A MISSÃO DE CADA UM DE NÓS
Marcos Bandeira
Ouvindo prazerosamente
a boa música de João Nogueira intitulada ‘Além do Espelho’, paro e fixo-me no seu refrão: “A vida é mesmo
uma missão, a morte é ilusão, só sabe quem viveu, pois quando o espelho é bom,
ninguém jamais morreu”. Assim, me ponho a refletir na nossa condição humana de
seres inacabados e imperfeitos nessa jornada transitória aqui na terra. Afinal,
o questionamento é inevitável: qual será a nossa grande missão nesta vida? Qual a razão pela qual estamos no mundo? As respostas variam, pois somos seres
singulares e cada um constrói a sua própria história e tem a sua própria
missão.
No meu caso em
particular, tenho uma inclinação, diria até uma identificação muito grande com
os direitos das crianças, esses seres vulneráveis na condição peculiar de
desenvolvimento. Muitos deles vivem em situação de dificuldade, sem lar, sem
escola, sem pais, vítimas de violações de seus direitos pela família, pela
sociedade e pelo próprio Estado. Muitos são incompreendidos pelos adultos que
não toleram a sua nefasta presença. Numa sociedade capitalista e consumista
como a nossa, são seres invisíveis, inúteis e descartáveis. Só são notados
quando cometem um ato criminoso ou quando são trancafiados num orfanato, longe
de nossos olhos. Parece até que alguns adultos esquecem que um dia também foram
crianças.
A história de *Rodrigo
retrata a vida de uma criança que aos seis anos de idade foi castigado
cruelmente pelos seus genitores e retirado abruptamente do convívio com seus
dois irmãos. O Juiz da localidade onde morava, decretou a perda do poder
familiar dos genitores de Rodrigo e determinou a separação dos irmãos. Um dos
irmãos de Rodrigo foi adotado por uma família no sertão, enquanto Rodrigo e sua
irmã mais velha vieram para serem acolhidos no SOS Canto da Criança em Itabuna.
Um trauma terrível em sua vida.
Quando Rodrigo chegou
era franzino e diabético sendo obrigado a tomar medicamentos todos os dias para
controlar sua enfermidade. A irmã de Rodrigo, apesar de ter tido várias
oportunidades de ser acolhida por uma família através da adoção, demonstrou
possuir uma personalidade deformada e dissimulada.
O tempo passou, a
irmã mais velha completou 13 anos e foi transferida para um abrigo em Salvador,
onde fugiu e ingressou no mundo da criminalidade e das drogas. Rodrigo
permaneceu no SOS canto da Criança. Em alguns momentos de crise, chegou a
quebrar os móveis e utensílios do abrigo e a bater em outros meninos mais
novos. Essa foi a forma encontrada para protestar, para ser notado e ouvido,
para reivindicar uma família.
Todas as vezes que
me dirigia ao SOS Canto da Criança para realizar audiências concentradas e
verificar junto com o Ministério Público e a Defensoria Pública a situação de
cada criança acolhida naquela instituição, era sempre procurado por Rodrigo que
me suplicava impacientemente:
- Doutor Marcos, por
favor, eu preciso de uma família. Normalmente, eu respondia um tanto
preocupado:
- Rodrigo, o tempo está passando, mas estou
lutando por você. Tenha paciência que o seu dia vai chegar.
Felizmente, o dia de Rodrigo chegou: depois de
permanecer por mais de 2 anos no Cadastro Nacional de Adoção, um casal de
Curitiba o adotou. Foi amor à primeira vista e a vida de Rodrigo até então sem
grandes perspectivas, agora se transformou. Finalmente, aos 8 anos de idade,
foi adotado por uma família estruturada e está muito feliz.
Ontem, recebi uma
carta de Rodrigo encaminhado pelo pai que o adotou e que me emocionou bastante.
Nâo pude conter as lágrimas. Eis a íntegra da carta de Rodrigo ipsis litteris :
“ Olá Dotor Marcos
Aqui é Rodrigo
escrevo essa carta para li agradescer pela a minha nova família
Eu tou na escola e já
fiz duas provas
Jogo futebol no Coxa
e tenho novos amigo
Fique com Deus
Quando eu crescer eu
quero ser Juiz para ajudar as crianças como você”
Por
favor, não repare o vernáculo nem a pontuação, pois trata-se de uma carta
elaborada por um menino sobrevivente que viveu boa parte de sua vida dentro de
um orfanato sem ter alguém que pudesse guiar o seu caminho e muito menos
ensinar o bom português. O que me importa é o seu conteúdo, a mensagem que ele
passou para mim. Rodrigo, certamente, caso não fosse adotado por uma família,
seria mais um a engrossar a fileira da criminalidade.
O homem vive de
escolhas e oportunidades. Rodrigo teve a paciência de esperar e escolheu com o
auxílio da graça de Deus de que nos fala Santo Agostinho, o caminho do bem.
Deus criou as condições e a oportunidade surgiu na sua vida. Ele me passou a
mensagem deixando à mostra minha missão terrena: nunca desistir das crianças,
perseverar e lutar pelos seus direitos. Só assim poderemos sonhar com um amanhã
promissor.
*Nome fictício da criança.
Marcos Bandeira é Juiz de Direito Titular da
Vara da Infância e Juventude de Itabuna, professor de Direito da UESC e membro
da Academia de Letras de Itabuna.
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