir 92% de seus
abrigos com no máximo 25 crianças e adolescentes, e a região Centro-Oeste ficou
no último lugar, com 58,5% dos seus abrigos atendendo pequenos grupos. Na
região Sul, 27% dos dirigentes dos abrigos são pós-graduados e na região Norte,
12%. É possível observar diferenças significativas entre o perfil apresentado
neste levantamento e o modelo das instituições mais antigas, visto que esta
nova configuração difere qualitativamente daquelas, nas quais havia um grande
número de crianças e adolescentes vivendo sob um sistema essencialmente
coletivizado (Guirado, 1986).
Ainda que o programa de abrigo esteja previsto pelo
ECA (1990) como medida provisória e transitória, a permanência breve ou
continuada no abrigo está inteiramente relacionada à história singular de cada
criança e/ou adolescente. Desta forma, a promoção de ações efetivas de inserção
social se constitui em um objetivo permanente, para que o abrigo seja realmente
uma medida protetiva de caráter excepcional e transitório (ECA, 1990). Para
Juliano (2005), os fatores que dificultam a efetivação do caráter provisório da
medida de abrigo são: (1) a falta de integração das políticas sociais
existentes; (2) a dificuldade de interação e comunicação entre as entidades que
trabalham com crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social;
(3) a ausência de objetivos comuns entre estas entidades; (4) a existência de
ações pontuais e fragmentadas; (5) a fragilidade dos recursos humanos nos
abrigos, tanto na quantidade como na sua qualificação; (6) como, também, a
fragilidade das famílias, que se posicionam passivamente frente às ações que
poderiam resultar no desabrigamento de seus filhos. De fato, para muitos casos,
a passagem por uma instituição de abrigo não é temporária, sendo que muitas
crianças e adolescentes ficam durante anos nestas instituições sem a
possibilidade de estarem em famílias substitutas, ou ainda, sem poderem voltar
para suas famílias de origem. Além disso, na prática, os abrigos demonstram
fragilidade em seu funcionamento (Arpini, 2003; Bazon & Biasoli-Alves,
2000). Atualmente, a comunidade científica voltou-se ainda mais a este ambiente
social, investigando inúmeros elementos que compõem este contexto, desde as
questões sobre o seu funcionamento, até aquelas referentes ao desenvolvimento
sadio de seus integrantes, suas percepções de família, da vivência
institucional, entre outros.
Estudos recentes sobre abrigos no
Brasil
O estudo de Yunes, Miranda, Cuello e Adorno (2002)
sobre abrigos apontou a predominância da função assistencialista nos mesmos,
fundada na perspectiva tão somente de ajudar as crianças abandonadas, havendo
um frágil compromisso com as questões desenvolvimentais da infância e da
adolescência. Além disso, são observados problemas funcionais, como, por
exemplo, o número de funcionários inadequado, ocasionando dificuldade no
cumprimento das funções, sobrecarga das tarefas e um atendimento pouco eficaz;
e a precariedade na comunicação dentro do micros-sistema institucional
(funcionário/diretoria do abrigo, adolescentes/funcionário, entre outros) e,
sobretudo entre os microssistemas (abrigo/escola, abrigo/Conselho Tutelar,
abrigo/outra instituição que a criança ou adolescente freqüenta, entre outros),
refletindo dificuldades de articulação na rede de apoio social.
Pasian e Jacquemin (1999) desenvolveram um estudo
que investigou a auto-imagem, através do auto-retrato gráfico, em crianças
institucionalizadas e não-institucionalizadas, de 7 a 13 anos. Os resultados
indicaram que as crianças que viviam em abrigos apresentaram maior número de
indicadores emocionais em seus desenhos, na comparação com as crianças que
viviam com suas famílias. Em contrapartida, o tempo de institucionalização
configurou-se um fator importante, visto que aquelas crianças com mais tempo no
abrigo apresentaram elementos de uma auto-imagem mais integrada. Assim, segundo
Pasian e Jacquemin, foi possível afirmar que o tempo de contato da criança com
uma estrutura institucional, propiciadora de experiências de vida positivas,
pode favorecer a diminuição do número de sinais de dificuldades emocionais. Já
o estudo desenvolvido por Martins e Szymanski (2004) buscou investigar a
percepção de família de crianças em instituição de abrigo, a partir da análise
da brincadeira de faz-de-conta, empreendida por elas. Dentre os resultados,
destaca-se que a cooperação, ou ajuda mútua, permeou a grande maioria das
interações. As crianças se organizaram dentro dos papéis familiares, cooperando
com a organização da casa e auxiliando umas as outras em diversos momentos.
Outro resultado interessante foi a referência predominante ao modelo de família
nuclear, apesar de suas famílias de origem não possuírem esta forma de
configuração, apontando para a forte influência dos valores culturais
macrossistêmicos.
Dell'Aglio (2000) investigou diversos aspectos no
desenvolvimento de crianças e adolescentes que viviam em instituições de abrigo
e que viviam com a família, não tendo encontrado diferenças consistentes entre
os grupos. As análises apontaram resultados semelhantes no nível intelectual,
desempenho escolar, estratégias de coping e estilo atribucional, tendo sido encontrada diferença somente nos
índices de depressão, que foram mais altos entre as meninas
institucionalizadas. No entanto, conforme Dell'Aglio (2000), este resultado não
pode ser interpretado como indicação de que haja alguma relação causal entre
institucionalização e depressão. Na maioria dos casos a institucionalização se
deu em conseqüência de eventos traumáticos na família (abandono, violência
doméstica, negligência), podendo ter sido este o principal fator de risco para
a depressão. Além disso, a autora também aponta que, para muitos dos
participantes de seu estudo, a institucionalização foi percebida como um evento
de vida positivo.
O estudo de Arpini (2003), desenvolvido com
adolescentes de classes populares, também observou que aqueles que tiveram
vivência institucional a caracterizavam como o melhor período de suas vidas,
relacionando-a com o estabelecimento de novos vínculos, alguns dos quais se
mantiveram mesmo após deixarem a instituição. Em contrapartida, estes
adolescentes demonstraram sofrer um forte estigma social, pois são vistos pela
sociedade como responsáveis e donos de algum tipo de "defeito" ou
problema (Altoé, 1993; Arpini, 2003). Assim, se por um lado existe uma
representação mais positiva em relação à vivência institucional, por outro,
permanece a representação social que estigmatiza as pessoas que compõem este
contexto (Arpini, 2003). Ao estudar a representação que o ex-interno, na
maioridade, faz do período que passou abrigado, em instituição de grande porte
e com funcionamento coletivizado, Altoé (1990) constatou que o relato foi
marcado por ambivalências: uma idealização associada a duras críticas
relacionadas às vivências negativas, tais como a falta de carinho e a falta de
liberdade para conversar com outros internos e/ou com os funcionários.
Um outro estudo investigou o perfil dos
presidiários egressos de estabelecimentos de assistência à criança e ao
adolescente (Altoé, 1993). No que tange ao abrigamento, cabe ressaltar que
apenas 24,5% dos participantes estiveram em instituição de abrigo por mais de um
ano, sendo considerados, no estudo, como "jovens
institucionalizados". Estes jovens ingressaram no abrigo com idade entre 0
e 8 anos, e o principal motivo de abrigamento foi a falta de condições
financeiras da família. Os "jovens não-institucionalizados", 75,5% da
amostra de presidiários, eram jovens com trajetórias instáveis de vida, com
diversas passagens por inúmeros abrigos, com duração menor de um ano. Estes
jovens ingressaram no abrigo com idade entre 9 e 18 anos, tendo com principal
motivo de entrada a realização de atos infracionais (Altoé, 1993). Se por um
lado estes resultados apontam para a ineficiência da rede de assistência à
infância e à juventude em situação de risco pessoal e social, por outro lado,
aqueles jovens que conseguiram permanecer mais tempo no abrigo, aproveitando
melhor os recursos oferecidos, cometeram menos delitos e/ou crimes após os 18
anos. No entanto, Silva (1997) enfatiza o aspecto negativo da
institucionalização, apontando que o processo de socialização que se dá nos
abrigos, pela interação com grupos de risco e pela utilização de mecanismos de
resistência, contribui para a construção de uma "identidade
institucional", a qual evoluirá para uma "identidade
delinqüente", consolidada pela reincidência e pela multirreincidência.
Neste sentido, para Bronfenbrenner (1979/1996) ser criado em abrigos, do ponto
de vista de valores e expectativas culturais, está associado a um estigma que
pode se tornar uma predição de fracasso. Desta forma, as instituições de abrigo
podem ou não produzir efeitos benéficos para a vida de crianças e adolescentes,
dependendo de sua capacidade de fornecer apoio e proteção.
A Instituição como Rede de Apoio Social
e Afetivo
Para Samuelsson, Thernlund e Ringström (1996) a
rede de apoio social tem uma profunda influência na saúde e no bem-estar do
indivíduo. A rede de apoio social e afetivo define como o indivíduo percebe seu
mundo social, como se orienta nele, suas estratégias e competências para
estabelecer relações, como também os recursos que este lhe oportuniza frente às
situações adversas que se apresentam. A ausência de uma rede de apoio social
pode produzir um senso de solidão e falta de significado de vida (Samuelsson et al., 1996).
O efeito protetivo que o apoio social oferece está
relacionado ao desenvolvimento da capacidade de enfrentamento de adversidades,
promovendo características de resiliência e desenvolvimento adaptativo (Brito
& Koller, 1999; Garmezy & Masten, 1994; Rutter, 1987). Cada esfera da
vida, tais como família, amigos, profissão, vizinhos, escola, instituição de
abrigo, entre outros, assume o papel de identidade social capaz de fornecer
apoio nas relações que o indivíduo estabelece com os outros. Quanto mais
percebe com satisfação sua rede de apoio, mais sentimentos de satisfação com sua
vida terá (Orford, 1992). Dessa forma, pode-se compreender que, para as
crianças e os adolescentes abrigados, a instituição de abrigo se constitui na
fonte de apoio social mais próxima e organizada, desempenhando um papel
fundamental para o seu desenvolvimento.
Para Newcomb (1990), a primeira relação de apoio
social evolui das relações de apego iniciais da criança e da capacidade e
disposição dos pais em suprir suas necessidades, constituindo a primeira base
de esperança e segurança em outras pessoas. Para as crianças e os adolescentes
que não vivem com suas famílias, o mundo social expande-se ainda mais no
momento em que estes deixam o núcleo familiar, incluindo membros não
pertencentes à família, tais como monitores e demais crianças e adolescentes
com os quais convivem na instituição.
A relação estabelecida com os monitores desempenha
papel central na vida das crianças e dos adolescentes abrigados, à medida que
serão estes adultos que assumirão o papel de orientá-los e protegê-los,
constituindo, neste momento, os seus modelos identificatórios. Estudos apontam
para a importância de cursos de formação, oficinas de reciclagem, ou mesmo um
espaço de trocas destinado a estes profissionais, visto que a satisfação
profissional está diretamente relacionada à qualidade de seu trabalho na
instituição (Bazon & Biasoli-Alves, 2000). Estas autoras consideraram os
monitores como educadores, e desta forma, apontaram a necessidade de que sejam
guiados em suas ações cotidianas de modo a compreender o impacto que seus gestos
podem ter, a fim de darem um sentido às suas ações rotineiras.
Da mesma forma, o contato com pares, em igual
situação de vida, pode configurar um apoio social e afetivo, operando como
fator de proteção. Ao conviver com crianças e adolescentes de diversas idades,
as crianças e adolescentes abrigados podem se envolver em parcerias uns com os
outros, compartilhar sentimentos positivos e negativos, apoiando-se mutuamente.
Martins e Szymanski (2004) apontaram que comportamentos pró-sociais, como de
cuidado recíproco, consolo e auxílio, em várias situações de vida, foram
observados nas interações entre as crianças cuidadas em instituição de abrigo.
Considerações Finais
A partir dos estudos apresentados, é possível
constatar que as instituições de abrigo fazem parte da rede de apoio de muitas
famílias brasileiras, há muitas décadas, principalmente em decorrência de
problemas sociais, associados à situação de pobreza e ao perfil de distribuição
de renda no Brasil. Estes aspectos macrossistêmicos precisam ser combatidos,
através de políticas públicas, visto que incrementam a vulnerabilidade das
famílias, aumentando a demanda desta população por instituições de abrigo para
assistência a seus filhos.
Da mesma forma, a análise de estudos mais recentes
possibilita constatar uma melhora na qualidade da assistência oferecida pelos
abrigos (Arpini, 2003; Dell'Aglio, 2000; Martins & Szymanski, 2004; Pasian
& Jacquemin, 1999), sendo que estas melhorias estão diretamente
relacionadas à construção e à implementação do ECA (1990) no Brasil (Rizzini
& Rizzini, 2004; Silva, 2004). É possível, também, compreender que estas
melhorias refletem um modo diferenciado de avaliar o espaço institucional,
especialmente com a consideração de teorias que focalizam o
"desenvolvimento-no-contexto" e os aspectos protetivos e de risco
presentes nele. A partir destes dados, pode-se concluir que a visão
exclusivamente prejudicial dos abrigos, como lugares insalubres e precários,
onde um grande número de crianças e adolescentes convivia sob um sistema
coletivizado, vem perdendo força.
Uma vez que a instituição de abrigo é necessária, é
preciso que ela seja de pequeno porte, assegure a individualidade de seus
integrantes e possua uma estrutura material e de funcionários adequadas. É
necessário transformá-la num ambiente de desenvolvimento, capacitando-a e
instrumentalizando-a. Para tanto, Yunes et al.(2004) sugerem as
seguintes ações: (1) promover um programa lúdico de atividades para as crianças
e os adolescentes abrigados junto com os funcionários, o que incentivaria os
cuidadores a desenvolver brincadeiras infantis; (2) oportunizar encontros entre
os profissionais de diferentes abrigos, a fim de criar um espaço de troca de
experiência e melhorar a comunicação interinstitucional; (3) capacitar profissionalmente
os cuidadores, para que eles possam aprender sobre desenvolvimento infantil
numa visão contextualizada, sobre as práticas educativas, sobre a violência
doméstica, sobre as medidas socioeducativas e também para que eles possam
compreender as teorias implícitas que permeiam o ambiente institucional.
Para Silva (2004), os profissionais das entidades
que oferecem programas de abrigo têm um importante papel de educadores, o que
requer uma profissionalização da área e uma política de recursos humanos que
envolva capacitação permanente, incentivos e valorização, incluindo uma
remuneração adequada. A formação continuada desta equipe deve buscar, ainda, a
formação de uma consciência social em prol do bem-estar desta população,
considerando que o trabalho institucional traz repercussões diretamente
relacionadas ao desenvolvimento das crianças e adolescentes abrigados (Bazon
& Biasoli-Alves, 2000; Yunes et al., 2004). Além disso,
acrescenta-se um trabalho organizacional de valorização do funcionário e/ou
monitor dos abrigos, de forma que não seja um ofício temporário e rotativo. A
efetivação destas ações contribuiria para uma autovalorização do funcionário
e/ou monitor, e conseqüentemente, diminuiria a possibilidade de rompimento
constante de vínculos.
As discussões sobre a qualidade do atendimento e os
prejuízos que os abrigos proporcionam para o desenvolvimento estão longe de
convergirem, indicando a necessidade de desenvolver mais estudos sobre os
processos presentes neste contexto. Apesar das melhorias observadas no
atendimento, há um caminho a ser percorrido. Pode-se começar por oportunizar
condições que pelo menos reduzam os fatores de risco já vivenciados nos seus
ambientes de origem, sistematizar uma maior integração e comunicação em via
dupla dentro dos abrigos e entre as entidades sociais e promover relações
interpessoais recíprocas, afetivas e com equilíbrio de poder.
As instituições assumem o lugar central na vida das
crianças e dos adolescentes abrigados, e em função disso, é necessário investir
neste espaço de socialização, buscando transformar as concepções socialmente
estabelecidas, de forma a desestigmatizá-las. De acordo com a ênfase dada pela
Teoria Ecológica aos processos proximais ocorridos em contextos de
desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1979/1996, 1990; Bronfenbrenner & Morris,
1998), e sobretudo, de acordo com a importância do afeto mútuo e recíproco das
relações interpessoais, torna-se crucial investir em interações mais estáveis e
afetuosas no ambiente institucional, tanto as relações dos funcionários com os
internos quanto às relações entre pares.
As crianças e os adolescentes institucionalizados
precisam interagir efetivamente com pessoas, objetos, símbolos e com um mundo
externo acolhedor (Bronfenbrenner, 1990). Assim, o abrigo precisa fazer parte
da rede de apoio social e afetivo, fornecendo recursos para o enfrentamento de
eventos negativos advindos tanto de suas famílias quanto do mundo externo,
modelos identificatórios positivos, segurança e proteção. Somente assim
oferecerá um ambiente propício para o pleno desenvolvimento cognitivo, social e
afetivo das crianças e adolescentes inseridos neste contexto. Assim, destaca-se
a necessidade de políticas públicas de intervenção direcionadas às instituições
de abrigo, considerando o grande número de crianças e adolescentes abrigados,
de forma que se favoreça uma melhoria das condições de atendimento a esta
população.
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